Vida em França
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Partindo da actualidade, tentamos explorar os aspectos da multifacetada "alma" francesa nos domínios social, político, económico e cultural.
França: Desemprego regista maior aumento dos últimos 10 anos
05 February 2025
França: Desemprego regista maior aumento dos últimos 10 anos

A taxa de desemprego em França registou, no quarto trimestre de 2024, o maior aumento em dez anos, excluindo o período da pandemia de 2019. Os números publicados pelo Ministério Francês do Trabalho revelam que o desemprego subiu 4% e os jovens são a categoria mais afectada. O economista Pascal de Lima afirma que estes dados se devem às medidas de austeridade do executivo francês, sublinhando que a solução passa pelos incentivos à inovação e ao empreendedorismo.

Como se explica este aumento da taxa de desemprego em França?

Explica-se por vários factores. O Governo implementou medidas de austeridade para reduzir o défice público, o que resultou numa redução das despesas públicas e no aumento da carga fiscal. Assim, essa política desacelerou o crescimento económico e levou a despedimentos em vários sectores. Também temos a incerteza económica global e as tensões geopolíticas, que afectaram o investimento das empresas. Penso que a diminuição dos investimentos das empresas agravou ainda mais a situação do mercado de trabalho.

Quais são os sectores mais afetcados?

Em primeiro lugar surge o sector da construção, seguido pelo comércio e a indústria automóvel. Vimos muitas empresas de "renome" anunciarem planos de despedimentos em massa, devido à redução da procura e ao aumento dos custos de produção. Há uma retracção no sector da construção, por exemplo, devido à subida das taxas de juro. No comércio, o consumo interno tem sofrido um abrandamento importante, levando à perda do poder de compra das famílias.

Qual é o segmento da população mais exposto a este aumento do desemprego?

Os jovens são a categoria mais afectada pelo aumento do desemprego. Há um dado, no terceiro trimestre de 2024, que revela que a taxa de desemprego entre os jovens de 15 a 24 anos subiu 1,8%, atingindo os 7%. Este grupo enfrenta claramente dificuldades acrescidas no acesso ao mercado de trabalho, asociadas à falta de experiência e à redução das oportunidades de aprendizagem.

A decisão do Governo de reduzir os incentivos às empresas que contratam jovens aprendizes pode contribuir para o aumento do desemprego?

Sim, claro. A redução dos incentivos pode agravar o desemprego dos jovens. Muitas empresas recorrem a aprendizes devido às vantagens fiscais e ao apoio do Estado. Com a retirada parcial deste benefício, as empresas podem deixar de contratar jovens em formação, dificultando ainda mais a entrada destes no mercado de trabalho e prolongando também o período de precariedade e inactividade.

O patronato francês, vários empresários alertaram para o impacto que o aumento da carga fiscal pode ter nas novas contratações. Quais serão os verdadeiros impactos?

Claramente, o aumento da carga fiscal pode desencorajar a criação de novos empregos. As empresas com maiores encargos fiscais veem a sua margem de lucro reduzida, o que as leva a cortar custos, nomeadamente na contratação de novos trabalhadores. É uma lógica económica simples, mas real. Além disso, a pressão fiscal pode também levar algumas empresas a transferir parte das suas operações para países com uma tributação mais favorável.

A França é o quinto país mais apelativo no que se refere ao investimento. O aumento da carga fiscal pode levar os empresários a não investirem no país? Á deslocalização de empresas?

Sim, pode. A França pode perder atractividade para os investidores, devido ao aumento da carga fiscal. As empresas multinacionais também procuram países onde os custos operacionais e a carga tributária sejam mais baixos. Portanto, se os impostos das empresas aumentam, a França pode perder investimento estrangeiro e assistir à deslocalização das empresas para outro país da União Europeia ou até para outros países da Ásia, por exemplo. Até mesmo para os Estados Unidos.

Ao nível da União Europeia, não acha que a regulação deveria ser mais apertada? Porque, de certa forma, parece que os Estados estão sempre reféns das empresas...

Claro. No entanto, existem pressões em relação às contas públicas e também precisamos ter as empresas no país para garantir um maior nível de receita fiscal. Portanto, deve haver regulação, sim, mas também um certo proteccionismo para guardar as riquezas e controlar o défice público.

Até porque os Estados Unidos já disseram que estão receptivos a receber todas as empresas que queiram investir no país.

Exactamente. Os Estados Unidos têm uma política muito eficaz, como por exemplo o Reduction Act, um programa para atrair investimento estrangeiro e desenvolver a economia. Acredito que essa política vai continuar nos Estados Unidos, podendo vir a ser uma referência para a União Europeia em termos de regulação.

A França atravessa um período financeiro complicado, onde o equilíbrio das contas públicas é urgente. O reforço da carga fiscal é uma das soluções?

O aumento da carga fiscal pode ser uma solução, mas de curto prazo, para equilibrar as contas públicas. No entanto, já percebemos bem as consequências negativas para a economia. As receitas fiscais podem aumentar a longo prazo com uma diminuição dos custos, que é totalmente o oposto. Se os impostos forem excessivos, isso pode desencorajar o investimento, reduzir o consumo das famílias, porque o investimento envolve empresas, salários e o poder de compra. Isso pode levar a uma desaceleração da economia. Portanto, a solução ideal seria um equilíbrio entre medidas de consolidação fiscal e políticas de estímulo ao crescimento. Mas esse equilíbrio, acho eu, é muito teórico.

Mas como se consegue esse equilíbrio?

Através dos incentivos à inovação e ao desenvolvimento do empreendedorismo. Aposta na criação de empresas, na educação, na formação para tentar acompanhar a transição económica e digital, face à concorrência internacional da China e dos Estados Unidos, líderes noas vários sectores tecnológicos. Portanto, é preciso libertar completamente as empresas para tentar criar riquezas e desenvolver o mercado de trabalho e as profissões do futuro.

Refere-se à inteligência artificial?

Sim, a inteligência artificial pode enriquecer os empregos da população e o sistema social, particularmente das classes médias, sem substituir o homem. A tecnologia deve substituir as funções intermediárias nas grandes empresas, o que cria desemprego tecnológico, e isso parece ser um ponto essencial.

Mariana Esteves: «Os Jogos Olímpicos são um momento, depois a vida continua»
30 January 2025
Mariana Esteves: «Os Jogos Olímpicos são um momento, depois a vida continua»

2024 ficou marcado pelos Jogos Olímpicos que decorreram em Paris, a capital francesa, durante o Verão europeu, há mais de seis meses, e agora em que ponto estão os atletas?

Uns acabaram por se reformar, outros já estão com o pensamento virado para Los Angeles em 2028, enquanto uma outra parte dos atletas ainda não sabe o que vai fazer até às próximas olimpíadas daqui a três anos e meio.

A RFI entrevistou Mariana Esteves, atleta que representou a Guiné-Conacri durante os Jogos Olímpicos, ela que também é portuguesa.

