Vida em França
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Partindo da actualidade, tentamos explorar os aspectos da multifacetada "alma" francesa nos domínios social, político, económico e cultural.
Falta de verbas ameaça Santa Casa da Misericórdia de Paris
18 December 2024
Falta de verbas ameaça Santa Casa da Misericórdia de Paris

A Santa Casa da Misericórdia de Paris lançou no início do mês de Dezembro uma campanha de Natal para angariar produtos alimentícios para as famílias portuguesas mais necessitadas em França. Ilda Nunes, presidente da instituição, faz um balanço positivo da iniciativa, sublinhando que em 2024 ajudaram mais de 4500 pessoas, contudo alerta para a situação financeira da Santa Casa da Misericórdia que corre o risco de fechar as portas se as pessoas deixarem de ajudar a instituição.

Qual é o objectivo desta campanha de Natal realizada pela Santa Casa da Misericórdia de Paris?

O objectivo da Santa Casa da Misericórdia de Paris é ajudar as pessoas que têm dificuldades, ou seja, dar de comer a quem tem fome.

Quem são os parceiros desta campanha de Natal?

São as grandes superfícies comerciais que permitem aos voluntários - da Santa Casa da Misericórdia - estarem presentes durante o fins-de- semana para recolherem os produtos [doados]. Contudo, a instituição espera, no próximo ano, conseguir mais voluntários de forma a poder angariar mais produtos em alguns dias da semana, alargando assim o período de recolha.

É difícil encontrar voluntários para este tipo de campanhas?

É difícil encontrar voluntários para qualquer tipo de acções. Eu compreendo que estejamos todos muito ocupados com o trabalho, com a família, mas se dedicarmos duas ou três horas às actividades da Santa Casa, já seria muito bom para ajudar as pessoas que mais precisam.

Esta campanha de Natal é feita em todo o território francês?

Por enquanto, a campanha é feita apenas na região parisiense. Porém, o trabalho da Santa Casa da Misericórdia abrange qualquer pessoa que esteja em dificuldade no território francês. A nossa ideia é tentar criar delegações em vários pontos da França. Por exemplo, já estamos a fazer progressos em Bordéus, Lyon e também nas diversas zonas ou regiões onde existam consulados de Portugal em França.

Quem são as pessoas que precisam de ajuda?

São as famílias numerosas, mães solteiras, pessoas idosas -que não descontaram o suficiente para a reforma e que se encontram em com dificuldades - casais recém - chegados à França e que têm crianças pequenas. Em 2024, a Santa Casa da Misericórdia ajudou, no mínimo, 4500 pessoas e temos consciência de um aumento consequente dos pedidos de ajuda.

Nestes pedidos não estamos só a falar de bens alimentares. Há pessoas que nos pedem apoio psicológico e nós temos uma equipa de psicólogos que os podem receber sem pagarem, como é óbvio. Também ajudamos as pessoas a constituir dossiês, processos de pedidos de reforma, e acompanhamos aqueles que se sentem mais sozinhos. Estamos a falar de todo o tipo de apoio.

Nesta altura do Natal, quais são as principais necessidades?

Nesta altura do ano, todos gostariam de ter uma refeição idêntica à que tinham em Portugal. Uma ceia de Natal com os produtos portugueses.

O bacalhau, o azeite, a batata e o bolo rei…

Sim. Mas depois, durante o ano, as necessidades vão desde o arroz até às conservas.

Há também pedidos para os produtos de higiene…

Exactamente.  Muitas vezes nós temos de os comprar, porque as pessoas não pensam em doar os produtos de higiene. Depois, há pedidos para o leite e fraldas para as crianças.

O nosso grande problema é que dentro de dois meses, três meses no máximo, vamos ter de comprar mais produtos e para o fazer necessitamos de mais verbas.

Como é feita esta redistribuição destes bens?

Temos listas das pessoas que ajudamos durante todo o ano e que já estão habituadas a receber um cabaz de Natal. Todavia, as pessoas que precisam de ajuda podem-nos contactar através da nossa linha telefónica que funciona 24 horas por dia e sete dias por semana.

Considera que as pessoas são mais solidárias nesta altura do ano? Ou a crise que se vive actualmente, também aqui em França, está a ter um impacto neste tipo de acções?

É evidente que tem impacto para qualquer um de nós. Sinceramente, este ano, tendo em conta a situação económica do país, pensei que íamos recolher menos bens, porém os retornos que tive é que - em vários sítios - as pessoas doaram ainda mais. Estou felicíssima porque isto quer dizer que nós continuamos a preocupar-nos com o próximo.

Quem quiser contribuir, onde é que se pode dirigir?

Pode ligar para o número de telefone da Santa Casa da Misericórdia de Paris e perguntar qual é o sítio mais próximo para fazer as doações. Também temos um local, 7 Av. de la Porte de Vanves, no 14º bairro de Paris, onde as pessoas se podem dirigir e deixar os produtos.

Quais são as dificuldades com as quais se depara a Santa Casa da Misericórdia, uma estrutura que depende muito da solidariedade?

É complicado e difícil ao mesmo tempo. Mas quem se lança nesta aventura não teme as complicações, nem as dificuldades. Tem que estar sempre em alerta, pronta para melhorar a situação.

A falta de financiamento poderá, de certa forma, penalizar alguma actividade?

A falta de verbas pode levar mesmo a que a Santa Casa da Misericórdia de Paris encerre as portas.

E há esse risco?

Há pouco falei-lhe do local que nós sub-alugamos no 14º bairro de Paris, em 7 Av. de la Prte de Vanves, um contrato que chega ao fim a 31 de Março de 2025. Neste momento, temos duas opções: ou encontramos outro local ou arranjamos uma solução. A nossa grande dificuldade é sempre a falta de verbas, mas estamos a tentar resolver esse problema. Seria dramático se a Santa Casa da Misericórdia de Paris, a única em França, fechasse portas por falta de verbas.

Quer deixar aqui um apelo?

Deixo um apelo para que as pessoas [nos continuem a apoiar]. Sinceramente, espero que possamos encontrar uma solução para que a Santa Casa da Misericórdia de Paris possa continuar a desenvolver o trabalho - que faz há 30 anos - e que tem sido positivo. Claro que é muitas vezes insuficiente por falta de meios, mas acredito que vamos encontrar uma solução, antes de 31 de Março.

“França evita "shutdown”
11 December 2024
“França evita "shutdown”

O Conselho de Ministros aprovou nesta quarta-feira, 11 de Dezembro, o projecto de lei especial que permite a cobrança de impostos a partir de 1 de Janeiro. O economista Carlos Vinhas Pereira explica que esta lei temporária renova o orçamento de 2024 para o ano de 2025, até que seja aprovado um novo orçamento, evitando “o famoso shutdown americano”.

O projecto de lei especial, que prevê a cobrança de impostos a partir de 1 de Janeiro, foi aprovado em Conselho de Ministros, todavia o Governo insistiu na necessidade de se adoptar “o mais rápido possível” um orçamento para 2025.

Esta lei temporária permite “a continuidade dos serviços públicos e da vida do país”, e pode ser utilizada quando o Estado fica sem orçamento no dia 1º de Janeiro. O economista Carlos Vinhas Pereira explica que esta lei temporária renova o orçamento de 2024 para o ano de 2025, até que seja aprovado um novo orçamento, evitando “o famoso shutdown americano”.

“[Esta lei] está prevista na Constituição francesa, artigo 47, vai permitir simplesmente assegurar a continuidade orçamental do Estado francês para evitar o famoso shutdown americano. Esta lei tem que ser adoptada antes do dia 31 de Dezembro, evitando que a França fique bloqueada”, disse.

A demissão do Governo de Michel Barnier deixou pendente a apreciação de um projecto de orçamento para 2025 - no Parlamento - cuja aprovação antes do final do ano se torna improvável na ausência de um novo Governo.

Carlos Vinhas Pereira refere a que este texto - que inclui apenas dois artigos - autoriza o Governo a continuar a cobrar os impostos existentes, até que seja votado um orçamento formal.

Este dispositivo permite ainda a renovação das despesas do Estado ao nível de 2024, através de “decretos de abertura dos créditos aplicáveis”. As outras disposições devem permitir ao Estado e à Segurança Social contrair empréstimos nos mercados financeiros, através das agências específicas (AFT e Acoss), a fim de evitar a suspensão dos pagamentos.

“É uma lei muito simples e feita para ser adoptada rapidamente, tanto pelo Conselho de Ministros, como pelo Parlamento. O mais importante é que o Governo continua a poder cobrar o imposto, havendo ainda uma recondução da despesa e das receitas do Estado idêntica à que foi prevista no orçamento de 2024”, refere.

A maioria das forças políticas representadas no Parlamento veio dizer que não se vai opor a este projecto de “lei especial”. Todavia, alguns deputados da Nova Frente Popular, nomeadamente da França Insubçissa, e da União Nacional pretendem apresentar uma alteração a esta "lei especial", permitindo a indexação da tabela do imposto sobre o rendimento.

