Hamlet confronta os fantasmas do passado para mudar o presente

Hamlet confronta os fantasmas do passado para mudar o presente

RFI Português
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Hamlet regressa ao teatro do Odéon pela mão da encenadora brasileira Christiane Jatahy. A encenadora habituou-nos a olhar para as fronteiras do passado e do presente, as fronteiras do cinema e da cena como elementos de transformação. "A primeira coisa que podemos fazer para escapar à possibilidade de repetir [acontecimentos] é olhar para o passado e não o apagar", defende Christiane Jatahy que propõe uma revolução sem violência através de uma "Hamlet com uma energia feminina".

RFI: Christiane Jatahy estamos no Teatro Odéon, em Paris, onde tem em cena "Hamlet", o seu novo espectáculo. São nesta altura, 19h50, de dia 7 de Março, dentro de instantes, os actores sobem ao palco. Ainda sente um nervosismo antes de apresentar a sua criação ao público?

Christiane Jatahy: Sim, sempre, claro. Conforme a gente vai fazendo mais vezes, vamos entendendo melhor a reacção do público e o público também vai entendendo melhor a peça e aí esse nervosismo diminui. Mas sim, é um nervosismo que eu acho saudável. Acho que para os actores [esse nervosismo acontece] todos os dias, para mim é principalmente na estreia.

Hamlet reúne reflexões políticas, filosóficas, históricas, literárias, aborda temas que podem parecer desarticulados, desordenados. O que traz uma coerência na sua encenação é o movimento, e mais do que a vontade de mudança, a própria mudança. Adapta a quase a integralidade do texto de Shakespeare, muda o destino dos personagens e, logo no início da peça, através de um holograma, confronta os fantasmas de Shakespeare, personagens que já tem mais de 400 anos, aos personagens que cria, personagens de 2024.

Sim, realmente Hamlet é um oceano, mas ao mesmo tempo a gente precisa de a conter e dar contorno. Para mim, era muito importante pensar essa peça a partir da perspectiva da mudança, como você disse, mas evidentemente, com a ideia de que esses personagens estão aqui hoje e, portanto, essa história está sendo revivida, mesmo que eles não tenham consciência dessa repetição. A acção, que é uma das questões do Hamlet, que é sobre ir ou não, agir ou não agir, ela se transforma em alguma coisa que já está impregnada de movimento, porque ela está impregnada de passado. Hamlet está lembrando e vivendo ao mesmo tempo e se confrontando com seus actos e se confrontando com seus actos de maneira diferente. Porque Hamlet agora tem uma energia feminina. Continua sendo uma coisa que é um pouco repetitiva nos meus trabalhos, que é sobre a questão da mudança, sobre a questão da transformação. Mas neste momento ligada à ideia de que já estamos num processo de mudança, ou seja, a mudança já está acontecendo. Por isso essa ideia da revolução, da transformação, mas ainda se perguntando sobre como é que a gente quebra as estruturas que estão introjectadas em nós mesmos para que a gente possa transformar para um outro futuro.

Quando o apresenta e quando criou este espectáculo, sente que há dois Hamlet em cima do palco ao Hamlet shakespeariano e o seu Hamlet?

Eu acho que tem muitos Hamlet; tem um Hamlet shakespeariano que não é mais só de Shakespeare.. é de todas as pessoas que já fizeram Hamlet, tanto nas suas encenações.

E são tantas...

Nossa, são 400 anos de história e tantas pessoas que já actuaram no papel do Hamlet. É o meu Hamlet como ideia, mas se transforma no Hamlet das pessoas que estão em cena, se transforma no Hamtel da Clotilde, quando ela está agindo e actuando, se transforma no Hamlet das pessoas que estão vendo e estão projectando seus Hamlet nesse Hamlet. Acho que essa ideia de que um personagem é alguma coisa é uma ideia que eu acho que ela é reducionista porque um personagem ele pode ser muitas coisas e ser outras coisas não tira, na verdade, a potência dele vir a ser de novo em outras montagens aquilo que a gente espera que ele seja.

Fala muito do verbo ser. Esta talvez será uma nova fronteira que cria. A Christiane habituou nos às fronteiras do tempo e do espaço, aos meios que usa para comunicar entre a cena e o público, para comunicar entre os actores. Em Hamlet, cria novas fronteiras, a fronteira do interior dos personagens, a fronteira da memória, dos fantasmas e das acções. E esta fronteira entre o ser e não ser, também é ela própria uma fronteira?

