Isabela Figueiredo: “Quero falar de vidas invisíveis, tão importantes como a minha”
02 October 2025

Isabela Figueiredo: “Quero falar de vidas invisíveis, tão importantes como a minha”

Vida em França

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A escritora Isabela Figueiredo está esta semana em Paris para apresenta "Um Cão no Meio do Caminho", agora traduzido em francês "Un chien au milieu du chemin" pelas edições Chandeigne & Lima, deu uma aula na Sorbonne e esteve em Lyon para falar de literatura e das suas inquietações. Porque na sua obra nada é ornamento, nada é complacência, apenas a exigência da verdade, o incómodo necessário, a lucidez que recusa o panfleto.

Nascida em Lourenço Marques, hoje Maputo, Isabela Figueiredo pertence à geração marcada pela descolonização de Moçambique. Filha de retornados, viveu de perto o corte violento, a perda de lugar, o desenraizamento. A experiência cristalizou-se numa escrita onde se confundem memória íntima e memória colectiva, sempre contra a tentação do silêncio. Assim nasceram o Caderno de Memórias Coloniais, um texto fundador sobre o peso da herança colonial, e A Gorda, romance onde o corpo é campo de batalha e metáfora de estigmas sociais.

Agora, com Um Cão no Meio do Caminho, Isabela Figueiredo convoca duas solidões que se encontram, como duas margens de um rio: José Viriato, homem que resiste à engrenagem capitalista dando nova vida a objectos descartados, cercado de cães que são família e refúgio, e Beatriz, "a matadora", acumuladora compulsiva, cercada por caixas e dores. Do acaso nasce um gesto de cuidado e da vulnerabilidade, uma possibilidade de salvação.

“O que eu quis foi falar de vidas invisíveis, tão importantes como a minha, a sua, a de toda a gente. Vidas puras, ligadas ao essencial”, explica a autora. “José Viriato é uma personagem que me é muito cara, porque pergunta: porque temos de pagar para viver? Nascemos e já nos cobram pela água, essencial à sobrevivência. Um dia pagaremos pelo ar.”

O título do romance é menos simples do que parece. O cão não é adorno, nem mero símbolo, mas é ponte, espelho, mediador. Aproxima os personagens, reflecte-lhes a fragilidade e oferece-lhes um lugar de ternura. “Os cães têm nomes católicos. O primeiro, Cristo, foi encontrado ferido, ensanguentado, como uma aparição. Mas a mãe proíbe-o de chamar Cristo a um animal e fica apenas Cris. Depois vêm a Nossa Senhora – a quem chama apenas Nossa, para não ofender – e o Revoltado, o Rev. Os nomes são pensados. Os animais pacificam-me neste mundo agressivo. Eles estão sempre lá, conectam-me com o transcendental”.

É uma ética que atravessa o romance: a do antiespecismo, a denúncia de uma violência escondida. “Vivemos um genocídio de animais em campos de concentração, mergulhados em sangue e sofrimento. Mesmo que não veja imagens, eu sofro com elas”.

Apesar da urgência dos temas, Isabela Figueiredo recusa a retórica militante. A sua escrita escolhe a subtileza, a dúvida, a faísca silenciosa. “É muito importante não obrigar o leitor a pensar como nós. O que quero é que o livro provoque um sobressalto, que abra uma pergunta. Muitos leitores falam de solidão, de consumismo, de acumulação. Mas quase nenhum se atreve a falar do antiespecismo. Quando José Viriato pergunta: e se da nossa barriga nascesse um crocodilo em vez de uma criança, seríamos capazes de amar? Eu acho que sim”, responde.

A oposição entre os espaços das personagens é também metáfora da nossa vida contemporânea. José Viriato vive uma casa despojada, com um quintal onde recupera os objectos resgatados do lixo. Beatriz vive entre paredes saturadas de caixas, num corredor estreito por onde mal consegue passar. “Na nossa cabeça também é assim: um pequeno trilho livre e todo o resto bloqueado por excesso de informação. O livro mostra que, mesmo nesse labirinto, é possível encontrar uma saída”.

Aos poucos, a matadora abre-se ao diálogo, ao riso, à relação com a avó de José Viriato. “Ela parecia uma personagem desagradável, fria. Mas o simples facto de começar a trocar palavras com alguém muda tudo. Abre-se à vida”, explica a autora.

Na literatura de Isabela Figueiredo, a solidão é matéria-prima e condição de trabalho. “Quando escrevo, desligo o telemóvel. Não quero interrupções. Estou metida no livro. Tudo o que faço, até fritar ovos, é pensando no livro. A solidão não é perfeita, mas é necessária”.

Esse treino vem de longe. “Sou filha única, cresci a brincar sozinha, com formigas, cães, gatos. Quando fui trazida de Moçambique, aos 13 anos, fui deixada em casas onde não me queriam. Vivi isolada, em colégio interno, separada dos meus pais. Aprendi a viver no meu mundo”.

Entre a avó com Alzheimer e famílias de acolhimento que a tratavam como criada, o silêncio foi escola dura. “Fui uma menina só, mas habituei-me. Claro que a solidão não é perfeita. Precisamos desesperadamente de falar com alguém. Talvez por isso os leitores sejam para mim um conforto. Sinto-me amada por eles”.

Essa experiência de desenraizamento atravessa também os protagonistas do novo romance. “O José Viriato leva apenas um lenço e o cão Cristo, quando a vida lhe é cortada. Eu saí de Moçambique com uma mala. A matadora viveu abusos, ditadura, a falta de afecto. São ambos cortados de amor, mas resistentes”, descreve.

É curioso ouvi-la confessar que admira as suas próprias personagens. “Eu ligo-me a elas. Quando um leitor me atribui uma intenção que não escrevi, tenho de corrigir: desculpe, não, não é isso. Eu não escrevi isso”.

A tradução francesa abre nova vida ao romance. “Já ouvi leituras em francês do Caderno de Memórias Coloniais que me fascinaram, estavam melhores do que em português. Tenho muita confiança nos tradutores. Eles telefonam-me, fazem perguntas, discutimos soluções. Quando a Myriam Benarroch me disse que não havia tanques em França, resolvemos: José Viriato deixaria os objectos junto de uma torneira. A tradução também é diálogo”.

No fim da conversa, a escritora resume a sua obra numa frase: “O livro fala da necessidade de pertencermos uns aos outros. Não existimos sozinhos. Somos células individuais que fazem parte de uma célula maior. Não nos rejeitemos. Juntemo-nos. Respeitemos também aquilo que não é humano: os animais, os objectos. Penso que é um livro humanista”, concluiu.

Isabela Figueiredo escreve contra a indiferença. Escreve com a coragem dos que sabem que as palavras não salvam, mas iluminam. No rasto do cão que aparece no meio do caminho, deixa-nos este aviso: não há solidão que não seja espelho da nossa condição comum.