Em Paris, Sônia Guajajara diz que Brasil vive valorização da cultura indígena que "não tem retorno"

Em Paris, Sônia Guajajara diz que Brasil vive valorização da cultura indígena que "não tem retorno"

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A ministra dos Povos Indígenas, Sônia Guajajara, está em Paris como convidada de honra da abertura, na terça-feira (12), da exposição “Nhe’e Porã: memória e transformação”, de curadoria da artista indígena Daiara Tukano, na sede da Unesco. Da França, ela segue para o Vaticano, onde se encontra com o papa Francisco e tem reuniões, em Roma, na FAO, o órgão da ONU para Alimentação e Agricultura. Guajajara conversou com a RFI sobre o aumento da participação indígena na vida política e a responsabilidade dos europeus na proteção das florestas brasileiras.   

RFI: Se resumimos sua agenda de vários dias na Europa, um pouco da pauta que você vai ter aqui na Unesco, mas também junto à FAO – onde assina termo de ingresso do Brasil na Coalização dos Sistemas Alimentares Indígenas –, notamos uma valorização dos conhecimentos indígenas por essas instituições internacionais. Isso é algo bem recente, não é?

Sônia Guajajara: Sim, nós estamos vivendo um momento muito importante no Brasil, de oportunidade que o presidente Lula está dando aos povos indígenas com a criação do ministério, inédito e nós estamos fazendo toda essa articulação para a valorização da identidade indígena e a valorização da cultura indígena. É importante a gente se articular com os demais órgãos, tanto das Nações Unidas quanto da Organização dos Estados Americanos e, em especial, com os grupos latino-americanos.

A gente estava acostumado a acompanhar as suas vindas para Paris como militante pelos direitos dos indígenas. Agora, você vem no papel de ministra. São poucas ministras dos povos indígenas no mundo hoje?

Sim, pouquíssimas. Tenho notícia apenas da Venezuela, que já tem um Ministério dos Povos Indígenas há 15 anos. A gente precisa conversar muito com outros países que têm povos indígenas para ter também esses espaços, esses órgãos oficiais da representação indígena. Eu vim aqui à França, em Paris, diversas vezes, como coordenadora-executiva da APIB, Articulação dos Povos Indígenas do Brasil, trazendo já essa pauta: a preocupação com a violência contra os povos indígenas e com a destruição dos territórios indígenas.

Nós estamos saindo de um período muito turbulento. Os quatro anos da gestão do governo Bolsonaro foram muito difíceis para os povos indígenas. Agora, a gente retoma todas as políticas que foram desmontadas, que foram perdidas.

O Ministério dos Povos Indígenas possibilita isso, resgatar o que foi perdido, também fazer novas construções e essa articulação maior para o apoio, valorização e cumprimento de direitos adquiridos, sem dúvida.

Os olhos do mundo nos últimos anos e do próprio Brasil, se voltaram muito para o desmatamento na Amazônia. Com o governo Lula, os números finalmente começaram a cair. Mas enquanto isso, a devastação segue no Cerrado. Vários povos indígenas como vivem no Cerrado e são confrontados a esse avanço do desmatamento. Como a gente pode pensar que essa situação não vai piorar se até o Código Florestal Brasileiro protege apenas 20% das áreas das propriedades nas regiões de Cerrado?

Nós precisamos avançar muito ainda com a legislação ambiental no Brasil, com o cumprimento dessa legislação. Considerando que nós estamos saindo de anos em que houve uma conivência e até um incentivo para o desmatamento, para destruição das florestas. Nós já conseguimos reduzir o desmatamento na Amazônia e estamos trabalhando muito sério e de forma articulada com outros ministérios, do Meio Ambiente, dos Povos Indígenas, da Justiça e tantos outros, para que a gente possa avançar com a fiscalização, monitoramento e proteção do meio ambiente como um todo.