Sim, sim, realmente as fronteiras, elas são limites que me interessam transpassar. Eu penso sobre elas. Além de todas essas fronteiras que você disse, se aprofundando numa delas, a fronteira da fantasmagoria, porque ela é a fronteira do sonho. Ela é a fronteira, na verdade, do que a gente projecta do nosso inconsciente. Interessava-me uma discussão psicanalítica também sobre a obra, seguindo assim...

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Tem uma coisa que é a fronteira que está sempre presente no meu trabalho, que é a fronteira do passado com o presente e a fronteira também do cinema e da cena, pensando essa relação agora como uma presentificação de quem não pode estar ali, porque são os fantasmas do passado. 

Nas fronteiras de que fala, em cena as personagens ocupam o espaço de um apartamento composto por um quarto, uma sala, uma cozinha e uma casa de banho. A estrutura das janelas e das portas assumem a função de fronteira entre o presente e a memória, onde circulam o consciente e inconsciente dos personagens. Junta se aí, como estava a dizer, a realidade que o público pode escolher  ver e os fantasmas que pode escolher ocultar ?

Quando pensei nessa ideia do apartamento e que depois foi desenvolvida na cenografia por mim e pelo Thomas Walgrave. A minha questão sobre o apartamento era [perceber] como é que essas pessoas, esses fantasmas porque são todos personagens que morreram de alguma forma na história da ficção, eles estão revivendo suas memórias, mas eles já morreram. Pensei nesse apartamento como um lugar onde eles convivem. É um apartamento todo envidraçado e, de alguma maneira, quando a gente quebra, como se a quarta parede que precisasse ser quebrada, a quarta parede já foi quebrada há muito tempo, mas quando a gente fisicamente derruba a quarta parede e integra o espaço do público, para mim era a ideia de construir, esse ovo, esse espaço único em que tudo interage e em nenhuma cena tem como se esconder. Eles são obrigados a conviver.

Se na peça Claudius pode ter uma conversa com Guildenstern e Rosencrantz escondido em algum lugar, nessa peça tudo é visto assim. Por outro lado, é claro que nesse tudo é visto, também tem essas misturas dos tempos. Então, algumas vezes nem tudo o que é visto faz parte do mesmo tempo. Algumas coisas estão no tempo e outras estão em outro tempo. Isso também ressignifica essa ideia da relação em cena.

Para concluir, que eu acho que é que é importante assim, de falar sobre o que você disse, que também quando eu abro o espaço para as laterais, eu também estou dando outros pontos de vista para o público. Além do ponto de vista da câmara e além do ponto de vista da cena, também o espectador pode decidir que ele vai olhar, incluindo o que não é a cena principal ou que ele vai escolher o foco só da cena principal. Então também tem uma questão que me interessa, que é que cada lugar do teatro te possibilita uma apreensão diferente da obra.

Possibilita também uma interpretação sobre e para a mudança?

Sim, claro. Porque através da direcção do nosso olhar é que a gente transforma.

É isso que nos propõe?

Também. 

Na peça trágica de Shakespeare, Hamlet procura a própria identidade através da vingança do pai. Por isso simula a própria loucura. Destaca-se o carácter trágico da violência vingativa e da relação com a luta pelo poder. A Christiane questiona mais profundamente essa identidade e cria um Hamlet no feminino. Esta peça, vista e interpretada no feminino, vai mudar o percurso e o decurso desta história.

Sim, essa Hamlet ela tem ainda o seu ímpeto de vingança. Ela revive a história e ao reviver a história e revê obcecadamente a imagem do Pai que lhe impulsiona a agir, ela traz dentro dela esse impulso. Ela traz, assim como o personagem original do Shakespeare. Ela traz neste impulso a dúvida sobre ir ou não para a acção e a não compreensão, principalmente por que é que ela não consegue realizar o acto. O importante para mim é que ao se defrontar com essa violência novamente, porque é uma peça cuja violência é realizada pelos homens, ao se defrontar ela mesma com a violência que ela carrega e com a violência que ela encontra, ela não reage da mesma maneira que o Hamlet da peça original.

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Portanto, a não reprodução da violência?