O economista lembra que esta alteração evitaria que 18 milhões de franceses pagassem mais impostos, sublinhando que “como não houve indexação da grelha dos impostos e as pessoas tiveram um aumento do salário ligado à inflacção, vão pagar mais impostos do que estava previsto no Orçamento de 2025”.

No entanto, o Conselho Constitucional emitiu um parecer sobre a interpretação deste ponto específico da lei, bem como sobre a constitucionalidade desta medida específica no âmbito de uma lei especial e considerou que “as novas medidas fiscais”, não sendo consideradas “necessárias para assegurar a continuidade da vida nacional, não se enquadram no domínio da lei especial”.

O Conselho Constitucional estima que a indexação não faz parte das medidas “que tenham lugar em lei especial”, porque ultrapassa “a autorização para continuar a cobrar estes impostos”.

 De fora desta “lei especial” do orçamento fica o aumento das pensões, aplicando-se as regras do Código da Segurança Social. A partir de Janeiro de 2025, todas as pensões dos trabalhadores do sector privado e dos funcionários públicos vão aumentar de acordo com a inflação, 2,2%, ou seja, um valor acima do que estava previsto no orçamento de Michel Barnier, que previa congelar as pensões no próximo ano durante seis meses.

Carlos Vinhas Pereira considera que esta medida vai ter um impacto negativo nos cofres do Estado francês, numa altura em que o país precisa de fazer economias.

“O Governo ou o Estado francês vão ter que assumir mais 4 milhões, o valor a pagar pelo aumento das pensões, quando é público que o país precisa de fazer poupanças na ordem dos 60 mil milhões de euros. É uma situação grave e se não houver um sinal do novo Governo, haverá, com certeza, uma reacção dos investidores, sobretudo, das [agências] de notação e dos bancos que vão aumentar a taxa de juro da França. A França está a pagar taxas de juro ao nível da Grécia”, nota.

Face ao impasse político que se vive no país, o economista avança que este ano fica marcado “por um recorde do número de falências das empresas” e antecipa um 2025 complicado para o sector económico, sem grandes reformas estruturais,

“Não vejo como é que não pode ser complicado. A falta de maioria no Parlamento, mesmo no caso de haver um Governo, não vai permitir grandes reformas. Não há possibilidade de dissolver a Assembleia, portanto haverá uma continuidade. Não se poderão tomar grandes decisões no sentido de melhorar a situação financeira de França. Tinha que haver um consenso, tanto de esquerda como de direita, e neste momento uma parte quer mais despesas públicas para melhorar a saúde, aumentar os salários - o que se compreende- e do outro lado há uma vontade de cortar neste tipo de despesa para poder resolver o problema do défice francês”, admite.

“Paésine” de Francisco Tropa no Novo Museu Nacional do Mónaco
05 December 2024
“Paésine” de Francisco Tropa no Novo Museu Nacional do Mónaco

De 06 de Dezembro de 2024 e até 21 de Abril de 2025, o Novo Museu Nacional do Mónaco acolhe a exposição “Paésine” de Francisco Tropa. Uma mostra que é feita em colaboração com a Fundação Serralves, no Porto, Portugal, que acolhe neste momento a exposição “ⒶMO-TE” do  artista plástico português. A curadoria da exposição monegasca ficou a cargo de Célia Bernasconi.

A partir de amanhã e até 21 de Abril de 2025, o Novo Museu Nacional do Mónaco acolhe a exposição “Paésine” de Francisco Tropa. Uma mostra que é feita em colaboração com a Fundação Serralves, no Porto, Portugal, que acolhe neste momento a exposição “ⒶMO-TE” do  artista plástico português. A curadoria da exposição monegasca ficou a cargo de Célia Bernasconi.

Em declarações à RFI, Francisco Tropa explicou que o nome da exposição “Paésine” vem das pedras-paisagem, originárias da região de Florença: “são pedras que criam uma paisagem, que imitam paisagens, que parecem naturais”. Este jogo entre o real e a representação é marca constante do trabalho de Tropa.

Esta exposição em duas vertentes constitui a maior exposição monográfica de Francisco Tropa alguma vez apresentada. Em Portugal, um percurso mais longo dos últimos 30 anos do artista e no Monaco uma mostra mais centrada nos últimos 12 anos de carreira de Francisco Tropa.

O percurso pensado por Francisco Tropa para a Villa Paloma começa no exterior, com “Penélope” no terraço, a olhar o mar. A figura do feminino está muito presente na obra aqui exposta, “sobretudo na escultura. É a Vénus da gruta e na escultura é o corpo na gruta. É esta ideia de feminino que nasce no interior da caverna, que me interessa bastante”.

A exposição foi pensada a partir da arquitetura do museu, que é uma arquitetura em três andares. Uma casa art déco em três andares e cada andar com duas salas.

De certa forma, a arquitetura do espaço deu-me a métrica para poder começar a pensar a estrutura de uma exposição.

Criei uma espécie de estrutura que se sobrepõe e que vai dividir - sobretudo os dois andares de cima - em quatro.

As salas são divididas por uma diagonal com uma projecção, portanto modifiquei a arquitectura de forma a conseguir construir um outro género de narrativa”. 

80 anos de existência e de sucessos para o Lille com sotaque português
28 November 2024
80 anos de existência e de sucessos para o Lille com sotaque português

A equipa francesa do Lille festejou os seus 80 anos de existência no passado fim-de-semana durante o triunfo da equipa do Norte da França por 1-0 frente ao Rennes.

Em 80 anos, o Lille alcançou quatro títulos de campeão de França da primeira divisão de futebol masculino, bem como seis Taças, uma Supertaça e uma competição europeia, a extinta Taça Intertoto.

Ao longo destes anos todos, a presença lusófona foi-se intensificando. O primeiro lusófono acabou por ser o português Figueiredo que vestiu a camisola da equipa francesa de 1986 a 1989.

A partir daí vários foram os portugueses, os brasileiros, ou ainda angolanos, um cabo-verdiano, um moçambicano e um guineense a terem vestido a camisola dos ‘Dogues, alcunha da equipa gaulesa.

De notar as estreias: O primeiro brasileiro foi o avançado Walquir Mota em 1992, depois seguiram-se Capita, avançado angolano em 2020, Ryan Mendes, internacional cabo-verdiano em 2012, Reinildo, defesa moçambicano em 2018, e Edgar Ié, internacional guineense em 2017.

No total cerca de 40 jogadores lusófonos passaram pelo clube gaulês, isto sem esquecer dirigentes e treinadores. Luís Campos foi o director desportivo, Paulo Fonseca passou como treinador pelo clube, ou ainda Jorge Maciel que foi treinador-adjunto de vários técnicos que estiveram no banco do Lille.

Com sucesso ou com maiores dificuldades, a presença lusófona marcou um clube do Norte da França que durante metade da sua existência não teve qualquer jogador que falasse português.

Os dois primeiros títulos de Campeão de França, em 1946 e em 1954 não contaram com a presença de comunidades lusófonas nos plantéis.

No entanto, em 2011, na conquista do terceiro título, eram dois: os brasileiros Émerson Conceição e Túlio de Melo.

Em 2021, a ajuda das comunidades lusófonas foi preponderante, na conquista do título, com os portugueses Tiago Djaló, José Fonte, Xeka e Renato Sanches, o brasileiro Luiz Araújo e o moçambicano Reinildo, bem como os treinadores-adjuntos Jorge Maciel e Carlos Pires, e sem esquecer o conselheiro do presidente do Lille, Luís Campos, e o coordenador de formação, Luís Norton de Matos, este último foi aliás selecionador da Guiné-Bissau durante a carreira.

A RFI teve a oportunidade de abordar este momento histórico com José Fonte, capitão da equipa do Lille quando foi Campeão em 2021, aliás foi o único capitão estrangeiro a conquistar o título pelos ‘Dogues’.

José Fonte, agora defesa do Casa Pia em Portugal, vestiu a camisola do Lille entre 2018 e 2023. Em declarações à RFI, para além de falar do seu regresso ao território português onde ainda joga aos 40 anos, José Fonte admitiu que foi um momento emocionante regressar para os 80 anos do LOSC.

José Fonte, defesa central português, para além de se ter sagrado campeão de França, também conquistou o Campeonato da Europa em 2016 e a Liga das Nações europeias em 2019 com a selecção portuguesa.

Recuando no tempo, a RFI também teve a oportunidade de falar com o defesa brasileiro Rafael Schmitz, hoje com 43 anos, que envergou a camisola do Lille entre 2001 e 2007.

O antigo futebolista brasileiro assegurou ser um momento único regressar a Lille, ele que também abordou a sua actual vida profissional.

De notar que Rafael Schmitz, antigo jogador do Lille, conquistou a Taça Intertoto com o clube francês, prova da UEFA que já foi extinta.

Por fim, a RFI falou com o lateral brasileiro de 34 anos, Ismaily, que iniciou a sua terceira temporada com a camisola do Lille.