Na prova olímpica, Mariana Esteves, na categoria de menos de 57 kg, eliminou Maria Escano, atleta de Guam, na primeira ronda, antes de ser derrotada pela francesa Sarah-Léonie Cysique no segundo combate.

A bi-campeã africana nessa categoria aceitou contar-nos o resto da história, como foi a sua vida pós-Jogos Olímpicos.

Entre dúvidas, competições e objectivos para 2025, Mariana Esteves, que vestiu depois dos Jogos Olímpicos as cores dos clubes do Judo Club Venellois, do Marselha e do Sainte Geneviève Sports, ambos em França, revelou-nos como é a vida de um atleta após essa aventura olímpica.

Isto sem esquecer a parte mediática do judo, que continua a ser seguida em França com a mesma força pelos apaixonados da modalidade, no entanto, Mariana Esteves não tem visto um real aumento da afluência nos pavilhões, apesar de haver sempre um certo efeito ‘Jogos Olímpicos’ nas inscrições de crianças em várias modalidades olímpicas.

Mariana Esteves, atleta luso-guineense de 28 anos, continua activa com as provas de judo, inclusive no próximo Campeonato Africano de judo que decorre em Abidjan na Costa do Marfim em Abril, mas que também abraçou a carreira de professora de educação física durante este ano lectivo.

O desporto pós-Jogos Olímpicos e as modalidades femininas continuam a precisar de ajuda, visto que a exposição mediática durante as Olimpíadas é de apenas cerca de um mês… todos os quatro anos.

 

Limbo: "Não somos nem portugueses, nem moçambicanos"
23 January 2025
Limbo: "Não somos nem portugueses, nem moçambicanos"

O espetáculo Limbo está em cena até ao dia 8 de Fevereiro, no Teatro de la Colline, em Paris. A peça foi apresentada em Portugal em 2021, onde recebeu os prémios para Melhor Espectáculo de Teatro e Melhor Texto Português Representado pela Sociedade Portuguesa de Autores (SPA). O encenador e actor Victor de Oliveira nasceu em Moçambique, cresceu em Portugal e vive em França. "Não sabemos quem somos, e fechamo-nos num limbo. Não somos nem somos portugueses, nem moçambicanos", afirma o encenador.

RFI: Em palco, conta a sua história familiar, os conflitos entre gerações, o impacto da herança colonial. Menciona que foi "um acidente" nascer noutro lugar, porquê?

Victor de Oliveira: Quando faço essa citação do Achille Mbembe, que diz que é um acidente nascer num dado lugar é apenas para dizer que todos nós nascemos num determinado espaço e depois temos toda a vida para criar algo, para criar uma vida e para ver como é que o facto de termos nascido numa época determinada, num país determinado, como é que essa história faz parte de nós e como é que nós nos construímos com essa história. E, obviamente, eu, tendo nascido numa colónia portuguesa durante o período colonial, sendo neto de colonos brancos portugueses e colonizadas negras moçambicanas, como é que eu cresço e como é que eu me defino e como é que eu avanço na minha vida, fazendo parte dessa história, e dessa história que é uma história extremamente complicada, extremamente difícil, que é a história da colonização portuguesa.

Mas hoje já estamos em 2025. O ano passado, Portugal comemorou os 50 anos do 25 de Abril. Este ano, Moçambique vai comemorar os 50 anos da independência. Como é que avançamos, sabendo o que foi a colonização, sabendo o que houve de terrível, e como é que hoje nos definimos? Como é que hoje conseguimos criar algo para além do horror que foi a colonização, sem negar aquilo que aconteceu, mas dizendo: ok, aconteceu. Mas hoje, como é que nós fazemos para ir além dessa história e para construir algo que esteja ligado a essa história comum que é nossa e tentar avançar com tudo isso?

Todas essas questões são questões que me acompanham, para as quais não tenho respostas precisas, digamos assim. Mas, as questões em si já são suficientemente interessantes para que elas me acompanhem e para que eu tente, no palco, com o limbo, por exemplo, dar algumas respostas ou, pelo menos, fazer com que as pessoas que estejam na plateia e que ouçam e que vejam o que está a acontecer se possam questionar também. E, eventualmente, que essas histórias possam ecoar na própria história de cada um, de cada uma delas.

Em palco, durante 1h15 compartilha episódios traumáticos da infância; como o desejo de se esconder do próprio pai, e reflecte sobre a procura de um sentimento de pertença. Pensar no passado é uma forma de sair deste limbo?

Sim, é uma forma de voltar a olhar para esse limbo de que eu falo com um pouco mais de distância. Também tem a ver com a idade que eu tenho hoje e com o facto de, há um tempo, todas essas questões andarem à minha volta. E tem a ver com essa distância e com essa maneira de dizer: "Ok, isto aconteceu assim, assim, assim. E por que é que aconteceu assim? Por que é que houve esta reação? Por que é que isto aconteceu?" Não para tentar encontrar respostas, mas porque eu tenho a impressão de que essas situações, digamos, de que eu falo durante o espetáculo, fazem parte dessa dramaturgia, que essas situações são representativas de toda uma parte da história portuguesa e colonial. No meu caso, com Moçambique, mas podia ser com Angola, com Cabo Verde, Guiné-Bissau, São Tomé e Príncipe.

Mas tem a ver com essa relação com as ex-colónias portuguesas. Sim, é uma maneira de olhar para essas situações, de tentar compreendê-las hoje, com a idade que eu tenho e com o trabalho que tentei fazer de dramaturgia e de compreensão enquanto artista, para dizer: "Ok, isto aconteceu assim, porque isto, isto, isto". E, obviamente, há menos sofrimento, um certo apaziguamento, digamos assim, que vai surgindo pouco a pouco, porque a história mesmo se conta a partir de mim. Ela não é apenas a minha história.

Quando eu fiz em Lisboa e fiz em Guimarães, e no dia 28 de Março, vou fazê-la no Teatro Circo de Braga, enquadrado no Dia Mundial do Teatro. E toda essa relação é para que as pessoas que venham ver. Cada um faz o seu caminho, mas as questões que estão lá são partilhadas, e cada um de nós pode encontrar as suas respostas.

Você recua até 1977 para falar de uma viagem de carro onde viu brancos a serem queimados num Fiat vermelha. Nunca se esquece o que se vê?

Quer dizer, quando são coisas tão traumatizantes, é difícil esquecer. E depois tem a ver com o que se passou depois. Porque havia esse período, depois da independência, havia, como eu digo, uma raiva extremamente forte contra os brancos portugueses, contra os mestiços. É por isso que eu conto que, num autocarro em Maputo, de repente, eu estava com os meus pais e com o meu irmão, e as pessoas começaram a gritar: "Abaixo o mulato! Mulato não tem bandeira! Abaixo o mulato!"