Sim, ela  não quer reproduzir a violência. E quando ela se vê sendo jogada nessa mesma violência, como por exemplo, quando ela mata Polonius, isso para ela não é alguma coisa que ela aceita nela mesma porque as estruturas que ela está lutando, de alguma maneira, que nós, como mulheres, estamos lutando hoje em dia. Acho que é muito importante falar sobre isso porque somente a transformação de um personagem, historicamente masculino, na ideia de como é que seria esse personagem se não se ele fosse uma mulher, mas se ele tivesse sido um homem e num determinado momento. Dou sempre o exemplo de Orlando da Virginia Woolf, que ele se visse como uma mulher, se essa mulher pensa sobre as questões das estruturas do patriarcado e não só fora de nós. Eu acho que isso é super importante falar nessa peça porque essa estrutura ela domina todas as estruturas do mundo. Mas também como é que essas estruturas estão introjectadas em nós mesmos e como é que essas estruturas estão introjectadas nesse personagem do Hamlet. Existe também uma questão de auto-consciência de processo de percepção, como por exemplo, como é que ela vai agir como mulher quando ela se confronta com uma situação que é super misógina na peça, que é a maneira como Hamlet trata Ofélia. Assim, ela não consegue tratar da mesma maneira.

A escolha que Hamlet vai fazer também vai ter repercussões no destino de Ofélia, que por uma vez, não tem um destino trágico.

Super. Acho que tem uma questão sobre o sistema e eu acho que a gente está falando sobre questões sistémicas e também familiares, porque é sobre uma família. Quando a gente quebra, quando alguma peça muda o seu comportamento nesse sistema, algum elemento, isso também é física, os outros elementos também se transformam e se libertam dos seus, dos seus padrões. A libertação da Ofélia, de alguma maneira, é decorrência de uma transformação que também está no Hamlet.

Ouvimos duas vezes a citação "O mundo antigo está a morrer, mas o novo tarda em nascer", do filósofo italiano António Gramsci. Ele falava sobre a crise, sobre o desenlace, sobre a importância de reagir a esta frase, tantas vezes usada, sobretudo na política. As personagens partilham este espaço íntimo do apartamento do nosso tempo, com dispositivos tecnológicos com um texto de 400 anos. A estrutura mudou e o conteúdo pouco mudou. Como é que se pode escapar à repetição do passado? É apenas uma escolha?

A primeira coisa para se escapar da possibilidade de repetir e reconhecer é olhar para o passado, não apagar o passado. O apagamento do passado é que provoca essa ideia de que alguma coisa pode se cumprir de maneira diferente, mesmo que a gente faça as mesmas coisas. É por isso que eu acho que nesse trabalho, em muitos dos meus trabalhos, quando eu estou fazendo uma relação do passado com o presente e trabalhando essas fronteiras do tempo, eu também estou falando sobre a ideia de como que ao eu reconhecer um passado que aconteceu, como é que ao me defrontar com uma situação similar, de que maneira que esse meu passado....

Agora a peça vai começar

Como é que eu me comporto de uma maneira diferente porque eu tenho a trajectória de reconhecimento do ponto em que isso me levou para que eu não precise repetir. Eu acho que essa é uma discussão também sobre a humanidade.

Fala de humanidade e projecta imagens de guerra que vivemos hoje, actualmente e que também fazem parte dessa mudança de reconhecer o que aconteceu no passado para poder não reproduzir. Estamos a reproduzir erros do passado?

A guerra é muito importante também nessa peça, apesar de que ela está sempre na volta da peça. Tudo começa por causa de uma guerra, por perder uma guerra. É uma discussão também sobre esse sistema da violência, da crueldade, da ideia de vingança, essas vinganças que se perpectuam. A guerra é o começo da peça. A guerra é o motivo, na verdade, da chegada de Fortinbras e toda essa ameaça que começa a existir. Ela está presente o tempo todo nesse entorno.

Não existe guerras longe de guerras perto, as guerras são guerras e elas estão realmente sempre perto. A nossa inacção diante das guerras e a gente vive muito isso hoje; como agir diante dessa repetição novamente, dessa violência das guerras? Também está presente de alguma maneira na peça, nas reflexões que o próprio Hamlet já faz, mas que a gente traz agora de uma maneira que é mais direccionada a se perguntar que sentido que isso tem?  Porque na peça ele se pergunta como é que Fortinbras está lutando e ele não está conseguindo lutar. Fortinbras e está lutando pelo que seu pai perdeu e ele não consegue. Aqui é o oposto, como é possível que tantas pessoas precisem morrer por uma luta que é na verdade, uma luta de uma pessoa, de uma ideia, de um desejo, na verdade, na verdade intelectual e de vingança ou de ganância.

Hamlet diz que é preciso ser cruel para ser justo e acaba por reconhecer no fim da peça que não é, afinal, necessário ser cruel para ser justo.

Sim, é super importante essa frase. Ela se repete de muitas maneiras, como perguntas, como afirmações, como acusações e até que finalmente tem uma tomada de consciência que é a gente realmente precisa ser cruel para ser justo?

E o silêncio no meio disso tudo?

O silêncio está ali. É o final da peça, o resto é silêncio. No resto, escutar esse silêncio também.