Ele, que chegou recentemente ao clube, afirmou que é uma equipa e uma região que merece êxitos em França.

Ismaily, defesa brasileiro, ingressou no Lille em 2022, isto após nove temporadas nos ucranianos do Shakhtar Donetsk, tendo saído após o início da invasão russa à Ucrânia.

De referir que o Lille festejou os seus 80 anos de existência a 25 de Novembro de 2024, sendo o clube do Norte da França com o maior número de títulos de Campeão conquistados, quatro, num historial dominado pelo Paris Saint-Germain com doze troféus.

De notar por último que a história do Lille também foi marcada pela passagem de Éder, internacional português que representou a equipa francesa entre 2016 e 2017, numa altura em que Portugal venceu o Euro 2016 com o único tento luso a ser apontado na final por Éder que deu o primeiro troféu à selecção das Quinas derrotando a França por 1-0 após prolongamento.

A história do Lille foi contada por Maxime Pousset no livro "LOSC, 80 anos de história e de orgulho".

O Magazine Vida em França regressa na próxima semana, e, entretanto, podem ouvir ou voltar a ouvir o programa desta semana em rfi.fr/pt.

 

Festival Olá Paris! quer mostrar em França "uma nova página" do cinema português
13 November 2024
Festival Olá Paris! quer mostrar em França "uma nova página" do cinema português

Olá Paris! quer ser o primeiro festival de cinema português em Paris a mostrar a nova geração de actores e realizadores lusos, preenchendo um vazio até agora existente em França. Tiago Guedes, Marco Martins ou Claúdia Varejão vão estar na capital francesa para discutir com os cinéfilos que venham até ao Club de l'Étoile, onde vai decorrer este evento.

O festival Olá Paris! vai trazer à capital francesa filmes, realizadores e actores portugueses, criando um evento da 7ª arte que quer fazer perdurar no tempo. A primeira edição deste festival decorre já de 29 de Novembro a 01 de Dezembro e Wilson Ladeiro, co-organizador e programador deste festival, explicou em entrevista à RFI as suas motivações para a criação deste certame.

"Eu gosto muito de cinema em geral, mas gosto particularmente do cinema português. Eu achava que aqui em França, em Paris, o cinema português não é que seja invisível, mas é passa pouco. Passa. E eu achava que o cinema português merecia muito mais, porque tem uma óptima qualidade. E não havia nenhum festival português de cinema em França. Pronto, então decidi que vamos íamos um festival de cinema português em França. E assim foi", indicou.

Juntamente como o irmão, Fernando Ladeiro-Marques, criaram o Olá Paris! com o apoio da Fundação Calouste Gulbenkian e da Caixa Geral de Depósitos, que vai decorrer durante três dias no Club de l'Étoile, no 17º bairro de Paris. Para a escolha dos filmes, Wilson Ladeiro, que é luso-descendente e trabalha no meio do audiovisual, viu centenas de filmes e acabou por escolher destacar quatro realizadores.

"O tema do festival é o cinema actual e da geração actual que o realiza, realizadores que estão a trabalhar agora. Está-se a escrever uma nova página página da história do cinema português, portanto, queria apresentar esta geração actual, os cineastas, os actores e as actrizes. Vamos ter "Alma Viva", da Cristèle Alves Meira, o documentário "Ama-San" de Cláudia Varejão, o filme "Restos do Vento" de Tiago Guedes e ainda “Great Yarmouth: Provisional Figures” de Marco Martins", descreveu.

Muitos destes realizadores vão estar em Paris, assim como os actores que os protagonizam como Isabel Abreu, Albano Jerónimo ou Beatriz Batarda. O festival mostrará ainda em ante-estreia o filme "Banzo" de Margarida Cardoso.

Este festival terá ainda uma mostra dedicada ao 25 de Abril, onde serão mostrados os o documentário "La Nuit du coup d'État - Lisbonne, avril 1974" de Ginette Lavigne e os "Capitães de Abril" de Maria de Medeiros. A lendária actriz portuguesa é ainda a madrinha deste evento e no quadro do festival estará com os alunos do Liceu Montaigne, também na capital francesa, para um debate sobre o 25 de abril e o cinema português.

O Olá Paris! conta ainda com outros eventos ligados às artes, como sessões de autógrafos do ilustrador Nuno Saraiva - que fez o cartaz do festival -  e também de Madeleine Pereira, autora da banda desenhada "Borboleta". O street artist Glaçon vai ainda mostrar algumas das suas obras durante o festival.

Manifestantes em Paris pedem "povo no poder" em Moçambique
07 November 2024
Manifestantes em Paris pedem "povo no poder" em Moçambique

Paris foi palco de uma manifestação da diáspora moçambicana, em frente à Praça da Bastilha, esta tarde. Tal como em Maputo e em outras partes do mundo, os manifestantes juntaram-se para contestar os resultados das eleições gerais de 9 de Outubro e para denunciar a repressão policial nas manifestações em Moçambique.

Nas ruas de Paris ouviram-se coros de “povo no poder”. A mensagem dos moçambicanos em protesto chegou à capital francesa, junto à simbólica Praça da Bastilha. Um grupo de mais de 20 pessoas empunhou cartazes com palavras de ordem e exibiu bandeiras de Moçambique, mas também cantou o hino moçambicano a “Pátria Amada”.

Laura Chirrime pertence ao grupo Indignados – Sociedade Civil dos Moçambicanos da Diáspora, um movimento que organizou em Paris e em várias outras cidades manifestações, esta quinta-feira, para pedir justiça eleitoral e para denunciar a violência policial nos protestos em Moçambique.

Pretendemos mostrar ao mundo o que está a acontecer em Moçambique. O mundo não sabe o que se passa. Sabemos que muitas organizações estão aqui em Paris, muita gente vai-nos ver. Estamos a gritar ao mundo ‘Socorro, por favor, ajudem-nos, Moçambique não está nada bem.

Nos cartazes dos manifestantes podia-se ler, em português e francês, "Povo no poder", “Liberdade para o povo”, “Moçambique igual para todos" e “Voto não é atestado de óbito”, mas também se liam críticas à Frelimo, partido no poder desde 1975.

Entre os manifestantes, a cantora Assa Matusse destacou que os artistas também têm o dever de se mobilizar.

É a primeira vez, na verdade, que me envolvo desta forma, sempre disse para mim mesma que jamais me iria posicionar politicamente porque a minha missão nesta terra é fazer música, mas chegam situações em que se ultrapassa a arte, ultrapassa todos os limites.

Outro artista presente era o músico Samito Tembe que empunhava o cartaz com a frase popularizada pelo rapper Azagaia, “Povo no poder”.

Eu não tenho medo. Povo no poder. Povo no poder. Povo no poder todos os dias. Eu não percebo como é tu votas, os dirigentes vivem à custa dos nossos impostos e não podemos reclamar se alguma coisa está mal. Não compreendo. Não vejo porque é que nos estão a atirar gás lacrimogéneo em Moçambique, estão a matar pessoas, não percebo...

“Alô mundo, alô Paris, alô França!”, gritou o investigador Anésio Manhiça, de passagem por Paris, que também agarrou no megafone para lembrar que os moçambicanos se reuniram nesta manifestação “por uma questão de direitos humanos e de justiça em Moçambique”.

Podemos falar e manifestar em Paris. Aqui, não corremos nenhum perigo, ao contrário dos nossos irmãos que estão em Moçambique. Estamos aqui para lançar esta voz contra a injustiça social em Moçambique, a injustiça eleitoral, os direitos humanos que estão a ser feridos em Moçambique, incluindo direito de liberdade até digital. Estamos aqui para lançar esta voz, ver se somos ouvidos e para poder ver alguma mudança política e social em Moçambique.

Entre os manifestantes havia também angolanos, como Lucas dos Santos, movido pela solidariedade com o povo moçambicano e pela luta pela justiça.

Somos todos africanos. Temos muitos laços que nos unem, começando pela língua portuguesa porque fomos colónia portuguesa. Somos a favor da liberdade. É injusto aquilo que se vive em Moçambique numa fase como esta. O poder é do povo e o povo é que deve escolher as pessoas que devem governar. Estamos aqui para dizer abaixo os assassinatos, abaixo a ditadura. Como angolanos temos que estar solidários, como sempre estivemos, com o povo moçambicano.

Além de Paris, os pedidos de justiça eleitoral e respeito pelos direitos humanos em Moçambique foram repetidos em várias outras cidades onde há diáspora moçambicana e em Maputo, o epicentro das manifestações.

Foi o candidato presidencial Venâncio Mondlane, principal rosto da oposição, que convocou, pelas redes sociais, a paralisação geral de sete dias que culminou, esta quinta-feira, com uma manifestação nacional em Maputo e acções na diáspora, naquela que ele descreveu como a “terceira etapa” da contestação aos resultados das eleições gerais de 09 de Outubro. Estes resultados, que ainda devem ser validados pelo Conselho Constitucional, dão a vitória a Daniel Chapo, candidato presidencial da Frelimo, partido no poder, com 70,67% dos votos, enquanto Venâncio Mondlane aparece em segundo lugar, com 20,32%. O candidato apoiado pelo Podemos rejeita os resultados, assim como os outros candidatos na corrida à presidência Ossufo Momade e Lutero Simango.