Tudo isso, obviamente, são coisas que, quando somos crianças, não percebemos muito bem o que se passa, mas percebemos que há uma agressividade extremamente forte e que as pessoas nos têm como responsáveis de algo. Enquanto criança, não percebia muito bem, mas depois consegui compreender. Tinha tudo a ver com o tipo de colonização portuguesa, com o facto de que os mestiços, obviamente, tinham mais direitos que os negros e menos direitos que os brancos. E essa hierarquia das raças, que foi instaurada pela colonização portuguesa, fez com que, de repente, os mestiços estivessem entre dois lados e fossem insultados. De um lado e do outro.

Para uma criança da minha idade, nessa altura, era extremamente traumatizante, porque, de repente, não sabemos quem somos, e aí fechamo-nos num limbo, fechamo-nos em algo. Não temos identidade, não sabemos quem somos, e estamos no entre-dois, entre o paraíso e o inferno, que é uma das definições religiosas do que é o limbo. Mas no entre-dois racial também: não somos nem brancos, nem negros. Estamos no entre-dois. Nem somos portugueses, nem moçambicanos. Não somos nada. E esse "não sermos nada" que nos é imputado, que nos é dado, que nos é mostrado, quer seja pelos brancos, quer seja pelos negros, foi, não apenas para mim, mas também para milhares de outras pessoas, extremamente difícil durante anos e anos e anos, mesmo depois, quando chegamos a Portugal, pelas mesmas razões.

Em palco, interpreta também Francisco, o seu pai. Foi importante trazê-lo para a peça?

Sim, sim, era extremamente importante, porque o espetáculo começou a ser pensado a partir de uma conversa que tive com ele. Uma das conversas, das discussões que tive durante uma parte da minha adolescência e mesmo durante a minha vida de adulto com o meu pai. Conversas extremamente difíceis, como acontece com muitos pais e filhos. Conflitos de gerações, mas não apenas isso, também sobre o olhar que cada um de nós tinha sobre a colonização e sobre o que se tinha passado em Moçambique.

E, de repente, a partir de uma dessas conversas, eu disse: "Não, eu tenho que fazer algo no palco. Eu sou um artista, tenho que tentar encontrar uma maneira de contar tudo isto, porque nunca vi um espetáculo sobre este assunto em palco em Portugal". E a voz, o percurso de todos estes milhares de mestiços, mulatos, como éramos chamados, é importante. E eu penso que há muita gente que se vai identificar, que vai reconhecer e que será tocada pelo facto de estarmos a falar disso. E foi exactamente o que aconteceu em Lisboa, no Porto. Fizemos também no FITEI, no Porto, e em Guimarães. Espero que o mesmo aconteça em Braga, em Março.

Essa relação traz toda uma história. E é verdade que, de repente, o pai existe. O meu pai fala assim ainda hoje. É um homem que viveu metade da sua vida em Portugal, mas que continua a ter um sotaque moçambicano, continua a falar com uma musicalidade, com um ritmo próprio que é o dele. Com o seu sotaque moçambicano. Ainda hoje, em Portugal, quando eu o imito, as pessoas percebem logo que ele é moçambicano. E há palavras que só ele diz. E há palavras que os portugueses reconhecem como típicas dos moçambicanos ou angolanos.

Houve, no entanto, um trabalho de tradução e de adaptação para que isso pudesse ser ouvido hoje aqui por um público francês. Como é que eu consigo dar um sotaque? Eu não podia, por exemplo, tentar criar um sotaque francófono, quer dizer, um sotaque do Congo ou dos Camarões, ou de outra antiga colónia francesa, porque não é exactamente a mesma coisa. Eu tinha muito receio de cair num clichê. Tive que encontrar uma maneira de dar um ritmo à voz dele, dar um ritmo à sua maneira de falar, para que as pessoas percebessem que tem muito a ver com ele.

E, ao mesmo tempo, há pequenas expressões que têm a ver, obviamente, com o facto de ser um africano que fala. Tudo isso, sim, era extremamente importante para que as pessoas pudessem ver que é um homem já de uma certa idade e, sobretudo, um homem que é representativo. Mais uma vez, representativo de pessoas da geração dele, mesmo um pouco mais novas, que continuam a interrogar-se e a olhar de uma certa maneira para aquilo que foi o colonialismo português. E como isso é importante de ser ouvido.

Na peça fala também sobre o facto de ter crescido a admirar os brothers americanos e a força do Black Power e dos Black Panthers. De onde vem essa identificação?

Tem muito a ver, porque está relacionado com toda a segregação racial. A história da segregação racial americana é uma história que, na Europa, conhecemos relativamente bem. Mas a verdade é que nasci numa colónia portuguesa, numa colónia que enviou bastantes escravos para o Brasil e para os Estados Unidos. Aliás, eu falo disso no espectáculo: digo que a minha avó nasceu em 1910 e que o último barco negreiro clandestino que saiu do porto de Lourenço Marques, na altura, foi em 1920. Quer dizer, a minha avó tinha dez anos. Isso significa que é algo que está presente, que está lá.

Essa relação com os americanos é importante. E depois, falo de outra questão: quando nós chegámos a Portugal, nos anos 80, como as séries americanas tratavam esse tema. Falo, por exemplo, de Raízes, que era uma série daquela altura. De repente, víamo-nos nós próprios, víamos os nossos antepassados. E depois há a música americana: Havia uma identificação que era extremamente importante, algo que não existia em Portugal. Não havia, na época, algo semelhante em relação aos negros moçambicanos, porque nessa altura não havia muita produção cultural visível — nem na televisão, nem na rádio, nem na música.

Eu falo da música negra americana, que me acompanhou e que acompanhou toda a minha família. Essa identificação era extremamente importante. Como para os americanos, o mestiço é negro — one drop of Black Blood, como eles dizem —, para mim, de repente, veio a conclusão: "Ok, afinal, eu sou negro mesmo". Mesmo que antes já não soubesse muito bem o que era. Toda essa indefinição era extremamente difícil. Mas, quando me conectava à música negra americana, havia algo que trazia orgulho nos meus antepassados, orgulho na minha cor de pele, orgulho na minha história.

Os americanos tinham - e ainda têm hoje - uma relação muito forte com esse orgulho. E, ao olhar para a história da colonização moçambicana, eu sentia dificuldade em encontrar essa mesma relação. Era difícil sentir orgulho daquilo que sou e das minhas raízes.

Portugal demorou muito a falar abertamente sobre as antigas colónias...

Não, não havia. Não havia muita abertura. Não se falava da guerra colonial, nem dos moçambicanos que chegaram a Portugal. Porque, como eu digo no espetáculo, nós obviamente não éramos pessoas escravizadas - isso já tinha acabado há muito tempo. Não éramos retornados, que eram os colonos que tinham voltado para Portugal. E não éramos, como diziam em Portugal, "portugueses de gema". O que significa que não éramos nada disso. Então, o que éramos? Essa indefinição tornava extremamente complicado e difícil encontrar uma identificação própria, ter orgulho naquilo que eu era.

