O que há de comum entre todas as comunidades lusófonas, para além de uma língua e de um passado histórico? Num evento organizado em Paris pela associação de jovens lusodescendentes Cap Magellan, esteve em debate o futuro das juventudes e comunidades lusófonas e lusodescendentes, um termo aberto às interpretações.
Durante um fim de semana de workshops e conferências organizado pela associação de jovens lusodescendentes Cap Magellan, sociólogos, empreenderores e membros de associações participaram no desafio de questionar e valorizar a lusodescendência, assim como a comunidade lusófona em França.
Numa das conferências, a escritora e activista guineense Lizidória Mendes apresentou o projecto Girl Out Loud, que coordena na Guiné-Bissau junto das populações femininas e que procura replicar em França para a diáspora feminina guineense.
O projecto, criado em 2017 na Colômbia e replicado na Guiné-Bissau em 2020 visa "criar um espaço de meninas para meninas, com objectivo de terem um espaço para poderem expressar assuntos que lhes dizem respeito", desde a utilização de métodos contraceptivos, à violência doméstica, ao casamento precoce ou forçado... Vários são os temas abordados.
"Na Guiné-Bissau, é muito difícil encontrar famílias que tenham o hábito de falar com os seus filhos à volta da intimidade e sexualidade. Então as crianças procuram um refúgio, as adolescentes falam com colegas sobre as dúvidas que têm", expõe Lizidória Mendes, coordenadora deste projecto que conta também com actividades de empoderamento económico e que conta actualmente com cerca de 70 meninas.
Em França há quatro meses no âmbito de um mestrado em sociologia focado em estudos de género, Lizidória Mendes explora questões ligadas à participação cívica das mulheres, e mais especificamente à volta dos impactos da lei da paridade, adoptada na Guiné-Bissau em 2018. Um tema sobre o qual publicará um livro em Maio deste ano.
A escritora e estudiosa guineense foi convidada a este evento organizado pela associação Cap Magellan também enquanto lusófona e guineense na diáspora. A propósito do termo "lusofonia", Lizidória Mendes considera que existe na comunidade uma conexão através da língua e da cultura.
"Para mim, a lusofonia tem que ser vista na perspectiva da conexão, da língua, da cultura. Porque é só assim que nos podemos aproximar. Foi o que este evento conseguiu fazer porque não foi feito só a pensar nas pessoas nascidas em Portugal", considera a escritora guineense.
Comunidades lusófonas: um passado comumEm 2025, logo após os cinquenta anos da Revolução de Abril, celebram-se as independências luso-africanas. Uma data comum a várias nações, que não terá sido vivida da mesma forma por todos, mas que representa um elo histórico partilhado por todos os países lusófonos de Africa e por Portugal.
Marta Bernardino é historiadora lusodescendente, nascida em Bruxelas de pais portugueses e tem como área de predilecção a história colonial e pós-colonial. Em que medida é que a sua origem lusodescendente terá influenciado a escolha do percurso académico e profissional?
"Tem a ver numa certa medida com as conversas que tinha com o meu pai, que me falava da história colonial e principalmente das guerras coloniais. Foi algo que impactou quase todas as famílias portuguesas, inclusive a dele", recorda a investigadora.
Apesar de trabalhar sobre a história colonial belga na República Democrática do Congo, Marta Bernardino confronta-se também com questões ligadas à lusofonia e nomeadamente à questão de saber o que liga todas as comunidades lusófonas em França, que sinergias existem e o que as liga entre si para além da língua portuguesa.
A história colonial, este passado comum a Portugal e às antigas colónias é algo que, cinquenta anos depois, ainda influência as nossas formas de ser e de pensar, de acordo com a historiadora. E neste contexto, a lusofonia, "espaço cultural e multicultural fantástico", diz Marta Bernardino, "consegue reunir comunidades diversas".
"O primeiro ponto que liga as comunidades lusófonas entre si é a história. O passado colonial e pós-colonial faz com que haja uma grande ligação entre todas estas comunidades, há um passado comum, seja ele qual for. As pessoas vão transmitindo geração após geração e acho que são principalmente essas memórias que fazem com que haja uma ligação", considera a historiadora.