Eu falo em especial dos territórios indígenas. No começo do ano passado, o presidente Lula agiu sobre uma emergência de saúde no território Yanomami e, com essa emergência de saúde, tinha toda uma situação também de invasão, que é o que realmente provocava a desnutrição e as doenças. Até metade do ano, o governo brasileiro conseguiu retirar mais de 80% dos garimpeiros invasores que estavam dentro do território Yanomami. Isso ajudou muito também a fazer cair uma média de 80% do desmatamento no território Yanomami.

Nessa região, a gente vê uma situação de urgência que se instalou. Você mesma mencionou, quando completou um ano da catástrofe dos Yanomami, que não vai ser num tempo tão curto que conseguiremos resolver a questão, porque existe uma invasão generalizada do garimpo, há vários anos. Hoje, quais são as barreiras para que as ações sejam mais efetivas? Falta mais verba ou falta vontade política?

Vontade política posso garantir que não falta. Nós assumimos com a responsabilidade, compartilhada com outros ministérios, de devolver aquele território para o povo Yanomami. Nós estamos falando de um território que é duas vezes o tamanho da Suíça, de 20.000 garimpeiros invasores ali dentro daquela área e 30.000 Yanomami. É uma área de difícil acesso, uma região que não tem pistas de pouso para chegar.

A gente precisa desde restaurar pistas para pousar as aeronaves, até a aquisição de novas aeronaves para chegar em todas as regiões. Houve o aumento das equipes de saúde dentro do território e temos uma previsão de 22 novas construções de unidades básicas de saúde dentro do território. Então, nós trabalhamos um ano inteiro nessa articulação interministerial. Não conseguimos finalizar porque, de fato, o problema é crônico, histórico. Eles estavam totalmente abandonados e ainda com conivência e estímulo para continuar aquela situação.

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E como está a voz indígena dentro deste governo?

Nós estamos participando das discussões dessa articulação presencial interministerial. É um momento de valorização dessa cidadania indígena e é a primeira vez na história que temos também na presidência da Funai uma mulher indígena. Temos a Secretaria Especial de Saúde Indígena, também sob a condução de um indígena do Nordeste do Estado do Ceará, o Vale Tapeba. Também temos os 34 Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEI) que são estaduais, com coordenadores indígenas, assim como a Funai e 39 Coordenações Regionais da Funai, também sob o comando indígena. Não foi fácil conseguir fazer com que os indígenas assumissem esses espaços, até porque, até então, os parlamentares sempre defendiam e indicavam seus representantes. Então, a construção do Ministério possibilitou também essa articulação nos Estados.

É muito importante que exista essa gestão indígena para mostrar essa capacidade e que agora não tem mais retorno. Os indígenas estão participando ativamente nos espaços de diálogo.

Vamos agora, já no começo do mês, instalar o CNPI, que é o Conselho Nacional de Política Indigenista. É um conselho paritário que envolve 37 órgãos do governo federal, com as representações indígenas e das organizações indígenas e ainda com convidados de organizações indigenistas. É exatamente nesses espaços de diálogo que se constrói ou que se reconstrói a política indigenista, onde tem a presença indígena e a presença dos diversos órgãos de governo. Cada um trazendo a transversalidade das pautas para a gente ter um plano integrado.

O Congresso foi taxado como o mais conservador dos últimos anos e sistematicamente tenta impor barreiras aos avanços, inclusive à própria representação indígena na sociedade. Como esse Congresso está sendo uma barreira importante que impede não só o avanço das políticas do Ministério dos Povos Indígenas, mas também do meio ambiente como um todo?

De fato. Se por um lado nós elegemos o presidente Lula, retomamos a democracia, os espaços de participação e fortalecemos os órgãos dos três poderes da União, por outro lado, nós temos aí esse Congresso perverso, não só conservador, mas anti-indígena, antiambiental. Então é realmente uma queda de braço constante entre o poder Executivo e poder Legislativo. E ainda temos o Judiciário que está ali mediando, mas que o Congresso também ataca todos os dias.