A cultura negra americana era uma bóia de salvação, porque havia algo lá, algo muito claro e forte naquilo que eles diziam. Quando eu falo de James Brown e da música I’m Black and I’m Proud, por exemplo, era isso - uma música incrível, Black and Proud. E os meus primos e eu ouvíamos isso e dizíamos: “Sim, sim, sim!” Mesmo naquela época, quando estávamos no Norte, numa aldeia, fosse em São Pedro do Sul ou depois na Serra do Caramulo, ou no Barreiro, ou mais tarde em Sintra. Tudo isso, mesmo que o que estava à nossa volta não fosse aquilo, fazia-nos ver quem éramos, apesar dos insultos que nos rodeavam.

Havia os insultos com os quais eu e os meus primos crescemos: "preto" e todas essas coisas terríveis. Crescemos com isso, mas, pouco a pouco, surgiu uma vontade de ir além disso, de nos construirmos enquanto homens, enquanto adultos, e de dizermos: “Ok, tudo bem, nós somos isso tudo. Mas isso tudo é importante, porque tem a ver com a minha história”.

Essa história está ligada à história das minhas avós, ao facto de eu ter nascido numa colónia. Mas, ao mesmo tempo, não posso esquecer que há outra parte de mim - a história dos meus avós, que eram brancos, colonos do Norte de Portugal, do centro de Portugal. Isso também faz parte da minha história. É necessário encontrar um equilíbrio, um equilíbrio que me permita caminhar com serenidade e deixar o limbo para trás.

Na peça, fala de agressões que sofreu e menciona a morte de Bruno Candé. Apesar de avanços, ainda há muito trabalho pela frente em Portugal?

Ainda há muito trabalho, como mencionou António de Almeida Mendes, o historiador, porque, embora em Portugal se tenha feito um grande esforço, especialmente nos últimos 20 anos, para olhar para a colonização e questionar a história comum enquanto sociedade, ainda persistem velhos hábitos. Há ainda uma forma de olhar para as pessoas que vieram das ex-colónias e para os seus descendentes, os afrodescendentes, que vivem e nasceram em Portugal, de uma maneira que perpetua preconceitos. E isso é extremamente difícil de superar.

Quando menciono o Bruno Candé, faço-o porque, antes, falei de Alcindo Monteiro, que morreu em 1995, três anos após eu próprio ter sido agredido por skinheads no Porto. Tudo isso serve para reflectir sobre como a sociedade portuguesa lida com estas questões. A morte do Bruno Candé, que ocorreu em 2020, é algo que eu trago à tona porque foi muito recente. 2020 foi ontem. E, ainda hoje, vemos episódios chocantes, como o que aconteceu recentemente em Lisboa, onde pessoas foram encostadas à parede numa rua do centro da cidade. São situações que, para mim, são incompreensíveis e me deixam em estado de choque. Não sou o único - felizmente, muitos ficaram igualmente chocados, porque é algo que não conseguimos aceitar.

Não consigo entender como, em pleno 2025, a sociedade portuguesa e o Estado português ainda possam justificar acções que são absolutamente horríveis, absolutamente terríveis. Que algo assim possa acontecer... É como se estivéssemos a recuar no tempo, para períodos de segregação racial. Falávamos antes sobre os Estados Unidos nos anos 40 e 50, mas agora estamos em 2025. Não é admissível que, hoje, em Portugal, ainda haja formas de menosprezar, rotular e rebaixar o outro de maneira tão flagrante. Isso deixa-me completamente desamparado.

Sei que houve uma grande manifestação em Lisboa, onde as pessoas saíram às ruas para dizer: "Não nos encostem à parede". Este tipo de resposta é essencial, porque não é possível que, num país como Portugal, que faz parte da União Europeia há tantos anos, ainda hoje estejamos presos a uma mentalidade que menospreza o outro, que rebaixa, e que mantém uma relação racista tão profundamente enraizada. Não é possível. Não é aceitável.

Imagino que acompanhe a actualidade moçambicana. Como é que observa os recentes protestos e agitações políticas?

Olho com grande preocupação, porque é uma outra história que, embora não tenha directamente a ver com esta peça, de certa maneira tem, já que está ligada ao período da colonização. Quer dizer, Moçambique é um país extremamente jovem. Este ano, Moçambique festeja 50 anos de independência. Desde 1975, o mesmo partido tem gerido todo o país. Até 1992, sob um regime marxista-leninista, e, a partir de 1992, deixou de ser a República Popular de Moçambique para se tornar a República de Moçambique. Portanto, é uma democracia em que há eleições. Durante muitos anos, essas eleições eram fraudulentas. As pessoas sabiam, mais ou menos, que eram fraudulentas. Mas tudo isso era feito com o aval, digamos assim, quer de portugueses, quer de outros países, porque era necessário que o país continuasse num caminho para a democracia.

E isso não é apenas a história de Moçambique; está ligado a muitas outras democracias no continente africano pós-independência. Mas a verdade é que, 50 anos depois, estamos num caminho que, infelizmente, vejo como um beco sem saída. Não apenas porque houve outra pessoa que ganhou as eleições - e está provado, não sou só eu que digo isto, está provado que Venâncio Mondlane ganhou as eleições - mas, por outro lado, também porque há uma juventude que já não quer absolutamente continuar da mesma maneira. E o que estamos a assistir é a uma juventude extremamente forte, que diz "Basta, basta! Não podemos continuar assim".

Essa forma de os jovens, essencialmente jovens, irem para a rua e serem mortos - com mais de 200 mortos - é absolutamente terrível. Mas há uma vontade extremamente grande de fazer com que isso mude, porque um país com uma riqueza natural tão grande, como é que ainda hoje pode ser um dos países mais pobres do mundo? Obviamente, isso também está relacionado com a forma como a descolonização foi feita e como os países europeus e o Ocidente olharam para a descolonização feita pelos países africanos. Tudo isso está ligado à história.

Estou bastante preocupado porque não consigo prever o que poderá acontecer. Sei que houve uma tomada de posse com os deputados do partido Podemos e, ao mesmo tempo, Venâncio, que foi quem realmente ganhou, diz que "Não, isto não é possível". As pessoas voltam novamente para a rua e, novamente, são baleadas. O que é que poderá acontecer para que tudo isso termine e para que haja algo em que as pessoas aceitem que o país tem que mudar? Por enquanto, confesso que não sei muito bem o que poderá acontecer. Estou bastante inquieto.

França: “François Bayrou não pode suprimir a reforma das pensões”
15 January 2025
França: “François Bayrou não pode suprimir a reforma das pensões”

O primeiro-ministro francês apresentou esta terça-feira, na Assembleia Nacional, a sua declaração política geral. O chefe do Executivo ressalvou a dívida da França, o Orçamento de 2025 e a Reforma das Pensões. Rafael Lucas, professor catedrático em Bordéus refere que “François Bayrou não pode suprimir a reforma das pensões”, "que vai ter que ser aplicada de uma maneira ou de outra”.

