Em Outubro, foi lançado, em França, o livro “Les Portugais en France: une immigration invisible?” [“Os Portugueses em França: uma imigração invisível?”], editado pelas investigadoras Sónia Ferreira e Irene dos Santos. A obra reúne estudos de vários especialistas da emigração portuguesa e questiona o conceito de “imigração invisível” associado à comunidade portuguesa em França.
RFI: Como descreve, em poucas palavras, a obra “Les Portugais en France: une immigration invisible?”
Sónia Ferreira, Co-editora da obra “Les Portugais en France: une immigration invisible?”. É uma obra académica que reúne um conjunto de capítulos que são feitos por investigadores na área da antropologia, da sociologia, da história, e que são investigadores que têm trabalhado ao longo das últimas décadas sobre esta questão da imigração portuguesa em França. Mas também é um livro que visa ir para além da comunidade académica, ou seja, é um livro que também gostaria de chegar a um público mais alargado, precisamente para não se centrar apenas na discussão interna académica, mas para suscitar conversas e discussões sobre a imigração portuguesa em França, que vá para além desses círculos mais restritos.
Por isso, é uma publicação que é feita através de uma editora que tem a divulgação também de obras com outro tipo de características, mas com uma parceria com uma instituição académica. Portanto, tem esta dupla pertença, digamos assim.
Uma das perguntas que está no título é “imigração invisível?”. O sociólogo português Albano Cordeiro foi pioneiro nesse conceito, creio eu. O que significa essa noção?
Albano Cordeiro - a quem nós, aliás, dedicámos o livro devido ao seu falecimento recente e que foi uma pessoa muito importante a pensar a temática da migração portuguesa em França e foi pioneiro em muitos dos seus trabalhos sobre essa temática - tinha esse conceito do “paratonnerre maghrébin”, essa ideia de que muitas vezes os migrantes portugueses eram vistos como os bons migrantes, por oposição, à migração pós-colonial francesa, nomeadamente à migração magrebina, e portanto, havia essa ideia dos portugueses como católicos, como brancos, que estariam ao abrigo de muitas discussões sobre as questões religiosas, sobre as questões de racialização, em França.
Nós questionamos um pouco essa ideia, tentando mostrar que ela não é verdadeira e, portanto, de alguma forma há processos de invisibilização, mas também não é isso que faz com que os portugueses não tenham também, por exemplo, sofrido de processos discriminatórios no seu processo de instalação em França.
Ou seja, afinal não é uma imigração invisível como até agora se tem sustentado?
É uma imigração invisível nalguns aspectos ou uma emigração que ficou nalguns aspectos da sociedade francesa invisibilizada, mas, como sabemos, é uma imigração que tem um papel de visibilidade e destaque em muitas áreas da sociedade francesa. Muitas vezes essa questão do visível e invisível tem a ver até com aspectos negativos ou menos agradáveis e, portanto, é isso que nós questionamos. Ou seja, há processos de invisibilização da imigração portuguesa, mas até que ponto eles não devem ser também discutidos e questionados? E que repercussões é que isso tem para os próprios portugueses em França?
Todos estes processos que levam ao seu posicionamento na sociedade francesa e, portanto, há que questionar a sociedade francesa como um todo e não apenas olhar para os portugueses como um grupo isolado, mas pensar os portugueses na sua interacção com os outros grupos imigrantes em França, desde os europeus que chegam muito antes dos portugueses, como é o caso dos espanhóis ou dos italianos ou dos polacos, etc, às migrações pós-coloniais em França, principalmente aquelas que se dão nos processos de descolonização, que é quando a maior vaga de portugueses chega a França a partir dos anos 70.
Esta noção de bons imigrantes, de mão-de-obra dócil e silenciosa, não contribuiu até hoje para a instrumentalização desta imigração portuguesa por parte da extrema-direita francesa e não cultivou, de alguma forma, um certo racismo dos portugueses relativamente a outras migrações?
Sim, é verdade. Nós temos que pensar que, por um lado, se podemos dizer que os migrantes portugueses foram alvo de racismo e discriminação em determinadas situações - que o foram e esse é um processo que também está bastante invisibilizado, essa dimensão da discriminação que os portugueses sofreram em França - isso não os isenta de serem eles também, muitas vezes, agentes de discriminação.
Não nos podemos esquecer que os portugueses que chegam a França nos anos 60 e 70 vêm do regime ditatorial salazarista colonial português e migram vindos de uma sociedade onde prevalecia uma ideologia racista. Muitas vezes, o que podemos detectar é que na imigração portuguesa, na sua relação, por exemplo, até com migrações pós-coloniais portuguesas que vão para França, como é o caso de cabo-verdianos e de outras migrações que vêm dos circuitos pós-coloniais portugueses e que se encontram, em França, por exemplo, em locais como o mercado de trabalho - como o BTP [construcção civil] em que partilham associativismo -os portugueses também são, muitas vezes, agentes de discriminação com essas populações e também na relação com os próprios povos do Magrebe.
Portanto, há essa herança ideológica da sociedade onde imperava uma ideologia racista no Estado Novo e depois em França, são também confrontados, obviamente, com as ideologias racistas e de racialização que se encontravam presentes em França, nomeadamente por relação às populações africanas, da África francófona, do Magrebe, etc.
Quando diz que os portugueses foram alvo de racismo e de discriminação, estamos a falar do quê?
Podemos falar no mercado de trabalho, por exemplo. Gostaria de citar o trabalho que tem sido desenvolvido, por exemplo, no âmbito da Associação Memória Viva e também alguns exemplos que têm sido visibilizados pelo Hugo dos Santos na sua página nas redes sociais. Ele tem dado a conhecer exemplos em locais de trabalho ou em interacções com a própria sociedade francesa e com as instituições francesas, nomeadamente as instituições do Estado, não só nos processos também de realojamento, como foi com os famosos “bidonvilles”, nas fábricas, etc.
