Brasil concorre a melhor documentário na Berlinale revisitando obra de Lima Barreto com jovens da periferia
19 February 2025

Brasil concorre a melhor documentário na Berlinale revisitando obra de Lima Barreto com jovens da periferia

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O filme "Hora do Recreio", de Lucia Murat, que concorre ao prêmio de Melhor Documentário e ao Prêmio da Anistia Internacional na Berlinale, também foi selecionado para a mostra Generation 14plus, voltada ao público adolescente e jovem. A produção combina a linguagem documental com elementos de ficção, explorando temas contemporâneos e sociais que dialogam diretamente com as juventudes das periferias brasileiras, problematizando a educação pública no Brasil.

rcia Bechara, enviada especial da RFI a Berlim

A obra toma como base o romance póstumo de Lima Barreto, Clara dos Anjos, escrito em 1922. A diretora, conhecida por mesclar linguagens cinematográficas em seus trabalhos, explica o processo de adaptar esse texto para os dias atuais.

 

“Desde o início, pensei em trabalhar com Clara dos Anjos. Apesar de não ser o melhor livro do Lima Barreto, é uma obra ideal para abordar temas como racismo, violência e abuso, que infelizmente seguem atuais. Queria que os jovens pudessem estar no centro, não apenas como vítimas, mas como protagonistas. Afinal, o palco é onde os artistas são aplaudidos, e eles mereciam isso”, explicou Lucia Murat.

Porém, trazer a linguagem de Lima Barreto para a contemporaneidade não foi tarefa fácil. “Na primeira leitura do livro com os jovens, percebi que a linguagem antiga, do início do século 20, era uma barreira. Eles ficaram tensos, parecia impossível manter o texto como estava. Mas, no segundo ensaio, algo incrível aconteceu: eles começaram a brincar com o texto, a desconstruí-lo e a usar o humor para trazer aquilo à vida. Foi assim que o livro ganhou um novo vigor, com essa atualização espontânea e cheia de criatividade dos jovens atores”, contextualiza a cineasta, que assina também o roteiro e a produção do longa-metragem.

Os jovens atores vêm de comunidades como o Vidigal, o Cantagalo e a Cidade de Deus, no Rio de Janeiro, onde a diretora trabalhou em parceria com grupos teatrais locais. “Colaborei com o Nós do Morro, do Vidigal, com quem já trabalho há anos; com o grupo Vozes, do Cantagalo; e com o Instituto Arteiros, da Cidade de Deus. Foi um processo intenso e coletivo, em que entrevistávamos jovens, assistíamos às aulas de teatro e selecionávamos os atores. A preparadora de elenco, Luciana Bezerra, foi essencial nesse trabalho”, sublinha Murat.

Realidade X Ficção

Além de enfrentar dificuldades estruturais, como a falta de autorização para filmar em uma das escolas, a equipe incorporou essas limitações na narrativa. “Quando não conseguimos filmar na escola original, alugamos outra, levamos os professores e os jovens para lá, e transformamos isso numa parte do documentário. Fizemos questão de deixar claro para o público que essa não era a escola deles. Isso nos permitiu questionar no próprio filme: ‘Isso aqui é um documentário ou uma ficção?’ E a resposta deles foi linda: ‘É um documentário, porque reflete a nossa realidade’”, conta a diretora.

A cineasta, que desde o seu primeiro filme, Que Bom Te Ver Viva (1989), transita entre documentário e ficção, destaca que romper as barreiras entre os dois gêneros sempre foi uma busca criativa.

“Hoje, o limite entre ficção e documentário já é algo amplamente explorado no cinema, mas naquela época era uma novidade. No caso desse projeto, foi interessante porque as dificuldades nos levaram a experimentar ainda mais, integrando os desafios ao filme.”

Sobre os jovens protagonistas, Lucia Murat é enfática: “Essa não é uma média de toda a juventude brasileira, mas um recorte muito especial. São jovens articulados, conscientes do racismo e da violência que enfrentam, e que respondem a isso de forma extremamente criativa e resiliente. É inspirador vê-los em cena”, diz.

Agora, o documentário se prepara para sua estreia no Brasil. “Temos uma grande distribuidora, a Imovision, e estamos montando a estratégia de lançamento. Acabei de finalizar o filme, e a recepção em Berlim tem sido maravilhosa. Em breve, definiremos se ele chega primeiro aos cinemas ou às plataformas de streaming”, concluiu a diretora.