“A situação actual em Moçambique faz parte da minha vida artística”
07 November 2024
“A situação actual em Moçambique faz parte da minha vida artística”

Dimas Tivane é um malabarista moçambicano que vive em França e as suas criações são inspiradas no quotidiano de Moçambique. É com “muita dor e com muita frustração” que tem acompanhado a espiral de violência pós-eleitoral no país e sente que esta “quase guerra interna” vai ser representada nos seus próximos espectáculos. Esta quinta-feira, ele vai estar numa manifestação em Paris, no dia em que várias cidades serão palco de acções da diáspora, em solidariedade com a mega-concentração convocada para Maputo.

Numa altura em que Moçambique vive protestos e muita violência pós-eleitoral, fomos conhecer Dimas Tivane, um artista moçambicano a viver em França. O jovem é um malabarista confirmado e tem dado espectáculos em várias cidades em França e noutras partes do mundo, com uma arte que Moçambique ainda pouco reconhece e da qual não se pode viver no país. Fomos espreitar um dos seus ensaios no Centquatre, um espaço parisiense onde tantos artistas amadores e profissionais treinam diariamente. O encontro aconteceu na véspera de uma manifestação em Paris da diáspora moçambicana.

RFI: A arte é, por ventura, geneticamente política, no sentido de imaginar utopias de um mundo melhor e de denunciar com formas poéticas os males que se vão vivendo. Por isso queria-lhe perguntar como é que tem acompanhado os protestos e a repressão das manifestações em Moçambique?

Dimas Tivane, Malabarista: Com muita dor e com muita frustração. O povo moçambicano está a sofrer consequências directas desta opressão e deste assassinato ao povo moçambicano e às pessoas que batalham no dia-a-dia. É uma marca enorme. Moçambique está a atravessar um período único, enorme e extremamente doloroso porque já há mortes. Tudo isto nós sabemos que é por conta da opressão e da não liberdade e da não democracia de que o nosso país é vítima.

A diáspora moçambicana também está a organizar manifestações. Vai participar em alguma coisa?

Claro que vou participar. É uma tristeza enorme não poder estar em Moçambique agora e, por isso, juntámo-nos entre nós, moçambicanos residentes em França, não só em Paris, e fomos fazendo uma campanha antes do dia 7, que é o grande dia em que as pessoas se vão concentrar em Maputo, a capital. Juntámo-nos entre artistas, estudantes, pessoas civis que estão residentes em França e que queriam, na verdade, manifestar a sua frustração e o seu repúdio à situação actual em Moçambique. Então, esta quinta-feira, dia 7, às 14h, na Praça da Bastilha, nós vamos estar lá a gritar o nome de Moçambique para podermos conseguir fazer chegar as nossas reclamações e a nossa voz a quem de direito.

O que é que espera para os próximos tempos em Moçambique?

Eu espero que o governo actual perceba que o povo moçambicano é um povo batalhador, mas que agora há uma espécie de cansaço e de fadiga diante das experiências últimas que nós tivemos com as fraudes eleitorais. Eu acho que é altura que o governo oiça mais o povo. Na verdade, o governo deve trabalhar para o povo, não é o caso actual. Eu espero mesmo que esta mensagem chegue às pessoas que têm o poder de mudar a situação actual e que se sintam comprometidas com o povo moçambicano, que é um povo extremamente batalhador. Moçambique é um belo país, então é muito triste estarmos a atravessar isso entre nós mesmos, estarmos quase a viver uma guerra interna, é muito doloroso.

Até que ponto é que tudo o que está a acontecer em Moçambique pode, de certa forma, ter eco naquilo que você cria, produz e apresenta em palco?

Há sensivelmente dez anos que eu trabalho focado no quotidiano, no dia-a-dia, nas minhas experiências, nas experiências das pessoas que me rodeiam, então a situação actual em Moçambique é nada mais, nada menos que um elemento que já faz parte da minha vida artística. Então, nas minhas criações, de certeza que haverá uma chamada de atenção a esta situação actual que se está a viver em Moçambique. Na minha maneira de escrever, na minha maneira de criar e não só, sendo um artista moçambicano residente em França, tenho também este dever e sinto esta responsabilidade de poder falar de Moçambique, não só das dificuldades, mas também de como é que nós podemos superar este tipo de situações.

 

Pode fazer-nos uma curta apresentação, contar-nos o que leva a palco e que projectos tem em curso?

Eu sou malabarista profissional há sensivelmente dez anos. A minha arte consiste em manipular objectos. Eu lanço objectos e tento não os deixar cair, o que não acontece sempre!.. Então, esta é a minha arte. A minha especialidade é o malabarismo musical: eu misturo a música, a dança e o malabarismo. Eu canto, faço malabarismo e danço ao mesmo tempo. Esta é a minha especialidade há sensivelmente 10 anos.

Quanto a projectos, eu acabo de estrear um solo que se chama “Nkama”, que significa “Tempo”. Escrevi “Nkama” numa altura extremamente complicada e perturbada da minha vida. Então foi um tempo difícil para mim. Este espectáculo é uma celebração. A vida é o que eu decidi fazer com o meu tempo, o que nós decidimos fazer, apesar das coisas que acontecem em Moçambique, no Afeganistão, no Líbano, na França, em Israel. Eu decidi fazer malabarismo. Por isso é que eu chamo ao espectáculo Tempo.

Tenho muitos projectos. Estou agora num enorme projecto em Moçambique de construção de uma escola, de um centro cultural em Moçambique, em Maputo. É um projecto auto financiado. Sempre foi meu sonho fazer este projecto, então acredito que em 2026, se tudo correr bem, teremos a inauguração deste projecto que é, para mim, a culminar destes dez anos de experiência.

O projecto é uma escola de artes de circo?

Na verdade, nós vamos estar meio divididos entre um projecto de pedagogia e um projecto de criação. Nós não temos ainda em Moçambique estruturas capacitadas para acompanhar uma formação circense. No entanto, vamos tentar instalar, no início, uma prática quotidiana em Moçambique e, claro, dando espaço aos artistas que queiram criar, tanto da dança, do teatro, da música, das marionetas e tentar, com o tempo, conseguir este distintivo de escola de circo e tornar-se na primeira escola de circo de Moçambique. Se tudo correr bem.

Se não há escola de circo em Moçambique, como é que você descobriu e desenvolveu a sua vocação?

Eu beneficiei de uma formação oferecida pelo Centro Cultural Franco-Moçambicano em 2011. Fiz parte de um grupo de 80 artistas que foram lá batalhar, bater-se para ter um lugar neste estágio que durou quatro semanas. Depois do estágio, os formadores foram-se embora, dois artistas franceses, malabaristas. E depois de eles terem ido embora, eu fiquei tão apaixonado pela prática que decidi continuar, na verdade, a praticar no meu canto.

Veio parar a Paris pouco tempo depois. Quanto tempo depois?

Eu participei num espectáculo, num espectáculo que se chama “Maputo-Moçambique”, um espectáculo que estreou em 2013. Nós fizemos várias digressões com este espectáculo.

Um espectáculo do Thomas Guérinaud...

Exacto. Participei neste espectáculo e foi este espectáculo que constituiu uma porta de entrada para a indústria criativa em França. Feito isso, continuei a ter contratos com outras companhias na Inglaterra, na Finlândia, no Brasil e em Portugal. Então, a necessidade de me instalar num lugar onde eu pudesse praticar todos os dias era mesmo urgente e decidi vir a França. Porquê? Porque tinha muitos contratos cá na altura e depois de sete anos a fazer idas e voltas entre Moçambique e França, instalei-me em Janeiro de 2020.

Quando estava a ensaiar, contou-me que também está, neste momento, a preparar projectos com o Japão e com outros países.

Eu tornei-me artista independente, criei a minha companhia actual, que se chama Companhia Nkama. Esta companhia é uma semente que eu quero lançar para poder chamar os jovens criadores e autores a poderem lutar pela sua autonomia, sendo a minha primeira obra “Nkama”, da qual eu falo com muito orgulho porque é uma obra que engloba música, dança, malabarismo, em changana, que é a minha língua materna...

Do sul de Moçambique...

Língua do sul de Moçambique, de onde eu venho, onde eu nasci e cresci. Graças a este espectáculo, eu fui actuando em alguns sítios em França. A estreia do espectáculo foi na Guadalupe, em Point-à-Pitre, e com algumas parcerias que eu tive na Suécia, em Guadalupe, em Goiânia e na França, o espectáculo ganhou tanta visibilidade que eu fui convidado a fazer alguns projectos colaborativos em Taiwan, com uma equipa de 15 artistas que vão estar lá a criar e fui convidado a fazer a direcção artística deste projecto. Recentemente, recebi um convite para fazer uma digressão de 15 espectáculos em oito cidades no Japão. É o culminar também de todo este trabalho que venho fazendo de malabarismo, música e dança. Então, abriu-me portas para poder conhecer outros universos, ir à América, à Ásia, África, à Europa e por aí adiante.