São muitos desafios que nós temos que enfrentar para o governo conseguir aprovar suas pautas. Então é um trabalho constante. Tenho ido muito ao Congresso participar de audiências, de atos e de eventos. Mas também tenho sido convocada várias vezes para prestar esclarecimentos, principalmente sobre a demarcação das terras indígenas, que é uma pauta que hoje está muito ali, latente no Congresso Nacional. Eles querem impedir que o presidente Lula cumpra esse compromisso que foi feito ainda na campanha e que ele continua ainda defendendo que é a demarcação das terras indígenas. Então, não é uma pauta fácil, de forma alguma, até porque há um interesse muito grande de setores como o do agronegócio, da mineração, da pecuária, de aumentar também suas terras.

Por isso veio até um pedido de impeachment recentemente.

Então, foram essas convocações para esclarecer sobre grupo de trabalho que nós criamos para identificar e delimitar terras indígenas, sobre a intrusão que está acontecendo, por exemplo, ainda no território Yanomami, na terra Trincheira Pacajá e no anel do rio Guamá, também no Pará. E agora, recentemente, sobre um relatório que foi publicado sobre a terra indígena Kapôt Nhinore e do povo Kayapó no estado do Mato Grosso. E por fim, esse ano, um grupo de senadores entrou com esse pedido de impeachment contra mim alegando que requerimentos de pedido de informação não foram respondidos. Mas nós respondemos todos os requerimentos.

Claro, eles não vão ter a resposta que gostariam porque nós estamos trabalhando com documentos consistentes do que é uma demarcação de terra indígena, do que é um processo demarcatório. Não sou eu que demarco a terra. Nós temos um decreto que norteia esse processo. A gente articula, acompanha, monitora e, claro, vamos continuar trabalhando e fazendo essa incidência para avançar com a demarcação das terras indígenas.

Um pedido como esse não é uma forma de cercear a sua atuação ou a própria existência desse ministério?

Claro que sim. É uma forma de tentar desestabilizar a luta indígena, o Ministério dos Povos Indígenas. É uma tentativa de intimidar a nossa atuação. Mas não vamos de forma alguma nos intimidar com isso. Não vamos recuar. A gente chegou agora, como é que a gente já vai desistir? Não tem como.

No fim de março, o presidente francês, Emmanuel Macron, visita o Brasil. Ele vai ser recebido pelo presidente Lula em Belém, um lugar simbólico na Amazônia. A senhora vai participar?

Sim. Nós recebemos no Ministério dos Povos Indígenas a visita do embaixador da França no Brasil que foi levar esse convite pessoalmente e fazer uma preparação dessa agenda do presidente Macron. Antes mesmo do embaixador, eu já tinha recebido essa mensagem diretamente do cacique Raoni, que esteve aqui em Paris ano passado, e encontrou com o presidente Macron. Ele vai receber as lideranças indígenas em Belém, depois sigo junto na comitiva também para as agendas em Brasília e, provavelmente, em São Paulo.

O que que você espera dessa visita do presidente francês e, mais amplamente, como os europeus podem ajudar o Brasil nesse combate às ilegalidades que ameaçam as nossas florestas?

A gente continua entendendo que é importante que a Europa assuma também essa responsabilidade sobre a proteção e a preservação ambiental, que possa garantir a rastreabilidade de seus produtos e que possam também fazer cumprir o Acordo de Paris, por exemplo, e destinar os recursos anuais para a proteção das florestas.

As florestas no Brasil, para serem protegidas, é preciso proteger os direitos dos povos indígenas e a vida de quem vive na floresta. Então, é muito importante que esses recursos sejam destinados frequentemente para que a gente possa continuar protegendo a vida das pessoas que estão ali. Precisamos de todas as condições para garantir o acesso à água potável, ao saneamento básico, à saúde, à alimentação de qualidade. A Europa tem essa responsabilidade, esse papel de ajudar a proteger, afinal de contas, temos aí uma região que muito colaborou para esse desmatamento global.