
'La Roue de la Vie': Antônio Interlandi traz roda viva de memória e afeto para o Festival de Avignon
RFI Convida
Durante o Festival de Avignon de 2025, um dos destaques da mostra paralela dedicada ao Brasil é o espetáculo La Roue de la Vie, do ator, diretor e produtor brasileiro Antônio Interlandi. Inspirado na canção “Roda Viva”, de Chico Buarque, o título em francês carrega mais do que uma tradução poética — é o eixo simbólico de uma dramaturgia que gira entre o exílio, a memória e a música.
Márcia Bechara, enviada especial da RFI a Avignon
“Na peça eu conto basicamente a partida de alguém do Brasil para França, claro, baseado um pouco na minha história”, diz Interlandi, que vive há três décadas na França. A narrativa parte de uma lembrança pessoal: aos 17 anos, prestes a embarcar para a Europa, recebeu de uma amiga uma fita cassete com músicas brasileiras. “Estava escrito assim: ‘para você não esquecer as músicas do teu país’. Quando eu estava montando o espetáculo, isso voltou à minha memória. Eu falei: ‘Gente, o espetáculo é essa fita cassete que se desenrola’.”
A metáfora do desenrolar da fita se transforma em estrutura dramatúrgica. Por meio de canções de Chico Buarque e de fragmentos de memória, Interlandi constrói uma dramaturgia do deslocamento — ou, como dizem os franceses, do déracinement, o desenraizamento. “No avião, eu sentia que a cada avanço, um pouco mais da minha raiz ficava para trás”, lembra.
Apesar do caráter autobiográfico, o artista evita o rótulo. “Não quis fazer uma autobiografia. Passei de coisas que eu vivi, que eu adaptei, e adicionei a isso uma boa parte do repertório do espetáculo, que são músicas do Chico.” A escolha do compositor não é casual: “Usei esse olhar radiográfico que o Chico tem da sociedade para contar ao mesmo tempo coisas do Brasil.”
Entre o pessoal e o políticoO espetáculo transita entre o pessoal e o político. Canções como Sinhá e Apesar de Você servem de ponto de partida para reflexões sobre a escravidão, o racismo e a ditadura militar. “Eu nunca entendi o racismo no Brasil, porque tanta mistura… então quem é o quê e de qual cor, né?”, provoca Interlandi. Mas o espetáculo também mergulha no afeto. “Não dá para fazer um espetáculo sobre música brasileira sem falar de amor e de desamor”, afirma. Canções como Bastidores e O Meu Amor revelam camadas emocionais que, segundo ele, “interessam muito aos franceses, talvez até mais o desamor do que o amor”.
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A música, aqui, não é trilha sonora, mas matéria dramatúrgica. Ao lado do pianista francês Mathieu El Fassi — parceiro de longa data — Interlandi constrói um espetáculo de voz e piano, sem percussão, sem clichês tropicais. “Mathieu é um pianista clássico, antes de tudo. Então tem uma riqueza nesse repertório respeitando tudo aquilo que o Chico ou os outros escreveram.”
Mesmo cantadas em português, as canções atravessam a barreira da língua. “A música toca diretamente no ponto, sem passar pelo cérebro, por compreensão”, observa. A resposta do público francês, segundo o artista brasileiro, tem sido comovente. “Outro dia tinha duas francesas chorando no final. Disseram: ‘A gente também saiu de um lugar, foi para outro. Não era o Brasil, mas a gente se identificou tanto’.”
La Roue de la Vie é, segundo Interlandi, um espetáculo sobre "travessias" — geográficas, afetivas, culturais. Um solo que se desdobra em muitas vozes, embalado por uma trilha que é, ao mesmo tempo, "memória e resistência".
O espetáculo La Roue de la Vie fica em cartaz até o dia 26 de julho, às 15h45 no Théâtre 3S, durante a programação da mostra paralela do Festival de Avignon.
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