E tudo começou quase como um acaso... Tinha quantos anos quando descobriu o malabarismo nessa formação em Maputo?

Eu comecei o malabarismo muito tarde. Na altura eu tinha 19 anos.

Até que ponto acredita que a arte - seja teatro de rua, malabarismo, artes circenses, dança - consegue sacudir as mentalidades e mudar alguma coisa?

A arte tem este poder de passar não só pelos textos, mas por suportes visuais que chamam as pessoas a uma reflexão bem ousada, mas, no final das contas, acaba sendo uma porta de saída do que os livros não conseguem dizer, do que os espectáculos não conseguem dizer. Então, a arte, que é, na verdade esta mistura de música, gastronomia, maneira de vestir, pode ser bem forte para poder influenciar mentes, para poder deixar passar mensagens.

Investigadores publicam “Portugueses em França: uma imigração invisível?”
31 October 2024
Investigadores publicam “Portugueses em França: uma imigração invisível?”

Em Outubro, foi lançado, em França, o livro “Les Portugais en France: une immigration invisible?” [“Os Portugueses em França: uma imigração invisível?”], editado pelas investigadoras Sónia Ferreira e Irene dos Santos. A obra reúne estudos de vários especialistas da emigração portuguesa e questiona o conceito de “imigração invisível” associado à comunidade portuguesa em França.

RFI: Como descreve, em poucas palavras, a obra “Les Portugais en France: une immigration invisible?”

Sónia Ferreira, Co-editora da obra “Les Portugais en France: une immigration invisible?”. É uma obra académica que reúne um conjunto de capítulos que são feitos por investigadores na área da antropologia, da sociologia, da história, e que são investigadores que têm trabalhado ao longo das últimas décadas sobre esta questão da imigração portuguesa em França. Mas também é um livro que visa ir para além da comunidade académica, ou seja, é um livro que também gostaria de chegar a um público mais alargado, precisamente para não se centrar apenas na discussão interna académica, mas para suscitar conversas e discussões sobre a imigração portuguesa em França, que vá para além desses círculos mais restritos.

Por isso, é uma publicação que é feita através de uma editora que tem a divulgação também de obras com outro tipo de características, mas com uma parceria com uma instituição académica. Portanto, tem esta dupla pertença, digamos assim.

Uma das perguntas que está no título é “imigração invisível?”. O sociólogo português Albano Cordeiro foi pioneiro nesse conceito, creio eu. O que significa essa noção?

Albano Cordeiro - a quem nós, aliás, dedicámos o livro devido ao seu falecimento recente e que foi uma pessoa muito importante a pensar a temática da migração portuguesa em França e foi pioneiro em muitos dos seus trabalhos sobre essa temática - tinha esse conceito do “paratonnerre maghrébin”, essa ideia de que muitas vezes os migrantes portugueses eram vistos como os bons migrantes, por oposição, à migração pós-colonial francesa, nomeadamente à migração magrebina, e portanto, havia essa ideia dos portugueses como católicos, como brancos, que estariam ao abrigo de muitas discussões sobre as questões religiosas, sobre as questões de racialização, em França.

Nós questionamos um pouco essa ideia, tentando mostrar que ela não é verdadeira e, portanto, de alguma forma há processos de invisibilização, mas também não é isso que faz com que os portugueses não tenham também, por exemplo, sofrido de processos discriminatórios no seu processo de instalação em França.

Ou seja, afinal não é uma imigração invisível como até agora se tem sustentado?

É uma imigração invisível nalguns aspectos ou uma emigração que ficou nalguns aspectos da sociedade francesa invisibilizada, mas, como sabemos, é uma imigração que tem um papel de visibilidade e destaque em muitas áreas da sociedade francesa. Muitas vezes essa questão do visível e invisível tem a ver até com aspectos negativos ou menos agradáveis e, portanto, é isso que nós questionamos. Ou seja, há processos de invisibilização da imigração portuguesa, mas até que ponto eles não devem ser também discutidos e questionados? E que repercussões é que isso tem para os próprios portugueses em França?

Todos estes processos que levam ao seu posicionamento na sociedade francesa e, portanto, há que questionar a sociedade francesa como um todo e não apenas olhar para os portugueses como um grupo isolado, mas pensar os portugueses na sua interacção com os outros grupos imigrantes em França, desde os europeus que chegam muito antes dos portugueses, como é o caso dos espanhóis ou dos italianos ou dos polacos, etc, às migrações pós-coloniais em França, principalmente aquelas que se dão nos processos de descolonização, que é quando a maior vaga de portugueses chega a França a partir dos anos 70.

Esta noção de bons imigrantes, de mão-de-obra dócil e silenciosa, não contribuiu até hoje para a instrumentalização desta imigração portuguesa por parte da extrema-direita francesa e não cultivou, de alguma forma, um certo racismo dos portugueses relativamente a outras migrações?

Sim, é verdade. Nós temos que pensar que, por um lado, se podemos dizer que os migrantes portugueses foram alvo de racismo e discriminação em determinadas situações - que o foram e esse é um processo que também está bastante invisibilizado, essa dimensão da discriminação que os portugueses sofreram em França - isso não os isenta de serem eles também, muitas vezes, agentes de discriminação.

Não nos podemos esquecer que os portugueses que chegam a França nos anos 60 e 70 vêm do regime ditatorial salazarista colonial português e migram vindos de uma sociedade onde prevalecia uma ideologia racista. Muitas vezes, o que podemos detectar é que na imigração portuguesa, na sua relação, por exemplo, até com migrações pós-coloniais portuguesas que vão para França, como é o caso de cabo-verdianos e de outras migrações que vêm dos circuitos pós-coloniais portugueses e que se encontram, em França, por exemplo, em locais como o mercado de trabalho - como o BTP [construcção civil] em que partilham associativismo -os portugueses também são, muitas vezes, agentes de discriminação com essas populações e também na relação com os próprios povos do Magrebe.

Portanto, há essa herança ideológica da sociedade onde imperava uma ideologia racista no Estado Novo e depois em França, são também confrontados, obviamente, com as ideologias racistas e de racialização que se encontravam presentes em França, nomeadamente por relação às populações africanas, da África francófona, do Magrebe, etc.

Quando diz que os portugueses foram alvo de racismo e de discriminação, estamos a falar do quê?

Podemos falar no mercado de trabalho, por exemplo. Gostaria de citar o trabalho que tem sido desenvolvido, por exemplo, no âmbito da Associação Memória Viva e também alguns exemplos que têm sido visibilizados pelo Hugo dos Santos na sua página nas redes sociais. Ele tem dado a conhecer exemplos em locais de trabalho ou em interacções com a própria sociedade francesa e com as instituições francesas, nomeadamente as instituições do Estado, não só nos processos também de realojamento, como foi com os famosos “bidonvilles”, nas fábricas, etc.

Há algumas formas de discriminação contra os migrantes portugueses desse período que estão documentadas. Aliás, o próprio Victor Pereira refere isso e houve até uma coluna assinada há uns tempos num jornal [L’Humanité] em que precisamente se chamava a atenção para a não instrumentalização dos portugueses como os “bons migrantes”, dando exemplos concretos de situações em que eles também foram alvo de discriminação.

Mas aí eu acho que é preciso ver a discriminação que vem da relação quotidiana e a discriminação estrutural que é uma discriminação que é imposta e que é através das instituições do Estado.

Outro aspecto pouco falado que vocês abordam nesta obra é o papel das mulheres portuguesas imigrantes em França na transformação do modelo familiar rural português após o contacto com famílias francesas. Quer explicar?

Sim, nós pensamos que as questões de género têm sido pouco trabalhadas. Quando tentamos olhar para trás e vemos os trabalhos que têm sido feitos sobre a imigração portuguesa, as questões de género, nomeadamente os trabalhos sobre as mulheres, não têm tido muita preponderância, digamos assim.

Até porque quando se fala das mulheres portuguesas em França ainda persiste o estereótipo da “concierge”, da porteira ou da “femme de ménage”, mulher das limpezas. Mas há outro modelo, que acaba por ser o de um certo empoderamento que já começa com a emigração portuguesa das mulheres nos anos 70?

No fundo, há um pouco de tudo. Há um modelo familiar, que vem também do Portugal do Estado Novo, que é aquele que chega também a França juntamente com estes imigrantes. Há também, é verdade, a questão da “concierge”, aliás, há um texto de Dominique Vidal, no livro, que trabalha precisamente sobre a questão das porteiras portuguesas, mas estamos a falar da região parisiense, ou seja, é uma realidade relativamente circunscrita e mesmo dentro dessa realidade é preciso distinguir as mulheres que trabalham para o sector privado e as mulheres que trabalham para o sector público porque isso também tem influência, depois, para os bairros onde vão residir e trabalhar e com os projectos de mobilidade social, por exemplo, ascendente das suas famílias.

