Memórias afetivas e história se misturam na narrativa criada pelo escritor Nitish Monebhurrun para revisitar um evento dramático para os moradores das Ilhas Maurício: a morte de um cantor popular no país, em circunstâncias até hoje não esclarecidas, segundo o autor. Seu livro “Kaya est mort” (Kaya está morto, em tradução livre do francês revive o episódio no final dos anos 1990 que desencadeou uma onda de violência e expôs as tensões por trás da aparente harmonia entre as diversas comunidades que compõem a sociedade mauriciana.
Nitish Monebhurrun recorre às lembranças da adolescência para narrar o episódio histórico da morte de Kaya, nome artístico adotado por Joseph Réginald Topize, criador do gênero musical "seggae" - uma fusão de tradições africanas, reggae e cultura rastafári.
Nascido em Port-Louis, capital do país, Kaya era adepto do movimento rastafári e a favor da legalização da maconha em um contexto cultural, já que algumas comunidades do pequeno país do Oceano Índico usam a substância em festividades e rituais religiosos.
Preso horas depois de um show no qual exibia um cigarro de cannabis, o cantor foi levado a uma prisão e apareceu morto.
“O discurso oficial do Estado era de que ele se suicidou porque estava precisando de maconha, bateu a cabeça na parede e morreu. É óbvio que ele não se suicidou. Ele não morreu, foi morto”, afirma Nitish.
Depois do anúncio da morte de Kaya, em 21 de fevereiro de 1999, uma onda de revolta e muita violência atingiu a ex-colônia britânica e francesa no Oceano Índico, formada por uma diversidade étnica de europeus, indianos, chineses e africanos.
Segundo o autor, o episódio que por cerca de 10 dias parou o país, quase deu origem a uma guerra civil. “As Ilhas Maurício são conhecidas sobretudo por ser um país tropical do Oceano Índico, com um mar que é quase uma piscina e onde é o reino da paz. Esse episódio mostrou que essa paz existe, mas pode ser apenas superficial, um vulcão adormecido, mas não morto, e que pode ‘acordar’ a qualquer momento”, explicou.
No livro, Nitish relata o drama vivido pelo seu olhar de adolescente. Por um lado, celebrava o fechamento das escolas e o tempo livre para se dedicar ao lazer com amigos, e por outro, percebia gradualmente o impacto profundo na sociedade. Para o autor, a publicação do livro é mais do que um registro autobiográfico.
“Quando ele morreu, não me tocou tanto, mas depois percebi que Kaya não era tão desconhecido. Comecei a sentir um tipo de mea culpa. Outra razão é que ele deixou um patrimônio musical que talvez muitas pessoas não conheçam e que deve ser preservado. E também quis mostrar que desde 1999, algumas coisas não mudaram, e tenho receio de que esqueçam do que aconteceu”, afirma.
Circulação interculturalProfessor de Direito no Centro Universitário de Brasília, Nitish Monebhurrun publicou vários livros na área jurídica, mas tem se dedicado também, nos últimos anos, à literatura de ficção, como na obra “O assassinato do presidente do Brasil”, e de memória. Antes de “Kaya est mort”, ele publicou em 2022 também pela editora Vizavi “Face au tableau noir” (Diante do quadro negro, em tradução livre do francês), no qual expõe de maneira crítica o sistema educacional de seu país natal.
Com uma trajetória que transita entre as Ilhas Maurício, Brasil e França, o escritor vê a sua experiência multicultural como fundamental para sua literatura. "O fato de conviver em sociedades diferentes contribui para uma certa distância enquanto observador", analisa. "Um autor precisa ser como uma esponja que absorve tudo e depois tenta retratar de maneira bonita em um livro. Essa circulação intercultural contribui para isso", conclui.