Precisamente devido a esta bagagem comun, "é importante conseguirmos ter um diálogo apaziguado sobre este passado e compreender os dois pontos de vista" diz ainda a investigadora ligada à Universidade Católica de Louvain, na Bélgica.
Espaços e vivências comunsTambém presente no evento, a antropóloga Sónia Ferreira trabalhou sobre o conceito de "invisibilidade" da comunidade dos emigrantes portugueses em França. Uma invisibilidade que, diz a investigadora, pode ser replicada no contexto das diásporas luso-africanas em França. Já entre si, as diásporas de língua portuguesa vão-se cruzando, seja em espaços lúdicos como associações ou espaços administrativos, ou mesmo em espaços profissionais.
Em França há por exemplo uma grande presença cabo-verdiana, chegada nos anos 60 e vinda através de Portugal como porta de entrada na União Europeia, assinala a antropóloga portuguesa. "No mercado de trabalho, por exemplo na construção e obras públicas, sabemos que havia trabalhadores lusófonos, nomeadamente portugueses e cabo-verdianos. O que acontece é que em termos associativos, cada grupo constrói as suas próprias redes", explica Sónia Ferreira.
A língua, a história e uma certa ideia da cultura são portanto factores comuns às nações lusófonas. Mas as diferenças que as separam são inúmeras. Afrodescendentes e lusodescentes não têm as mesmas experiências da emigração, recorda a filósofa e investigadora em estudos Afro-Queer Luisa Semedo.
"Existe uma duplicidade. Pegando por exemplo na questão do racismo. É uma realidade que os portugueses podem viver de certa forma mas não séao tão racializados como os luso-africanos", realça a também cronista no jornal Público sobre temas ligados às minorias e à extrema-direita.
E no entanto, por ironia histórica, "os portugueses já viveram muitas coisas que vivem neste momento pessoas árabes ou negras. Houve uma fase da história em que a comunidade portuguesa estava em conjunto com comunidades estrangeiras a lutar contra o racismo", recorda Luísa Semedo.
Recorde-se por exemplo, em França, os "bidonvilles" ou bairros de lata onde viviam emigrantes portugueses que nos anos 1960 fugiam da ditadura salazarista e ali estavam aglutinados. O bidonville de Champigny-sur-Marne chegou a ver habitar 14 mil pessoas naquele período.
"A partir do momento em que Portugal entrou na União Europeia [em 1986], os portugueses passaram a estar numa outra categoria da emigração. Como se os portugueses já não pudessem ser alvo de discriminação ou de racismo", considera a investigadora e titular de um doutoramento em filosofia.
A experiência da emigração é portanto outro ponto comum entre Portugal e países luso-africanos como Angola, Cabo-Verde, Guiné-Bissau. A relação entre ex-colonizador e ex-colonizado é por vezes menos conflituosa do que aquela que França entretém com a Argélia ou com os países francófonos de Africa Ocidental.
"A raíz do racismo, sexismo, homofobia... é a mesma em todo o mundo"Luísa Semedo aproveitou a intervenção no painel intitulado "Liberdade e igualdade: luta contra o racismo, xenofobia e discriminações, luta pela igualdade dos géneros, movimentos feministas e defesa dos direitos LGBTQIA+" para alertar sobre a vulnerabilidade crescente destes direitos, aludindo directamente à extremização de vários poderes políticos pelo mundo.
O perigo, segundo Luísa Semedo, vem do facto de todas estas discriminações terem uma raíz comum. "A raíz do racismo, do sexismo, da homofobia é a mesma quer estejamos em Portugal, quer estejamos em França. É aliás por isso que estamos tão fascinados com o que acontece nos Estados-Unidos, porque sabemos que nos vai tocar também a nós", considera.
Durante este evento, a associação de jovens lusodescentes Cap Magellan distribuiu um formulário a todos os participantes com o objectivo de recolher informações e testemunhos anónimos sobre as comunidades lusófonas a viver em França.
Perguntas como "é favorável a uma maior presença da língua portuguesa no sistema educativo francês?" ou "considera que a comunidade lusófona (família, associações, imprensa) é inclusiva para com as pessoas LGBTQIA+?".
Os dados resultantes deste formulário serão depois transmitidos a instituições francesas e portuguesas, para que estas respondam melhor às necessidades e às vivências das comunidades lusófonas em França.