Mas uma das coisas que nós também quisemos questionar - e aí prende-se também com as questões de género – é que muitas vezes há um olhar maior e mais concentrado na região parisiense. E é preciso compreender que é preciso olhar também para outras regiões em França onde também existem bastantes portugueses e em que as formas de organização familiar e laboral não são exactamente as mesmas e podem estar mais ligadas às zonas rurais.

No que diz respeito aos papéis de género, é preciso discutir - e esta é uma discussão que se tem na área das migrações - até que ponto os projectos migratórios são ou não projectos emancipadores. É interessante, no livro, o texto da Yasmine Siblot, que trabalha sobre migrações mais recentes de mulheres e discute esta questão de o projecto migratório ser ou não um projecto emancipador, não só pela via do trabalho, mas também pela via do conjunto ou da teia de relações sociais que se estabelece no novo contexto. E aí também, no caso em que ela está a trabalhar, estamos a falar de mulheres também ligeiramente mais novas do que as mulheres da primeira geração que chega a França em finais dos anos 60, dos anos 70.

E depois há que também ver aquela geração que vai ainda pequena com os pais e que depois vão seguir caminhos e modelos de género diferentes, muitas vezes enveredando pela via artística, pela via académica, pela via política. E é aqui também importante referir o envolvimento dos portugueses nalguns movimentos sociais franceses, nomeadamente na Convergence 84, por exemplo, em que algumas mulheres portuguesas também se envolveram.

O que é importante, acima de tudo, é mostrar que isto é muito mais heterogéneo do que se possa pensar num primeiro olhar mais essencialista sobre a mulher portuguesa dona de casa, etc.

Faz sentido ainda hoje, estudar-se, ainda, a imigração portuguesa em França, um país onde o modelo da sociedade é fundado pela tentativa de assimilação dos imigrantes?

Acho que faz, claro. Do ponto de vista histórico, sem dúvida, do ponto de vista socio-antropológico também até porque, mesmo que se possa dizer que a partir das segundas ou terceiras gerações já não estamos a falar de migrantes - no sentido formal do termo, estamos a falar de indivíduos que têm a nacionalidade francesa - mas a questão da migração e da história da migração na família é algo que não se desvanece, não é?

E, portanto, as repercussões que a emigração tem numa família é algo que conseguimos e devemos ler e estudar no tempo longo, como um processo. Do nosso ponto de vista, enquanto académicos da antropologia, da sociologia, da história, não nos interessam só as categorias formais e estatísticas de quem é ou não é imigrante, mas também perceber como é que o fenómeno da migração configurou aquela família no passado e configura no presente e muitas vezes até configura expectativas de futuro, sejam expectativas de futuro para estar em França, viver em França, mas muitas vezes também expectativas de regressar a Portugal e do tipo de relação que se estabelece com Portugal.

Para nós, independentemente dos modelos e do modelo político francês no que diz respeito às questões migratórias, a migração é muito mais do que isso e a imigração é um processo que deve ser estudado a longo prazo e em todas as dimensões que a constituem.

A obra “Les Portugais en France: une immigration invisible?” foi publicada na editora “Le Cavalier Bleu” e conta com textos dos investigadores Sónia Ferreira, Irene dos Santos, Manuel Antunes da Cunha, Cristina Clímaco, Margot Delon, Inês Espírito Santo, Guillaume Étienne, Victor Pereira, Yasmine Siblot, Filomena Silvano, Dominique Vidal e Marie-Christine Volovitch-Tavares.

A música é resistência na voz da moçambicana Assa Matusse
30 October 2024
A música é resistência na voz da moçambicana Assa Matusse

A cantora e compositora moçambicana Assa Matusse canta "as dores" do seu povo e acredita que um artista não pode ficar alheio “aos irmãos que estão a morrer em Moçambique por reivindicarem os seus direitos”. A “menina do bairro”, que vive hoje em Paris, levou a língua changana a vários palcos internacionais e promete continuar a cantar Moçambique no mundo como uma forma de “resistência”. Assa Matusse não se deixa intimidar e avisa que “o medo não é antónimo de falta de coragem”.

Assa Matusse é cantora e compositora. É conhecida como a «Menina do bairro» em Moçambique, o país onde nasceu e onde absorveu ritmos tradicionais que ainda constituem o ADN da sua música, combinados com sonoridades modernas como a pop e o jazz. Assa Matusse canta em changana, a sua língua materna, em português, inglês e francês. Vive actualmente em Paris e está connosco na RFI para nos falar sobre a sua música, o que a inspira e o que a preocupa.

RFI: Sendo uma voz de Moçambique ouvida em vários palcos internacionais, eu queria mesmo começar por lhe perguntar como olha actualmente para a situação em Moçambique perante a contestação eleitoral, perante as detenções e mortes de manifestantes, o duplo homicídio de dois apoiantes da oposição, a convocação de uma semana de manifestações e de greve geral. Como é que olha para toda esta situação?

Assa Matusse, Cantora: Têm sido dias difíceis. Não tenho conseguido realmente viver como se nada estivesse a acontecer. Se calhar é o sentimento de impotência por eu estar deste lado, em Paris, enquanto existem os meus irmãos que estão a morrer em Moçambique simplesmente porque querem reivindicar os seus direitos. Isso tem tirado muito o meu sono. Não posso estar aqui a fingir o contrário, não é? Devia estar concentrada em preparar a minha tournée e tudo, mas têm sido dias muito difíceis e até pensei em sair um bocadinho das redes sociais para tentar ver se consigo economizar as minhas energias e emoções, mas não é possível.

É muito triste o que tem estado a acontecer com os moçambicanos e eu sinto-me extremamente tocada por isto porque eu sou moçambicana. Eu conheço muito bem as dificuldades que a gente tem naquele país e as dificuldades nunca são iguais. Existe uma parte que usufrui muito bem. Tudo o que a gente tem é que nós, moçambicanos, os verdadeiramente moçambicanos, de alguma forma, o povo não consegue, nem sequer os de Maputo.

Eu sou moçambicana, conheço outros países. Estou aqui em Paris, já estive na Noruega por conta dos estudos e tantos outros países a fazer alguns shows e tudo mais, mas nunca sequer cheguei no norte do país, porque o país é extremamente caro para os moçambicanos e normalmente são os que hoje em dia não aceitam que a gente reivindique, que usufruem e que conhecem o país e todas as maravilhas. A gente conhece pelas fotos, tantas outras coisas. Eu estou aqui a fazer a menção para que se possa perceber a que ponto eu, sendo artista, se calhar devia ter um bocadinho mais de possibilidade, se calhar, de chegar um bocadinho mais longe dentro do meu país e eu mesma não conheço Moçambique.

Se calhar chega mais longe graças ao canto, à sua voz e às mensagens que passa nas suas músicas. Fala na pobreza do seu país, fala na inferiorização sistémica da mulher. São músicas com um teor interventivo. Até que ponto a actual situação de Moçambique também poderá vir a inspirar a sua música?

A minha música sempre teve inspiração no povo moçambicano. As mulheres que eu falo são as mulheres de Moçambique porque são as mulheres que eu cresci a ver. Depois, coincide sempre com todo o desafio da mulher no mundo. Mas eu tenho dito que a mulher moçambicana, em qualquer lugar onde ela possa estar, vai-se dar muito bem porque as dificuldades, sendo mulher em Moçambique, também nas artes, é imensa e estrondosa. Então, em qualquer lugar, o problema vai ser menor.

É esta situação e tantas outras coisas que têm acontecido no meu país que têm sido a minha grande inspiração e, sobretudo, quando eu falo dos ritmos. Sempre fui apaixonada por tudo o que se faz em Moçambique, em termos rítmicos, sobretudo na parte do Sul, porque eu sou do Sul, da capital do país, Maputo, da zona periférica chamada Mavalane, onde eu cresci. É de lá que saem estas minhas melodias. Tanto é que eu tenho uma música no último álbum chamado “Mutchangana”, cujo título é “Som do Beco” porque são os sons do meu beco e todos esses sons que fazem parte deste álbum são sons que eu fui apanhando neste beco, quando eu estava em casa, um simples gritar de uma criança me remetia para uma melodia e eu consegui realmente trazer os sons do meu beco. O meu beco neste momento também é o meu Moçambique.

Em “No Som Beco” você canta “A malta não janta, não almoça, só come”. Depois, na música “A que preço” questiona: “Como fui germinar nesta pobreza?” Porque é que fala sobre a pobreza em Moçambique, um país que é classificado pela ONU como um dos mais pobres de África?

