Após o sucesso de "Que Horas Ela Volta?", que conquistou o prêmio do público da Berlinale em 2015, a diretora Anna Muylaert desembarca neste primeiro grande encontro do cinema mundial de 2025 com um novo filme, no qual a trama gira novamente em torno da figura de uma verdadeira "Mãe Coragem". Ela refletiu para a RFI sobre a importância dessa figura feminina, comparando-a com a personagem de Regina Casé no filme anterior, destacando como a maternidade ainda é subestimada na sociedade.
Para ela, a mãe é a figura mais importante da sociedade e, ao mesmo tempo, a mais desvalorizada. "Eu acho que a sociedade ainda não entendeu institucionalmente que precisa apoiar a mãe. Por exemplo, se alguém vai casar na igreja, precisa fazer um curso de um mês. Se vai ser enfermeira, faz um curso de dois anos. Se vai ser médica, o curso é de seis anos. Mas a mãe, que é a grande educadora, a menina tem 15, 17, 20 anos, nunca leu um livro, não sabe nem as fases de desenvolvimento da criança. Ela pega a criança no colo e pronto. A sociedade não prepara a mulher para ser mãe, então cada mãe vai puxando sua carroça sozinha", avalia, numa referência à protagonista de seu nome filme, "A melhor mãe do mundo", que atravessa a cidade levando os dois filhos pequenos numa carroça.
"O urbanismo da cidade não favorece a mãe, não favorece o espírito comunitário que a criança precisa para viver. Eu volto sempre à mãe, porque existem milhares de mães e tipos de mães, da boa à amada, que faz a benção, e outras, a maldição. Eu acho que precisamos evoluir para uma sociedade que se estruture a partir dessa figura, que é a educadora maior", diz a cineasta brasileira.
Muylaert mencionou também a difícil realidade de muitas mães brasileiras que, sem o apoio do pai, se tornam as verdadeiras chefes da família, enfrentando desafios sozinhas. Nesse sentido, a cineasta reflete sobre a importância de se pensar na mãe como parte de uma estrutura coletiva, que vai além da responsabilidade individual: "precisamos começar a pensar a maternidade de forma coletiva", afirmou.
Ana fala também sobre a personagem de seu filme, comparando-a com Eunice Paiva, a mãe do filme "Ainda estou aqui", interpretada por Fernanda Torres, de Walter Salles. "A semelhança entre as duas personagens está no fato de enfrentarem sozinhas a violência do mundo, tentando proteger seus filhos e não transparecer as dificuldades que encaram. Eu vejo semelhanças porque a Eunice, da mesma forma, está enfrentando uma barra sozinha. E eu acho que é responsabilidade da mãe não passar a sua dor para o filho, o que é muito difícil. Tem muita mãe que, inclusive, usa o filho como terapeuta ou como melhor amigo. Os problemas da mãe acabam indo parar no filho. Por isso existem essas 'maldições' de geração para geração. Então, a mãe que consegue estancar a violência para a próxima geração, é a melhor mãe do mundo", diz a cineasta. "Sim, eu vejo similaridades".
Sobre o filme, a diretora compartilha sua expectativa para a estreia mundial na Berlinale, destacando que o momento de apresentação ao público é o mais importante, pois é nesse instante que o filme realmente ganha vida e é entendido. "Esse é o momento em que o filme realmente 'nasce' e a gente entende o que ele realmente é. Então, eu preparei esse prato, esse bolo, com todo amor do mundo, e amanhã vou saber que cheiro ele tem", brinca.
Retorno do cinema brasileiroMuylaert se mostra otimista quanto ao retorno do cinema brasileiro, que passou por uma pausa durante o governo anterior, mas agora, está retomando um fluxo de criação. "O cinema está aos poucos retomando depois de uma pausa com os governos de direita. Eu acho que o governo Lula está ajudando a retomar esse fluxo e as equipes técnicas e artísticas, nós já temos qualidade, uma qualidade que vem sendo desenvolvida desde os anos 1990. Nós temos tudo para fazer grandes filmes", acredita a diretora.
Em relação ao Oscar, Anna Muylaert, que é membro da academia, comenta sobre a dificuldade deste ano devido à polêmica em torno de "Emília Perez". A diretora acredita que o filme brasileiro tem grandes chances de ganhar na categoria de Melhor Filme Internacional, e também fala sobre as chances da atriz Fernanda Torres, destacando que, embora Demi Moore seja a favorita, Fernanda é a segunda mais cotada. "Voto, já votei este ano. Foi o ano mais difícil de votar desde que comecei a votar para a academia, por causa de tantos debates em cima do filme Emília Perez. Este ano, o voto se tornou muito político", avalia.
Ao final, Ana reflete sobre a polarização política crescente no mundo e a influência da extrema direita, mencionando a relação com a tecnologia e a dominação das corporações. "Eu acho que o mundo nunca esteve tão polarizado. Desde que nasci, nunca vi uma radicalização tão grande. Acho que isso vem da internet, né? O mundo está se tornando uma grande corporação", analisa.
"Os Estados Unidos estão virando uma oligarquia. Os bilionários da tecnologia estão dominando, e a gente está sendo dominado. Estamos aqui, falando pelo WhatsApp. Acho que estamos numa situação bem complicada, muito orwelliana. A extrema direita, a direita, está com a tecnologia na mão. Eu acho que estamos em uma situação bastante perigosa para a humanidade, porque os números estão valendo mais do que a poesia ou a humanidade. E ainda vem mais por aí. Acho que estamos num momento bem perigoso", conclui a diretora.
O filme "A melhor mãe do mundo", de Anna Muylaert, estreou mundialmente na seção Berlinale Special neste sábado (15), na capital alemã, e deve entrar em cartaz no Brasil apenas em agosto de 2025.