Joana Gama revisita o "silêncio revolucionário" de Erik Satie
16 December 2025

Joana Gama revisita o "silêncio revolucionário" de Erik Satie

Vida em França

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Joana Gama é uma das figuras mais singulares da música em Portugal. Pianista e investigadora, construiu ao longo de mais de uma década um percurso onde o piano se cruza com outras artes e onde o tempo, o silêncio e a escuta atenta são matéria central. Em 2025, ano do centenário da morte de Erik Satie, regressa a Le Fils des étoiles, obra rara e pouco tocada, apresentada esta terça-feira, 16 de Dezembro, em Paris, na Casa de Portugal da Cidade Universitária, num formato entre concerto e ritual.

A relação com Erik Satie não é recente nem episódica. Desde 2010, que Joana Gama se dedica à sua obra, num trabalho de divulgação que inclui recitais comentados, álbuns discográficos e performances de longa duração. A pianista recorda que Le Fils des étoiles “é um dos grandes mistérios de Satie”, uma obra escrita para o teatro de Joséphin Péladan, num contexto ligado à Ordem Rosa-Cruz, onde “os prelúdios são conhecidos, mas os actos ficaram inacabados, sobrevivendo em manuscritos fragmentários”. Essa incompletude contribui, diz, para a profundidade e para o carácter imóvel e místico da peça.

Para Joana Gama, trata-se de uma música que exige outra forma de ouvir. “Não é fogo-de-artifício nem virtuosismo exibido; é o oposto”, sublinha, acrescentando que esta obra pede “concentração absoluta e presença no momento”. A própria estrutura, labiríntica, com materiais que reaparecem em diferentes actos, obriga a intérprete a uma atenção rigorosa: “os mesmos elementos levam-nos por caminhos diferentes”.

O contexto simbólico da obra continua a informar a interpretação contemporânea. Joana Gama explica que conhecer a vida, os escritos e as relações do compositor francês Erik Satie “alimenta inevitavelmente a música”. O universo de Joséphin Péladan, marcado pelo misticismo e pelo ritual, permanece como referência, ainda que a intérprete tenha optado por um concerto-ritual centrado nos elementos naturais. “Tudo o que está em baixo é como o que está em cima”, recorda, evocando a tradição hermética que atravessa a obra.

Mais do que um concerto, trata-se de uma performance pensada ao detalhe. “A preparação não é só musical”, afirma Joana Gama. Inclui reflexão sobre o ambiente, a luz, o figurino e a forma de estar em palco. “Tudo faz parte”, diz, criticando uma formação musical que muitas vezes ignora a dimensão cénica. O gesto final, o silêncio depois da última nota, o modo de agradecer, são música também.

A escuta, do lado do público, é igualmente convocada. Joana Gama acredita que ouvir ao vivo permite uma experiência mais profunda: “num concerto há imersão, há tempo, não há telemóveis”. Mesmo que a obra cause estranheza a quem espera as Gymnopédies ou as Gnossiennes, essa surpresa faz parte do processo.

Questionada sobre o que continua a ser radical em Erik Satie, a pianista aponta a liberdade e a curiosidade do compositor. “Experimentou sem obedecer a regras”, diz, lembrando a atenção obsessiva ao detalhe, a caligrafia cuidada, a relação com outras artes. Apesar de ser frequentemente vista como especialista, recusa o rótulo: “a minha relação com Satie é emotiva; toco as peças que gosto”.

Essa relação estende-se à música contemporânea e a compositores como Hans Otte ou Federico Mompou. “Procuro desacelerar o tempo”, afirma, defendendo repertórios que criam espaços de calma num mundo acelerado. “Estar parado e em silêncio é quase revolucionário”, diz, numa época obcecada pela produtividade e pelos números.

O trabalho com públicos diversos, incluindo crianças e contextos descentralizados, é outra vertente essencial. Concertos de pequena escala, proximidade e ligação à natureza são, para Joana Gama, formas de resistência e de sentido. “Há muita vida para além das grandes salas”, sublinha.

Sem apressar o tempo, olha para 2026 com novos projectos: um álbum com a música de Ivan Vukosavljević, a itinerância de espectáculos "As árvores não têm pernas para andar", "Pássaros e Cogumelos" e "E as flores?" e a possibilidade de um novo projecto multidisciplinar.