Há algumas formas de discriminação contra os migrantes portugueses desse período que estão documentadas. Aliás, o próprio Victor Pereira refere isso e houve até uma coluna assinada há uns tempos num jornal [L’Humanité] em que precisamente se chamava a atenção para a não instrumentalização dos portugueses como os “bons migrantes”, dando exemplos concretos de situações em que eles também foram alvo de discriminação.
Mas aí eu acho que é preciso ver a discriminação que vem da relação quotidiana e a discriminação estrutural que é uma discriminação que é imposta e que é através das instituições do Estado.
Outro aspecto pouco falado que vocês abordam nesta obra é o papel das mulheres portuguesas imigrantes em França na transformação do modelo familiar rural português após o contacto com famílias francesas. Quer explicar?
Sim, nós pensamos que as questões de género têm sido pouco trabalhadas. Quando tentamos olhar para trás e vemos os trabalhos que têm sido feitos sobre a imigração portuguesa, as questões de género, nomeadamente os trabalhos sobre as mulheres, não têm tido muita preponderância, digamos assim.
Até porque quando se fala das mulheres portuguesas em França ainda persiste o estereótipo da “concierge”, da porteira ou da “femme de ménage”, mulher das limpezas. Mas há outro modelo, que acaba por ser o de um certo empoderamento que já começa com a emigração portuguesa das mulheres nos anos 70?
No fundo, há um pouco de tudo. Há um modelo familiar, que vem também do Portugal do Estado Novo, que é aquele que chega também a França juntamente com estes imigrantes. Há também, é verdade, a questão da “concierge”, aliás, há um texto de Dominique Vidal, no livro, que trabalha precisamente sobre a questão das porteiras portuguesas, mas estamos a falar da região parisiense, ou seja, é uma realidade relativamente circunscrita e mesmo dentro dessa realidade é preciso distinguir as mulheres que trabalham para o sector privado e as mulheres que trabalham para o sector público porque isso também tem influência, depois, para os bairros onde vão residir e trabalhar e com os projectos de mobilidade social, por exemplo, ascendente das suas famílias.
Mas uma das coisas que nós também quisemos questionar - e aí prende-se também com as questões de género – é que muitas vezes há um olhar maior e mais concentrado na região parisiense. E é preciso compreender que é preciso olhar também para outras regiões em França onde também existem bastantes portugueses e em que as formas de organização familiar e laboral não são exactamente as mesmas e podem estar mais ligadas às zonas rurais.
No que diz respeito aos papéis de género, é preciso discutir - e esta é uma discussão que se tem na área das migrações - até que ponto os projectos migratórios são ou não projectos emancipadores. É interessante, no livro, o texto da Yasmine Siblot, que trabalha sobre migrações mais recentes de mulheres e discute esta questão de o projecto migratório ser ou não um projecto emancipador, não só pela via do trabalho, mas também pela via do conjunto ou da teia de relações sociais que se estabelece no novo contexto. E aí também, no caso em que ela está a trabalhar, estamos a falar de mulheres também ligeiramente mais novas do que as mulheres da primeira geração que chega a França em finais dos anos 60, dos anos 70.
E depois há que também ver aquela geração que vai ainda pequena com os pais e que depois vão seguir caminhos e modelos de género diferentes, muitas vezes enveredando pela via artística, pela via académica, pela via política. E é aqui também importante referir o envolvimento dos portugueses nalguns movimentos sociais franceses, nomeadamente na Convergence 84, por exemplo, em que algumas mulheres portuguesas também se envolveram.
O que é importante, acima de tudo, é mostrar que isto é muito mais heterogéneo do que se possa pensar num primeiro olhar mais essencialista sobre a mulher portuguesa dona de casa, etc.
Faz sentido ainda hoje, estudar-se, ainda, a imigração portuguesa em França, um país onde o modelo da sociedade é fundado pela tentativa de assimilação dos imigrantes?
Acho que faz, claro. Do ponto de vista histórico, sem dúvida, do ponto de vista socio-antropológico também até porque, mesmo que se possa dizer que a partir das segundas ou terceiras gerações já não estamos a falar de migrantes - no sentido formal do termo, estamos a falar de indivíduos que têm a nacionalidade francesa - mas a questão da migração e da história da migração na família é algo que não se desvanece, não é?
E, portanto, as repercussões que a emigração tem numa família é algo que conseguimos e devemos ler e estudar no tempo longo, como um processo. Do nosso ponto de vista, enquanto académicos da antropologia, da sociologia, da história, não nos interessam só as categorias formais e estatísticas de quem é ou não é imigrante, mas também perceber como é que o fenómeno da migração configurou aquela família no passado e configura no presente e muitas vezes até configura expectativas de futuro, sejam expectativas de futuro para estar em França, viver em França, mas muitas vezes também expectativas de regressar a Portugal e do tipo de relação que se estabelece com Portugal.
Para nós, independentemente dos modelos e do modelo político francês no que diz respeito às questões migratórias, a migração é muito mais do que isso e a imigração é um processo que deve ser estudado a longo prazo e em todas as dimensões que a constituem.
A obra “Les Portugais en France: une immigration invisible?” foi publicada na editora “Le Cavalier Bleu” e conta com textos dos investigadores Sónia Ferreira, Irene dos Santos, Manuel Antunes da Cunha, Cristina Clímaco, Margot Delon, Inês Espírito Santo, Guillaume Étienne, Victor Pereira, Yasmine Siblot, Filomena Silvano, Dominique Vidal e Marie-Christine Volovitch-Tavares.