Conceição Evaristo evoca heroísmo das mulheres negras e direito inalienável da literatura na Flup
22 November 2025

Conceição Evaristo evoca heroísmo das mulheres negras e direito inalienável da literatura na Flup

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Durante a 15ª edição da Flup (Festa Literária das Periferias), a escritora Conceição Evaristo, primeira autora viva a ser homenageada pelo festival, é presença cotidiana e inquieta nos debates e mesas internacionais. Presente em quase todas as atividades da programação, Evaristo, que completa 79 anos em 29 de novembro, reafirmou à RFI sua "escrevivência" como legado às novas gerações, transformando memória em poesia e resistência no coração do bairro de Madureira, território histórico da cultura negra carioca.

Márcia Bechara, enviada especial da RFI ao Rio de Janeiro

O viaduto de Madureira, território que há mais de três décadas abriga o histórico Baile Charme — patrimônio cultural e símbolo da resistência negra carioca — tornou-se também palco da palavra escrita. Nesse espaço de memória e celebração, a escritora Conceição Evaristo foi homenageada pela Flup como a primeira autora viva a receber a distinção. Em meio ao público, celebrou sua trajetória e refletiu sobre o significado desse reconhecimento: "Para mim significa o poder da literatura. Como a literatura é capaz de contaminar e precisa contaminar as classes populares", resumiu à RFI.

"Eu acho que a gente não pode pensar a literatura como um objeto ou como um espaço ao qual só as classes privilegiadas têm direito. Eu tenho uma história de pertença do povo, então eu fico muito feliz que esse texto chegue no lugar que me inspire, que chegue de onde saiu", apontou a escritora. 

A obra de Evaristo é marcada pelo conceito de "escrevivência", termo cunhado por ela que permeia a história de resistência e celebração que Madureira representa: "é preciso pensar no samba, na população negra que mora aqui, na potência da dança, porque a dança também é uma maneira de se inscrever no mundo, a maneira do corpo se colocar no mundo, do corpo desenhar o mundo e se desenhar também", afirmou.

"A 'escrevivência' atravessa isso tudo principalmente porque é pensada no coletivo. É o discurso sendo em primeira pessoa, mas é um discurso que traz a história desse coletivo. E Madureira é muito isso, essa coletividade", sintetizou.

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Ao refletir sobre a conexão de sua literatura com a rede internacional reunida pela Flup, Evaristo destacou: "Quando se fala de arte, pensa numa arte universal. Inclusive, há um discurso, alguns críticos literários falam que não tem literatura feminina, que não tem literatura negra, seria universal".

"O que também eu penso é que a minha obra dialoga e afirma que há um universal, mas que ele nasce a partir de uma especificidade, porque o texto que eu produzo nasce a partir de uma perspectiva negra, a partir de uma perspectiva de mulher, da periferia, de uma grande cidade", analisa. "Esse texto é capaz de se deduzir tanto leitores da Europa, como dos Estados Unidos, como leitores africanos, uma prova que a arte é universal, mas isso não impede que ela parta de particularidades, que ela tenha uma especificidade e que é capaz de contaminar as outras pessoas", diz Evaristo.

Matriz africana

A autora também refletiu sobre a heroicidade das mulheres negras na cultura brasileira, evocando referências da Grécia Antiga e relacionando-as à contemporaneidade. "Se você for pensar os povos africanos, com seus descendentes, as mulheres negras criam essa pátria brasileira também. Inclusive é muito falado da influência das culturas negras e da influência da 'mãe preta', inclusive no próprio português falado no Brasil", lembra.

"Então, essa pátria, ela tem uma mater que é muito negra, ela tem uma mater oriunda das culturas africanas e que se prolonga através do tempo. Não há como pensar na nação brasileira se você não pensar nos povos africanos e seus descendentes. Por isso a nossa relação também com a diáspora, sem esquecer o trabalho das mulheres negras desde a escravização até hoje", reflete.

"Aquilombamento"

Presente em todos os dias da programação e em contato direto com jovens escritores e escritoras, Evaristo deixou uma mensagem às novas gerações, especialmente às mulheres negras das periferias. "A mensagem que eu deixaria primeiro é pensar a literatura como direito, como direito cidadão. Tem um texto muito interessante, de Antônio Cândido [intelectual fundamental e referência para se entender a literatura brasileira], que se chama 'O direito à literatura'. É pensar a literatura como direito, é pensar a leitura como direito, é pensar a escrita como direito. E cada vez mais também se conectar um com o outro para a gente perceber o aspecto coletivo das nossas histórias, sem anular a nossa individualidade. Então, que [essas novas gerações] formem grupos, que se aquilombem também em torno da literatura", conclui.