Eu insisto porque esta é a realidade de 90% da população moçambicana. Os 10% são aqueles que têm privilégios, são privilegiados e podem usufruir de tudo. Mas 90%, se calhar ainda mais do povo moçambicano, está na pobreza. E eu, um desses dias, estive a pensar muito sobre a música “A que preço” e nem sequer pensei nos meus pais quando eu escrevi isso, porque quando eu digo: “passa muita coisa na minha cabeça, porque é que não nasci na realeza, como é que fui germinar nesta pobreza?” Eu estou a falar simplesmente de um lugar onde as oportunidades não faltassem e as oportunidades para mim sempre foram escassas. A gente sempre teve que correr muito atrás e é assim a vida da maioria dos moçambicanos.

Mais ainda para as mulheres… A Assa Matusse fala muito das mulheres e das meninas moçambicanas, tanto em “Mutchangana” quanto no disco anterior, o “+Eu”. No “+Eu” você canta: “Eu sempre fui mais eu, poderosa, optimista, muito eu”, mas também canta: “A culpada sou eu por ter nascido mulher”. Que força é essa que quer dar às meninas e às mulheres moçambicanas?

A força que temos, muitas vezes temos medo de exteriorizá-la. Eu só estou a tentar trazer para fora o que já existe, na verdade, porque eu mesma me surpreendo a cada dia. O simples facto de ter saído do meu país, o que não é fácil... Eu saí do país não porque não amo Moçambique, é o contrário: de tanto amar o meu país, eu achei melhor ir embora para tentar ver se conseguia dar voz à música de Moçambique porque é uma música que não se conhece no mundo.

 Quando eu falo das mulheres nas músicas é porque eu mesma tive que atravessar tantos obstáculos e não havia outra solução, para mim, a não ser ser forte. Então, eu falo tanto da força do “ser mais eu” porque eu preciso falar, verbalizar para que realmente eu consiga seguir e dizer “eu sou realmente mais eu”. Hoje em dia já não tenho muita opção a não ser isto mesmo porque já verbalizei que o sou.

Tenho falado, também, muitas vezes das mulheres, sobretudo dos bairros, por conta da questão das oportunidades, mas também por todas as dificuldades e desafios que a mulher tem, sendo mulher em Moçambique e tudo o que é preciso se submeter para conseguir continuar a sua carreira, seja ela na música e mesmo no trabalho. Existem tantos desafios, até as meninas do bairro nem podem se calhar ir para lá [Maputo]. Eu conheci a cidade com 15 anos, isso não é normal. Eu vivo a 15 minutos de Maputo. Porquê? Porque eu nunca tive nenhuma oportunidade para lá chegar, não é? As minhas escolas sempre foram ali no bairro, mas quando eu digo não conhecia a cidade, significa que eu não conhecia muitas coisas que a cidade nos pode proporcionar antes dos 15 anos.

Eu tenho falado muito dessa questão porque é preciso também começar a aperceber que este barulho todo que está a existir, as nossas reclamações não estão a surgir de hoje. Já há anos que as coisas são assim e que os moçambicanos, sobretudo as mulheres, têm medo de voltar para casa. Eu comecei a carreira com 15 anos. É por isso que comecei a conhecer a cidade com 15 anos porque realmente tinha que me fazer à cidade para poder ter as oportunidades. Mas tinha medo de voltar para casa porque não existia electricidade e depois tínhamos que fazer a amizade com os meninos mais perigosos, digamos, para que nos deixassem tranquilas e que quando nos vissem a chegar servissem como protecção e não achassem que éramos inimigos. É por isso que as mulheres, sobretudo as meninas do bairro, sempre vão carregar a minha voz para militar, como se diz por aí na gíria.

Tem levado a sua voz a vários palcos internacionais. Em “Mutchangana”, o álbum que lançou em 2023, a Assa canta em português, francês, inglês, mas também canta em changana. O que é que representa íntima e politicamente levar o changana por esse mundo fora e para as plataformas de escuta online?

Isto significa uma verdadeira identidade e orgulho daquilo que eu sou. Quando era mais nova, como eu já disse, falava changana, a maioria das famílias fala changana. Estou a tentar fazer uma música chamada “português do meu pai” porque ele tem uma forma de falar muito dele que era muito engraçada e eu percebo o quanto o meu pai se esforçou para conseguir dizer um “bom dia, como está?” em português porque nós falávamos a língua da minha família, o changana, não é?

Então, eu cresci a falar changana. Eu aprendi a falar português na escola. Para mim o português é como o francês e como o inglês que tive que aprender fora de casa e usar também como uma ferramenta de trabalho e meio de comunicação. Mas isso não significa que eu não tenha nenhum orgulho e que não ache que o português é uma língua minha. Também acho que a minha língua é a língua oficial de Moçambique e tenho tanto orgulho de fazer parte da lusofonia.

Mas é preciso aqui sublinhar que eu sou moçambicana e por ser moçambicana, tenho a realidade de um grupo de moçambicanos que não tiveram contacto com esta língua muito cedo. Então vou cantando em changana e deixa-me dizer que é a língua onde eu me sinto mais expressiva, mesmo ao cantar e a comunicar também é extremamente forte para mim. Esta língua, para mim, é significado de resistência porque essas línguas todas - há quem chame de dialecto, mas eu não chamo de dialecto - são línguas que em algum momento fomos proibidos de falar nas escolas. Existiu um tempo onde não se podia falar changana dentro de casa porque era preciso falar o português, o que era importante, mas também não podem marginalizar a nossa língua. Eu quis realmente realçar o orgulho que tenho desta língua que não é um dialecto, é realmente uma língua.

Essa língua e a etnia mutchangana dão origem ao álbum Mutchangana. Em 2016, lançou o “+Eu”. E agora? O que está a acontecer na sua carreira? Anda em tournée? Está já a preparar novas canções para um novo disco ou ainda é cedo?

Não, não é cedo. Nunca senti nenhuma pressão para trazer novos trabalhos, mas os trabalhos, novas melodias, acontecem quando acontecem coisas na nossa vida. E é preciso frisar que faz três anos que eu estou em Paris e neste tempo aconteceu muita coisa e o álbum foi começado em Moçambique. Ele foi feito em Moçambique, veio a ser terminado aqui na França, em Paris, mas foi começado lá.

Nestes três anos, há muita coisa que aconteceu e é preciso que eu exteriorize tudo isto. E é a partir e através da música que eu posso fazer isso. Não existe outra forma para mim de verbalizar tudo aquilo que me acontece, os desafios e, sobretudo, também a resistência. Como se sabe, os moçambicanos não estão muito no mundo porque já sofremos tanto na nossa casa que temos medo, na verdade, de sair e nos tornarmos mendigos, de alguma forma, no estrangeiro. Eu peguei esta força que os moçambicanos têm, mas têm medo, só que o medo não é antónimo de falta de coragem. Muitas vezes é simplesmente o medo de acabar dando um passo que podemos dizer, mais para a frente, que “se calhar teria ficado melhor na minha casa, que sofrendo, não sofrendo, estou com a família”. Então eu peguei e arrisquei e vim para cá. De lá para cá aconteceu tanta coisa que é preciso que eu verbalize. Então há muita música a vir por aí. Também estou a preparar a minha tournée e, aos poucos, também vou tentando conhecer novos palcos no mundo porque eu sou moçambicana, mas não pertenço só aos moçambicanos, sou artista, pertenço ao mundo.

Em Moçambique chamam-lhe “A Menina do Bairro” e é o nome de uma música do primeiro disco. Canta “Sou dos becos, lá no bairro… brincava na areia, com os meninos do meu bairro”. Para quem não a conhece, porque é que lhe chamam ainda “a menina do bairro” e quem é esta “menina do bairro” que nasceu em Maputo em 1994, cresceu a ouvir o canto e a guitarra do pai e vive em Paris actualmente? É uma resistente, já percebi…

Eu não sei exactamente em que momento comecei a ser chamada “menina do bairro”. A verdade é que eu tenho uma música chamada “A menina do bairro” e faz parte do primeiro álbum. Eu acho que esta música, tanto quanto o “+Eu” tiveram muita força. É que as pessoas começaram a apelidar-me assim. Eu recebi com muito orgulho este nome, este carinho, porque para mim vejo isso como um carinho. Quando eu tinha uns dez anos, se me chamassem “menina do bairro” eu ia ficar, se calhar, de alguma forma constrangida porque naquela altura, de certa forma, não tínhamos tanto orgulho dos nossos bairros, achávamos sempre que éramos inferiores porque éramos do bairro.

Então, com o tempo as coisas foram mudando e eu tenho tanto orgulho. E é assim que as pessoas começaram a chamar-me “a menina do bairro” porque vim com esta música intitulada “A menina do bairro”, mas também porque, de alguma forma, saí muito cedo de Moçambique, vou viajando nos países lá fora e que não conhece nem sequer o norte do país porque não teve possibilidades para lá chegar.

Mas fala dos ataques em Cabo Delgado numa das músicas…

Claro, porque Moçambique é Moçambique, não é? Não está dividido. Claro que tem o Norte, o Sul, o Centro, mas é Moçambique. E eu sou moçambicana. A dor das pessoas de Cabo Delgado é a minha dor. Foi triste. Na verdade, eu já senti a dor estando aqui e o sentimento de impotência também me atravessou, muito como nesta altura, diante de tudo o que está a acontecer.

