A invasão russa na Ucrânia completa três anos na segunda-feira, 24 de fevereiro. A estratégia de aproximação do norte-americano, Donald Trump, com o russo Vladimir Putin para negociar o fim do conflito inspira desconfiança entre ucranianos e europeus, que temem condições favoráveis a Moscou. Entretanto, na avaliação do embaixador do Brasil em Kiev, Rafael Vidal, a conclusão de um acordo de cessar-fogo é "urgente", devido à tragédia humanitária para as duas partes envolvidas no conflito.
O embaixador Rafael Vidal chegou a Kiev em setembro do ano passado. Desde então, ele presencia diariamente "uma situação muito difícil" enfrentada pela população ucraniana. "A guerra é trágica, sobretudo sob o ponto de vista humano", afirma. Ele descreve ataques russos balísticos e de drones não apenas no leste da Ucrânia, onde ficam as trincheiras e a linha de demarcação dos combates, mas em todo o país, inclusive na capital.
"Diariamente, os ataques alcançam zonas civis muito densamente povoadas", relata o diplomata. Por isso, segundo ele, "todos os analistas no terreno, sejam jornalistas ou diplomatas, são os que mais advogam por uma solução diplomática do conflito".
O embaixador recorda que o governo brasileiro e o presidente Luiz Inácio Lula da Silva têm se dedicado a propor uma solução diplomática com o Grupo de Amigos da Paz, que respeita as condições consideradas necessárias pela Ucrânia e pela Rússia, e tem oferecido a credibilidade internacional do Brasil para construir uma ponte de negociação para o fim da guerra.
RFI – Embaixador, o que o senhor tem observado nesta etapa inicial de diálogo entre Washington e Moscou?
Rafael Vidal – Em primeiro lugar, o que é muito importante que seja dito, e que tem sido a posição do Brasil desde a ampliação da guerra em grande escala a partir de 2022, é que as condições para uma negociação são definidas pela Ucrânia e pela Rússia.
Neste momento, todas as expectativas estão nas negociações diretas entre Estados Unidos, Rússia e Ucrânia. Entendemos que a Ucrânia deseja que seus parceiros europeus também estejam envolvidos em algum momento. Tenho sabido que há intenção de designação possível de um enviado especial da Europa. Portanto, esse processo todo é normal.
Existe muita precipitação neste momento, eu acho, de algumas lideranças europeias que cobram as partes que estarão sentadas à mesa de negociações, quando, no momento, o mais importante é o fato de que as duas grandes superpotências, que têm envolvimento na guerra da Ucrânia, passaram a sentar e negociar. Nós todos entendemos que essa negociação vai envolver a Ucrânia e muito provavelmente a Europa e outros parceiros que as partes considerem necessários que se sentem à mesa, seja como negociadores, seja como facilitadores, seja como implementadores das decisões de um acordo de paz.
RFI – Os europeus, assim como o presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, temem que a balança pese a favor dos interesses de Vladimir Putin, uma vez que Moscou quer distância das forças da Otan de suas fronteiras e do território ucraniano. A Ucrânia não entra desprotegida nessas negociações?
RV – As condições para um acordo de paz estão sendo ventiladas em diferentes frentes, por diferentes autoridades, enfim, através da mídia, mas elas só podem ser definidas pela Ucrânia e pela Rússia. O que pode levar os dois países a finalmente buscar uma solução negociada são três anos de uma tragédia humanitária que se verifica sobretudo na região leste da Ucrânia e também em outras cidades, mas também do lado da Rússia, com baixas enormes calculadas nas Forças Armadas da Rússia.
É uma situação que leva à exaustão dos dois países e muito provavelmente com a convicção de que não existe uma solução militar possível para essa guerra. A única solução possível é a solução negociada e, numa solução negociada, as partes precisam fazer concessões. Todo acordo requer concessões de lado a lado. Essas concessões possíveis serão definidas por Kiev e Moscou, com a mediação, neste momento, dos Estados Unidos. A exaustão com essa guerra faz com que as partes busquem uma solução diplomática, que nós esperamos fortemente que siga.
RFI – O senhor vê a possibilidade de o Brasil se ver envolvido nessas negociações de paz em alguma etapa futura?
RV – O Brasil tem as credenciais necessárias para falar de paz. É um país que está há 170 anos em paz com seus vizinhos, que advoga por princípios muito claros constitucionais, inclusive sobre a solução pacífica de controvérsias, arbitragem e a saída diplomática. O Brasil condenou na ONU quatro resoluções relevantes sobre a invasão do território ucraniano, assinou as resoluções que condenam a invasão, que advogam pela retirada das tropas, que defendem o direito internacional e a proteção da população civil.
As únicas duas resoluções em que nós nos abstivemos dizem respeito à expulsão da Rússia do Conselho de Direitos Humanos, porque nós não consideramos que seja um método aplicável no concerto das nações Os países que enfrentam acusações de violação dos direitos humanos precisam estar nos órgãos adequados, para que possam reverter essa situação. A outra resolução foi sobre as reparações econômicas, que o Brasil também entende que não era o fórum adequado para tratar disso. Reparações econômicas são definidas num acordo de paz.
Eu não deixo de lembrar sempre que o presidente da República, o presidente Lula, e o governo brasileiro saíram da zona de conforto, descruzaram os braços e ofereceram essas credenciais brasileiras como um mediador crível, capaz de dialogar com todas as partes para soluções de paz. O Brasil sempre poderá ser chamado para atuar como facilitador em processos diplomáticos. Nós temos essa capacidade de atuar em todas as frentes.
RFI – Com a sua experiência em negociações, é possível dar uma perspectiva de quanto tempo pode demorar o processo de negociação para que se veja algum resultado concreto?
RV – Na minha opinião, a guerra na Ucrânia não pode demorar mais. O tempo é essencial para definir se um processo de paz vai ser eficaz ou se ele vai dar lugar a novas hostilidades, que podem demorar ainda mais.
O nível das hostilidades é muito alto e se um processo de paz, digamos, que se inicia com um cessar-fogo e cria as condições para um acordo de paz, se ele não for rápido, se ele não for urgente, o processo corre o risco de desmoronar em função das hostilidades que seguem. A população civil é afetada diariamente, com vítimas fatais e feridos graves.
RFI – As instalações energéticas da Ucrânia estão muito degradadas. Como o senhor avalia essa questão?
RV – A situação nuclear é muito delicada porque as subestações que alimentam os sistemas de refrigeração das usinas nucleares estão muito danificadas. Muitas delas foram atacadas. Com isso, há uma ameaça clara a toda a engenharia de resfriamento das usinas nucleares, além da ameaça de ataques balísticos contra essas usinas. A Ucrânia tem um grande número de usinas nucleares. Aliás, hoje, toda a energia elétrica gerada na Ucrânia provém essencialmente das usinas nucleares, porque as usinas termelétricas foram muito danificadas.
Portanto, o processo de paz, que envolve necessariamente algumas etapas, a desescalada inicial das hostilidades, um cessar-fogo declarado e um acordo de paz negociado, na minha opinião, é urgente na Ucrânia. Me preocupa muito quando vejo prazos sendo diagnosticados de meses e até de um ano. Na minha opinião, é muito tempo depois de três anos, porque esse prazo, se não for curto, ele gera um risco maior de hostilidades diárias, com a população civil sendo afetada, e um risco maior de quebra da confiança entre as partes que possa destruir qualquer iniciativa de paz.