O primeiro-ministro francês apresentou esta terça-feira, 14 de Janeiro, na Assembleia Nacional, a sua declaração política geral. Um discurso de 01h30 em que o chefe do Executivo insistiu na importância da dívida da França, na aprovação do Orçamento de 2025, assim como no caráter essencial da Reforma das Pensões.

François Bayrou anunciou retomar o projecto da Reforma das Pensões, em conjunto com os parceiros sociais. Todavia, não se comprometeu tanto como pretendiam os socialistas que defendem um retorno ao debate sobre a controversa lei adoptada em 2023, por Élisabeth Borne, actual número dois do executivo, na altura primeira-ministra, com o recurso a alínea três do artigo 49 da Constituição, ou seja, aprovação por decreto sem passar pelo voto dos deputados. 

Bayrou optou por um discurso generalista, acusado de ser impreciso e vago, mas que visa essencialmente evitar a censura. O partido de esquerda França Insubmissa (LFI) apresentou imediatamente uma moção de censura que será debatida esta quinta-feira, 16 de Janeiro, mas que o partido da extrema-direita União Nacional, não deve apoiar, reduzindo assim as hipóteses de sucesso. 

Rafael Lucas, professor catedrático em Bordéus, no sudoeste de França, sublinha que o primeiro-ministro optou por “evitar a linguagem dura de Michel Barnier [ex-primeiro-ministro, antecessor de Bayrou]”, numa “manobra de equilibrista e perícia de farmacêutico para evitar radicalizar os movimentos e, sobretudo, não descontentar a União Nacional e não melindrar os socialistas.”

Questionado sobre a solução apresentada pelo chefe de Governo para o delicado dossier da Reforma das Pensões, Rafael Lucas refere que “François Bayrou não pode suprimir a reforma das pensões”, por isso escolheu encaminhar este debate para um conclave composto por sindicatos e grupos patronais. A opção apresentada surge assim como uma via “democrática, baseado num debate aberto que deverá ser arbitrado pelo Tribunal das Contas”. 

O professor catedrático acrescenta que o primeiro-ministro francês “não pode recuar, anular ou cancelar esta reforma, que vai ter que ser aplicada de uma maneira ou de outra”. Ressalva ainda que tendo em conta os panoramas económico e demográfico franceses a reforma é irreversível.

Imediatamente após a apresentação do programa de Governo, a LFI apresentou uma moção de censura ao executivo. O documento vai ser debatido na Assembleia Nacional esta quinta-feira, 16 de Janeiro, e que, sem o apoio da extrema-direita, não será aprovado. 

 

 

 

 

Charlie Hebdo: Os limites dos cartoons “são os da própria consciência"
08 January 2025
Charlie Hebdo: Os limites dos cartoons “são os da própria consciência"

A França prestou homenagem nesta terça-feira, 07 de Janeiro, às vítimas do atentado perpetrado contra o jornal satírico Charlie Hebdo. Um ataque que tirou a vida a 12 pessoas, destas oito eram elementos da redacção do semanário. Rodrigo de Matos, cartoonista do Expresso, sublinha que os desenhos são “sempre alvo de críticas”, por vezes, “exageradas”. Questionado sobre os limites dos cartoons, Rodrigo de Matos, responde que “são os da própria consciência".

Dez anos após este que foi o primeiro de vários ataques de um ano sangrento para França, as autoridades francesas actuais e da altura deslocaram-se às antigas instalações do Charlie Hebdo para depositar uma coroa de flores e prestar homenagem aos que ali foram barbaramente assassinados. 

Dos oito elementos mortos da redacção do Charlie Hebdo, cinco eram cartoonistas: Cabu, Charb, Honoré, Tignous e Wolinski. Em causa, caricaturas publicadas, em 2006, consideradas ofensivas no mundo árabe-muçulmano.

A propósito desta data redonda que agora se assinala sob o ataque ao Charlie Hebdo, a RFI ouviu Rodrigo de Matos, cartoonista do Expresso, que sublinhou que os desenhos são “sempre alvo de críticas”, por vezes, “um pouco exageradas”. Todavia, nunca esperaria como reacção “uma tragédia daquelas”.

Questionado sobre os limites dos cartoons, as linhas vermelhas que não podem ser ultrapassadas, Rodrigo de Matos, radicado em Macau, responde que “os limites que há são os da nossa própria consciência. Como cartoonista, os limites de mim para mim estão onde eu acho que a coisa deixa de ter graça. Certamente que os cartoonistas que desenharam aqueles desenhos não achavam isso. E têm o direito de não achar”. 

Rodrigo de Matos defende que “tudo tem o seu lugar” e à pergunta “se isto deve ou não ser feito ou se isto pode ou não ser feito? A resposta é sempre e deve ser sempre que sim, que pode”. E acrescenta que “a liberdade de expressão, em última instância, na nossa maneira de ver ocidental, é também a liberdade que eu tenho de ofender e de ser ofendido”.

O cartoonista, que tem quase 2.000 desenhos publicados ao longo de 18 anos de carreira, diz que “há sempre alguém que se sente ofendido”. Rodrigo de Matos pensa que nesta “sociedade de imediatismo, por um lado, e de cancelamento de opiniões diversas, por outro, estamos a perder a noção da importância do confronto de ideias opostas, do diálogo e do debate entre ideias divergentes”.

O ataque de 07 de Janeiro de 2015 contra o jornal satírico Charlie Hebdo, foi o primeiro de vários que ensanguentou a França e que deu origem ao slogan “Je suis Charlie”, na defesa dos valores da liberdade de imprensa e liberdade de expressão.

Dez anos após, o Charlie Hebdo "continua" numa edição especial intitulada "Indestrutível", com uma capa com um leitor que ri às gargalhadas sentado sobre uma kalashnikov, a arma dos irmãos Kouachi (autores dos atentados).

No editorial desta edição, o director de redacção da revista, Riss, sublinhou que “o riso, a ironia, a caricatura são manifestações de optimismo. Aconteça o que acontecer, seja trágico ou feliz, a vontade de rir nunca desaparecerá".

Para François Hollande, antigo Presidente de França, chefe de Estado em 2015, continua a ser necessário preservar o bem precioso que é a liberdade de expressão, numa era das redes sociais. Hollande que alerta que “ela está ameaçada, por vezes restringida por uma forma de medo que se instalou”, lembrando que “há uma forma de autocensura que se apoderou” das pessoas.

Paris dá nome de Agustina Bessa-Luís a biblioteca
01 January 2025
Paris dá nome de Agustina Bessa-Luís a biblioteca

Desde o passado mês de Dezembro que a cidade de Paris tem uma biblioteca com o nome de Agustina Bessa-Luís. A escritora portuguesa foi homenageada pela câmara da capital francesa, numa iniciativa para promover a literatura portuguesa contemporânea e a obra da autora com uma forte ligação a Paris. 