Naquela altura era mesmo a questão de perceber que os próprios polícias não tinham, se calhar, nenhum apoio do governo para que eles tivessem mais protecção. Era o mata mata realmente. Tanto é que, em algum momento, teve pessoas com medo de ir a Cabo Delgado. Palma ficou deserta. Famílias, meninas foram sequestradas, foram decapitadas e nós recebermos esse tipo de notícia, vendo os pais na televisão a chorar, a gritar, as suas filhas levadas por pessoas desconhecidas que entraram dentro da sua residência e fizeram isto. Eu não tinha como não falar disso. Eu tenho dito que eu estou aqui para servir a comunidade porque não acredito que sendo artista me posso isolar simplesmente entre a música e a guitarra e todos os ritmos que eu amo, sem poder falar daquilo que atravessa e que o povo tem estado a sofrer tanto em Moçambique, quanto no mundo, mas sobretudo em Moçambique. Porque eu sou moçambicana e me impacta muito mais.

Ou seja, aquilo que a move, que a motiva a escrever e a cantar são as dores do seu próprio povo?

Sim. São as dores, as dores do meu povo. A dor do outro sempre tem um impacto muito grande na minha vida e os que me conhecem muito bem, a minha própria família, sempre têm dito: “às vezes, a gente acha que esqueces que também és um ser humano.” A minha família diz isto muito porque eu tenho muito esta questão de sentir a dor do outro. Eu não preciso de fazer parte do mesmo partido, não preciso de fazer parte da mesma religião para sentir a dor do outro. Para mim, alguém passar por mim doente, eu consigo sentir uma dor que não consigo explicar. Eu acho que o sofrimento no mundo é uma das coisas mais tristes e, para mim, poder alegrá-los com a minha voz, ou simplesmente, fazer as pessoas sentirem uma certa emoção através da minha voz e das melodias - até podem ser tristes porque estamos a falar de uma coisa triste - mas vai dar um sentimento de “aconteceu, mas estamos a viver, precisamos seguir em frente”.  

Eu acho que é uma das minhas missões também no mundo. Os artistas também deveriam, realmente, neste momento, serem mais conscientes e perceberem que não é sobre fazer parte de um certo grupo, é sobre ser artista. E sendo artista, nós somos a voz do povo.

9ª edição da feira AKAA contou África no presente
24 October 2024
9ª edição da feira AKAA contou África no presente

A 9ª edição da feira de arte e design africanos AKAA - Also Know as Africa - decorreu entre os dias 18 e 20 de Outubro no Carreau du Temple, em Paris. Esta é a primeira e principal feira de arte contemporânea centrada em África que conta com artistas da diáspora, afro-descendentes, africanos do continente que contam África no presente.

Como reinscrever a representação africana na história da arte? Esta é uma questão que muitos artistas exploram, combinando cores vivas dos têxteis com o preto da pele, como é o caso do nigeriano Sanjo Lawal. O trabalho do nigeriano foi apresentado na feira pela galeria portuguesa THIS IS NOT A WHITE CUBE.

Este ano temos dois artistas revelação: o Ibrahim Kébé, do Mali, e o Sanjo Lawal, da Nigéria, que é a figura central da imagem da própria feira. São duas novas revelações de países que também não são muito habituais nestas feiras internacionais. A verdade é que o encontro com estes artistas vem de múltiplas formas através da pesquisa. Um deles estava em exposição com um outro artista representado por nós. A certa altura, e através dessa pesquisa do cruzamento de plasticidade noutros projectos curatoriais, acabamos por encontrar novas revelações com quem vamos trabalhando do ponto de vista da direcção artística e da curadoria. 

Graça Rodrigues, da THIS IS NOT A WHITE CUBE, explica-nos que foi criado um projecto para esta feira, procurando entrar em diálogo entre países com afinidades coloniais e históricas, reflectindo sobre o conceito de descolonização.

A feira transforma-se consoante as mudanças que se operaram na própria cidade, com a presença de outras grandes feiras. [No fim-de-semana 19 e 20 de Outubro] existiu um programa muitíssimo activo e, portanto, por um lado, a feira beneficia disso e, por outro lado, talvez também seja algo prejudicada. Esta é uma feira satélite, mas efectivamente permite destacar estes jovens que depois terão o seu percurso e, eventualmente, estarão noutras posições num momento mais à frente.

A Perve Galeria voltou a marcar presença na mais importante feira de arte contemporânea africana europeia, AKAA - Also Know as Africa. A galeria portuguesa apresentou obras de Ernesto Shikhani (1934 - 2010, Moçambique), João Donato (n. 1953, Moçambique), Malangatana Ngwenya (1936-2011, Mocambique), Manuel Figueira (1938-2023, Cabo-Verde), Reinata Sadimba (1945, Moçambique) e Teresa Roza d'Oliveira (1945-2019, Moçambique)

Este ano, a Perve galeria presta homenagem ao legado do artista cabo-verdiano, Manuel Figueira, explicou-nos o galerista português, Carlos Cabral Nunes.

Quisemos fazer uma homenagem ao mestre cabo-verdiano Manuel Figueira, que faleceu há um ano. Quer aqui em Paris, quer em Londres, na semana passada, quisemos destacar a obra dele e depois estamos a apresentar pela primeira vez em Paris, a obra de dois artistas com quem trabalhamos: a Manuela Jardim, da Guiné-Bissau, com quem já começámos a trabalhar há uma série de anos e que levámos também a Londres. E o João Donato de Moçambique, ceramista. Depois temos os repetentes, chamemos-lhe assim, que nós já apresentámos noutros contextos, aqui em Paris, mas com obras que não tínhamos mostrado antes. No caso do Malangatana, temos uma obra dele que estamos a mostrar e que que é uma obra paradigmática daquilo que foi o chamado período feliz dele depois da independência e de ter passado no campo de reeducação. Depois de Moçambique se tornar independente, foi criado um campo de reeducação à moda soviética. O Malangatana era considerado burguês porque vendia as obras. Portanto, o novo governo achou que ele tinha que ser reeducado para trabalhar para o povo.

Malangatana foi forçado a ensinar pintura neste campo de reeducação, vivendo afastado da família durante vários anos. Em 1981, deixa de ser forçado a fazer este trabalho e começa a produziu obras que celebram momentos felizes, incluindo um auto-retrato com a sua esposa, símbolo de amor e devoção.

Ele foi obrigado a fazer trabalho comunitário para as populações e ensinar as pessoas a pintar. O que é certo é que aquilo era forçado porque ele foi afastado da família. Depois houve uma altura em que o deixavam ir a casa durante um período, mas tinha que voltar para o campo de reeducação. As pessoas que eu conheço em Moçambique e que eram amigas de Malangatana, achavam que aquilo tinha durado uns meses, mas não, aquilo durou anos.  

O mercado da arte está a viver um processo de transformação, especialmente devido às novas tecnologias e das novas gerações. Carlos Cabral Nunes acredita que as feiras de arte precisam ser repensadas, destacando que Portugal pode desempenhar um papel interessante nesse contexto.

O mercado da arte é um mercado que sofre muito com as oscilações geopolíticas e com o que se passa no mundo e, portanto, não é alheio à questão das guerras. O mercado da arte é quase como uma bolha, porque o mundo em si está em crises profundas; a eleição norte-americana, a guerra no Médio Oriente, a guerra na Ucrânia. Portanto, há uma série de situações que afectam, obviamente, a questão do mercado. O mercado está a viver um tempo de mudanças; há a questão das próprias tecnologias, das novas gerações. A nós, tem corrido bem. Não tenho razão para me queixar. As coisas têm estado a correr bem.

A feira de arte africana AKAA contou com mais de quarenta expositores, 36 galerias, entre elas a galeria Movart, que ofereceram durante quatro dias uma mostra da criação contemporânea ligada, de uma forma ou de outra, a África.

Esta feira tem levantado cada vez mais interesse pela arte africana, especialmente para a arte dos países lusófonos, com ligações importantes, com entidades como a Fundação Calouste Gulbenkian. Há uma crescente valorização da arte africana, que começa a ser reconhecida pelas suas histórias, incluindo experiências de guerra e descolonização, explicou-nos Janire Bilbao responsável pela galeria Movart.

Os franceses adoram a arte africana e também começam a conhecer a arte africana dos países lusófonos, que é um pouco o nosso foco. Temos algumas ligações com a delegação da Fundação Calouste Gulbenkian em Paris. Estamos a construir pontes entre a África lusófona e a arte africana.

Durante muitos anos estivemos focados na arte europeia e agora, de repente reparamos que há histórias a contar, histórias muito legítimas, como nos conta o artista Márcio Carvalho, que nos está a representar com obras sobre a descolonização das memórias e são histórias que preciso de contar. Chegou  o momento de contar histórias que ficaram muitos anos em silêncio. Haverá um momento em que chegaremos a um equilíbrio, mas agora é preciso cobrir 500 anos de ausência.