A antiga biblioteca de Courcelles, no 8.º bairro de Paris, perto da Rue de Lisbonne e do Consulado português, passa agora a chamar-se Biblioteca Agustina Bessa-Luís.

Hermano Sanches Ruivo, vereador da Câmara de Paris, sublinha que “fazia todo o sentido dar o nome de Agustina Bessa-Luís a este espaço”. Na sequência da decisão municipal, o Instituto Camões e a embaixada de Portugal em Paris ofereceram à biblioteca uma série de livros para crianças. Todavia, não é por ter o nome de Agustina Bessa-Luís que podemos encontrar nesta biblioteca toda a obra da autora traduzida para francês. 

A ideia é de o nome dela ultrapassar a obra dela. Por exemplo, tem uma série de citações de Agustina Bessa-Luís que estão nas paredes da biblioteca.

A simbologia não é apenas de ter acesso ao trabalho, à obra de Agustina Bessa-Luís, é de claramente inscrever Agustina Bessa-Luís dentro da literatura mundial e dentro do reconhecimento.

Portanto, aqui vamos mais longe do que “simplesmente” dar a possibilidade de mostrar a obra.

Agustina Bessa-Luís foi uma importante escritora contemporânea portuguesa. Escreveu dezenas de romances, entre os mais conhecidos está “A Sibila”. Foi membro da Academia Europeia das Ciências, das Artes e das Letras em Paris. Faleceu em 2019, tinha 96 anos de idade.

Falta de verbas ameaça Santa Casa da Misericórdia de Paris
18 December 2024
Falta de verbas ameaça Santa Casa da Misericórdia de Paris

A Santa Casa da Misericórdia de Paris lançou no início do mês de Dezembro uma campanha de Natal para angariar produtos alimentícios para as famílias portuguesas mais necessitadas em França. Ilda Nunes, presidente da instituição, faz um balanço positivo da iniciativa, sublinhando que em 2024 ajudaram mais de 4500 pessoas, contudo alerta para a situação financeira da Santa Casa da Misericórdia que corre o risco de fechar as portas se as pessoas deixarem de ajudar a instituição.

Qual é o objectivo desta campanha de Natal realizada pela Santa Casa da Misericórdia de Paris?

O objectivo da Santa Casa da Misericórdia de Paris é ajudar as pessoas que têm dificuldades, ou seja, dar de comer a quem tem fome.

Quem são os parceiros desta campanha de Natal?

São as grandes superfícies comerciais que permitem aos voluntários - da Santa Casa da Misericórdia - estarem presentes durante o fins-de- semana para recolherem os produtos [doados]. Contudo, a instituição espera, no próximo ano, conseguir mais voluntários de forma a poder angariar mais produtos em alguns dias da semana, alargando assim o período de recolha.

É difícil encontrar voluntários para este tipo de campanhas?

É difícil encontrar voluntários para qualquer tipo de acções. Eu compreendo que estejamos todos muito ocupados com o trabalho, com a família, mas se dedicarmos duas ou três horas às actividades da Santa Casa, já seria muito bom para ajudar as pessoas que mais precisam.

Esta campanha de Natal é feita em todo o território francês?

Por enquanto, a campanha é feita apenas na região parisiense. Porém, o trabalho da Santa Casa da Misericórdia abrange qualquer pessoa que esteja em dificuldade no território francês. A nossa ideia é tentar criar delegações em vários pontos da França. Por exemplo, já estamos a fazer progressos em Bordéus, Lyon e também nas diversas zonas ou regiões onde existam consulados de Portugal em França.

Quem são as pessoas que precisam de ajuda?

São as famílias numerosas, mães solteiras, pessoas idosas -que não descontaram o suficiente para a reforma e que se encontram em com dificuldades - casais recém - chegados à França e que têm crianças pequenas. Em 2024, a Santa Casa da Misericórdia ajudou, no mínimo, 4500 pessoas e temos consciência de um aumento consequente dos pedidos de ajuda.

Nestes pedidos não estamos só a falar de bens alimentares. Há pessoas que nos pedem apoio psicológico e nós temos uma equipa de psicólogos que os podem receber sem pagarem, como é óbvio. Também ajudamos as pessoas a constituir dossiês, processos de pedidos de reforma, e acompanhamos aqueles que se sentem mais sozinhos. Estamos a falar de todo o tipo de apoio.

Nesta altura do Natal, quais são as principais necessidades?

Nesta altura do ano, todos gostariam de ter uma refeição idêntica à que tinham em Portugal. Uma ceia de Natal com os produtos portugueses.

O bacalhau, o azeite, a batata e o bolo rei…

Sim. Mas depois, durante o ano, as necessidades vão desde o arroz até às conservas.

Há também pedidos para os produtos de higiene…

Exactamente.  Muitas vezes nós temos de os comprar, porque as pessoas não pensam em doar os produtos de higiene. Depois, há pedidos para o leite e fraldas para as crianças.

O nosso grande problema é que dentro de dois meses, três meses no máximo, vamos ter de comprar mais produtos e para o fazer necessitamos de mais verbas.

Como é feita esta redistribuição destes bens?

Temos listas das pessoas que ajudamos durante todo o ano e que já estão habituadas a receber um cabaz de Natal. Todavia, as pessoas que precisam de ajuda podem-nos contactar através da nossa linha telefónica que funciona 24 horas por dia e sete dias por semana.

Considera que as pessoas são mais solidárias nesta altura do ano? Ou a crise que se vive actualmente, também aqui em França, está a ter um impacto neste tipo de acções?

É evidente que tem impacto para qualquer um de nós. Sinceramente, este ano, tendo em conta a situação económica do país, pensei que íamos recolher menos bens, porém os retornos que tive é que - em vários sítios - as pessoas doaram ainda mais. Estou felicíssima porque isto quer dizer que nós continuamos a preocupar-nos com o próximo.

Quem quiser contribuir, onde é que se pode dirigir?

Pode ligar para o número de telefone da Santa Casa da Misericórdia de Paris e perguntar qual é o sítio mais próximo para fazer as doações. Também temos um local, 7 Av. de la Porte de Vanves, no 14º bairro de Paris, onde as pessoas se podem dirigir e deixar os produtos.

Quais são as dificuldades com as quais se depara a Santa Casa da Misericórdia, uma estrutura que depende muito da solidariedade?

É complicado e difícil ao mesmo tempo. Mas quem se lança nesta aventura não teme as complicações, nem as dificuldades. Tem que estar sempre em alerta, pronta para melhorar a situação.

A falta de financiamento poderá, de certa forma, penalizar alguma actividade?

A falta de verbas pode levar mesmo a que a Santa Casa da Misericórdia de Paris encerre as portas.

E há esse risco?

Há pouco falei-lhe do local que nós sub-alugamos no 14º bairro de Paris, em 7 Av. de la Prte de Vanves, um contrato que chega ao fim a 31 de Março de 2025. Neste momento, temos duas opções: ou encontramos outro local ou arranjamos uma solução. A nossa grande dificuldade é sempre a falta de verbas, mas estamos a tentar resolver esse problema. Seria dramático se a Santa Casa da Misericórdia de Paris, a única em França, fechasse portas por falta de verbas.

Quer deixar aqui um apelo?

Deixo um apelo para que as pessoas [nos continuem a apoiar]. Sinceramente, espero que possamos encontrar uma solução para que a Santa Casa da Misericórdia de Paris possa continuar a desenvolver o trabalho - que faz há 30 anos - e que tem sido positivo. Claro que é muitas vezes insuficiente por falta de meios, mas acredito que vamos encontrar uma solução, antes de 31 de Março.

“França evita "shutdown”
11 December 2024
“França evita "shutdown”

O Conselho de Ministros aprovou nesta quarta-feira, 11 de Dezembro, o projecto de lei especial que permite a cobrança de impostos a partir de 1 de Janeiro. O economista Carlos Vinhas Pereira explica que esta lei temporária renova o orçamento de 2024 para o ano de 2025, até que seja aprovado um novo orçamento, evitando “o famoso shutdown americano”.

O projecto de lei especial, que prevê a cobrança de impostos a partir de 1 de Janeiro, foi aprovado em Conselho de Ministros, todavia o Governo insistiu na necessidade de se adoptar “o mais rápido possível” um orçamento para 2025.

Esta lei temporária permite “a continuidade dos serviços públicos e da vida do país”, e pode ser utilizada quando o Estado fica sem orçamento no dia 1º de Janeiro. O economista Carlos Vinhas Pereira explica que esta lei temporária renova o orçamento de 2024 para o ano de 2025, até que seja aprovado um novo orçamento, evitando “o famoso shutdown americano”.

“[Esta lei] está prevista na Constituição francesa, artigo 47, vai permitir simplesmente assegurar a continuidade orçamental do Estado francês para evitar o famoso shutdown americano. Esta lei tem que ser adoptada antes do dia 31 de Dezembro, evitando que a França fique bloqueada”, disse.

A demissão do Governo de Michel Barnier deixou pendente a apreciação de um projecto de orçamento para 2025 - no Parlamento - cuja aprovação antes do final do ano se torna improvável na ausência de um novo Governo.

Carlos Vinhas Pereira refere a que este texto - que inclui apenas dois artigos - autoriza o Governo a continuar a cobrar os impostos existentes, até que seja votado um orçamento formal.

Este dispositivo permite ainda a renovação das despesas do Estado ao nível de 2024, através de “decretos de abertura dos créditos aplicáveis”. As outras disposições devem permitir ao Estado e à Segurança Social contrair empréstimos nos mercados financeiros, através das agências específicas (AFT e Acoss), a fim de evitar a suspensão dos pagamentos.

“É uma lei muito simples e feita para ser adoptada rapidamente, tanto pelo Conselho de Ministros, como pelo Parlamento. O mais importante é que o Governo continua a poder cobrar o imposto, havendo ainda uma recondução da despesa e das receitas do Estado idêntica à que foi prevista no orçamento de 2024”, refere.

A maioria das forças políticas representadas no Parlamento veio dizer que não se vai opor a este projecto de “lei especial”. Todavia, alguns deputados da Nova Frente Popular, nomeadamente da França Insubçissa, e da União Nacional pretendem apresentar uma alteração a esta "lei especial", permitindo a indexação da tabela do imposto sobre o rendimento.

O economista lembra que esta alteração evitaria que 18 milhões de franceses pagassem mais impostos, sublinhando que “como não houve indexação da grelha dos impostos e as pessoas tiveram um aumento do salário ligado à inflacção, vão pagar mais impostos do que estava previsto no Orçamento de 2025”.

No entanto, o Conselho Constitucional emitiu um parecer sobre a interpretação deste ponto específico da lei, bem como sobre a constitucionalidade desta medida específica no âmbito de uma lei especial e considerou que “as novas medidas fiscais”, não sendo consideradas “necessárias para assegurar a continuidade da vida nacional, não se enquadram no domínio da lei especial”.

O Conselho Constitucional estima que a indexação não faz parte das medidas “que tenham lugar em lei especial”, porque ultrapassa “a autorização para continuar a cobrar estes impostos”.

 De fora desta “lei especial” do orçamento fica o aumento das pensões, aplicando-se as regras do Código da Segurança Social. A partir de Janeiro de 2025, todas as pensões dos trabalhadores do sector privado e dos funcionários públicos vão aumentar de acordo com a inflação, 2,2%, ou seja, um valor acima do que estava previsto no orçamento de Michel Barnier, que previa congelar as pensões no próximo ano durante seis meses.

Carlos Vinhas Pereira considera que esta medida vai ter um impacto negativo nos cofres do Estado francês, numa altura em que o país precisa de fazer economias.

“O Governo ou o Estado francês vão ter que assumir mais 4 milhões, o valor a pagar pelo aumento das pensões, quando é público que o país precisa de fazer poupanças na ordem dos 60 mil milhões de euros. É uma situação grave e se não houver um sinal do novo Governo, haverá, com certeza, uma reacção dos investidores, sobretudo, das [agências] de notação e dos bancos que vão aumentar a taxa de juro da França. A França está a pagar taxas de juro ao nível da Grécia”, nota.

Face ao impasse político que se vive no país, o economista avança que este ano fica marcado “por um recorde do número de falências das empresas” e antecipa um 2025 complicado para o sector económico, sem grandes reformas estruturais,

“Não vejo como é que não pode ser complicado. A falta de maioria no Parlamento, mesmo no caso de haver um Governo, não vai permitir grandes reformas. Não há possibilidade de dissolver a Assembleia, portanto haverá uma continuidade. Não se poderão tomar grandes decisões no sentido de melhorar a situação financeira de França. Tinha que haver um consenso, tanto de esquerda como de direita, e neste momento uma parte quer mais despesas públicas para melhorar a saúde, aumentar os salários - o que se compreende- e do outro lado há uma vontade de cortar neste tipo de despesa para poder resolver o problema do défice francês”, admite.

“Paésine” de Francisco Tropa no Novo Museu Nacional do Mónaco
05 December 2024
“Paésine” de Francisco Tropa no Novo Museu Nacional do Mónaco

De 06 de Dezembro de 2024 e até 21 de Abril de 2025, o Novo Museu Nacional do Mónaco acolhe a exposição “Paésine” de Francisco Tropa. Uma mostra que é feita em colaboração com a Fundação Serralves, no Porto, Portugal, que acolhe neste momento a exposição “ⒶMO-TE” do  artista plástico português. A curadoria da exposição monegasca ficou a cargo de Célia Bernasconi.

A partir de amanhã e até 21 de Abril de 2025, o Novo Museu Nacional do Mónaco acolhe a exposição “Paésine” de Francisco Tropa. Uma mostra que é feita em colaboração com a Fundação Serralves, no Porto, Portugal, que acolhe neste momento a exposição “ⒶMO-TE” do  artista plástico português. A curadoria da exposição monegasca ficou a cargo de Célia Bernasconi.

Em declarações à RFI, Francisco Tropa explicou que o nome da exposição “Paésine” vem das pedras-paisagem, originárias da região de Florença: “são pedras que criam uma paisagem, que imitam paisagens, que parecem naturais”. Este jogo entre o real e a representação é marca constante do trabalho de Tropa.

Esta exposição em duas vertentes constitui a maior exposição monográfica de Francisco Tropa alguma vez apresentada. Em Portugal, um percurso mais longo dos últimos 30 anos do artista e no Monaco uma mostra mais centrada nos últimos 12 anos de carreira de Francisco Tropa.

O percurso pensado por Francisco Tropa para a Villa Paloma começa no exterior, com “Penélope” no terraço, a olhar o mar. A figura do feminino está muito presente na obra aqui exposta, “sobretudo na escultura. É a Vénus da gruta e na escultura é o corpo na gruta. É esta ideia de feminino que nasce no interior da caverna, que me interessa bastante”.

A exposição foi pensada a partir da arquitetura do museu, que é uma arquitetura em três andares. Uma casa art déco em três andares e cada andar com duas salas.

De certa forma, a arquitetura do espaço deu-me a métrica para poder começar a pensar a estrutura de uma exposição.

Criei uma espécie de estrutura que se sobrepõe e que vai dividir - sobretudo os dois andares de cima - em quatro.

As salas são divididas por uma diagonal com uma projecção, portanto modifiquei a arquitectura de forma a conseguir construir um outro género de narrativa”. 

80 anos de existência e de sucessos para o Lille com sotaque português
28 November 2024
80 anos de existência e de sucessos para o Lille com sotaque português

A equipa francesa do Lille festejou os seus 80 anos de existência no passado fim-de-semana durante o triunfo da equipa do Norte da França por 1-0 frente ao Rennes.

Em 80 anos, o Lille alcançou quatro títulos de campeão de França da primeira divisão de futebol masculino, bem como seis Taças, uma Supertaça e uma competição europeia, a extinta Taça Intertoto.

Ao longo destes anos todos, a presença lusófona foi-se intensificando. O primeiro lusófono acabou por ser o português Figueiredo que vestiu a camisola da equipa francesa de 1986 a 1989.

A partir daí vários foram os portugueses, os brasileiros, ou ainda angolanos, um cabo-verdiano, um moçambicano e um guineense a terem vestido a camisola dos ‘Dogues, alcunha da equipa gaulesa.

De notar as estreias: O primeiro brasileiro foi o avançado Walquir Mota em 1992, depois seguiram-se Capita, avançado angolano em 2020, Ryan Mendes, internacional cabo-verdiano em 2012, Reinildo, defesa moçambicano em 2018, e Edgar Ié, internacional guineense em 2017.

No total cerca de 40 jogadores lusófonos passaram pelo clube gaulês, isto sem esquecer dirigentes e treinadores. Luís Campos foi o director desportivo, Paulo Fonseca passou como treinador pelo clube, ou ainda Jorge Maciel que foi treinador-adjunto de vários técnicos que estiveram no banco do Lille.

Com sucesso ou com maiores dificuldades, a presença lusófona marcou um clube do Norte da França que durante metade da sua existência não teve qualquer jogador que falasse português.

Os dois primeiros títulos de Campeão de França, em 1946 e em 1954 não contaram com a presença de comunidades lusófonas nos plantéis.

No entanto, em 2011, na conquista do terceiro título, eram dois: os brasileiros Émerson Conceição e Túlio de Melo.

Em 2021, a ajuda das comunidades lusófonas foi preponderante, na conquista do título, com os portugueses Tiago Djaló, José Fonte, Xeka e Renato Sanches, o brasileiro Luiz Araújo e o moçambicano Reinildo, bem como os treinadores-adjuntos Jorge Maciel e Carlos Pires, e sem esquecer o conselheiro do presidente do Lille, Luís Campos, e o coordenador de formação, Luís Norton de Matos, este último foi aliás selecionador da Guiné-Bissau durante a carreira.

A RFI teve a oportunidade de abordar este momento histórico com José Fonte, capitão da equipa do Lille quando foi Campeão em 2021, aliás foi o único capitão estrangeiro a conquistar o título pelos ‘Dogues’.

José Fonte, agora defesa do Casa Pia em Portugal, vestiu a camisola do Lille entre 2018 e 2023. Em declarações à RFI, para além de falar do seu regresso ao território português onde ainda joga aos 40 anos, José Fonte admitiu que foi um momento emocionante regressar para os 80 anos do LOSC.

José Fonte, defesa central português, para além de se ter sagrado campeão de França, também conquistou o Campeonato da Europa em 2016 e a Liga das Nações europeias em 2019 com a selecção portuguesa.

Recuando no tempo, a RFI também teve a oportunidade de falar com o defesa brasileiro Rafael Schmitz, hoje com 43 anos, que envergou a camisola do Lille entre 2001 e 2007.

O antigo futebolista brasileiro assegurou ser um momento único regressar a Lille, ele que também abordou a sua actual vida profissional.

De notar que Rafael Schmitz, antigo jogador do Lille, conquistou a Taça Intertoto com o clube francês, prova da UEFA que já foi extinta.

Por fim, a RFI falou com o lateral brasileiro de 34 anos, Ismaily, que iniciou a sua terceira temporada com a camisola do Lille.

Ele, que chegou recentemente ao clube, afirmou que é uma equipa e uma região que merece êxitos em França.

Ismaily, defesa brasileiro, ingressou no Lille em 2022, isto após nove temporadas nos ucranianos do Shakhtar Donetsk, tendo saído após o início da invasão russa à Ucrânia.

De referir que o Lille festejou os seus 80 anos de existência a 25 de Novembro de 2024, sendo o clube do Norte da França com o maior número de títulos de Campeão conquistados, quatro, num historial dominado pelo Paris Saint-Germain com doze troféus.

De notar por último que a história do Lille também foi marcada pela passagem de Éder, internacional português que representou a equipa francesa entre 2016 e 2017, numa altura em que Portugal venceu o Euro 2016 com o único tento luso a ser apontado na final por Éder que deu o primeiro troféu à selecção das Quinas derrotando a França por 1-0 após prolongamento.

A história do Lille foi contada por Maxime Pousset no livro "LOSC, 80 anos de história e de orgulho".

O Magazine Vida em França regressa na próxima semana, e, entretanto, podem ouvir ou voltar a ouvir o programa desta semana em rfi.fr/pt.