Advogada que buscou asilo na França para fugir de relação abusiva conta experiência em livro

Advogada que buscou asilo na França para fugir de relação abusiva conta experiência em livro

RFI Brasil
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“Ela dançou para ter momentos de paz. Dançou sobre as ondas do caos. Ludibriou a tristeza e a solidão. Não se deixou levar pelas quedas. Chorou, sorriu, buscou o autoconhecimento e ajuda”, diz o prefácio do primeiro livro da advogada brasileira radicada na França, Kelli Menin. A autora elegeu sete de todas as situações caóticas por que passou e conta como as enfrentou. 

Maria Paula Carvalho, da RFI

“Na Onda do Caos”, publicado pela editora Gato Bravo, é quase um manual de sobrevivência para tempos de incerteza. Sobretudo, pode servir de exemplo para outras mulheres em situação de abuso. 

Da violência doméstica no Brasil ao asilo político em Paris, passando por um câncer na infância, assédio moral, dependência, xenofobia. Um pacote de adversidades, que ela resolveu contar agora. Na obra, Kelli incentiva “todos a aceitarem e respeitarem o caos que chega, com a certeza de que ele irá passar, e que ele nos transformará, deixando cada ser humano mais forte e equilibrado para receber o próximo ciclo”.  

“Eu sempre tive muita vergonha da minha história e chegou um ponto que vivi tanta coisa e superei tanta coisa. Depois do meu asilo político, depois de ter sido presa no aeroporto da Croácia, eu tive, em primeiro lugar, tempo para escrever um livro e, em segundo lugar, eu senti o chamado para a missão de ajudar as mulheres”, diz a autora em entrevista à RFI. “Eu tenho a certeza de que a minha história pode tocar o coração de muitas mulheres que estão em sofrimento e para que encontrem um lugar de paz”, acrescenta.  

Machismo estrutural 

Com exemplos de sua própria trajetória, a autora destaca que a imprevisibilidade e os desafios fazem parte da vida, e que ela tem seus altos e baixos. Karin sofreu uma ameaça de morte no Brasil que, conforme cita, “é um país extremamente machista, onde os homens têm a certeza de ter o poder de definir a vida de uma mulher ou ainda pior, a certeza de que podem destruir a vida de uma mulher e sair impunes. “Essa é uma realidade não só no Brasil, infelizmente. Depois que eu saí do país, eu vi que essa realidade é praticamente mundial. Ainda existe o machismo estrutural, isso ainda está muito arraigado”, observa.  

A autora analisa que “a maioria das mulheres acaba preferindo ser prisioneira do homem do que fazer todo esse movimento de se libertar e de sair. Porque o homem fica na casa dele, no trabalho dele. Nada acontece com a vida dele, nada muda, enquanto a mulher tem que abandonar tudo, como eu que abandonei meu escritório, o meu apartamento, a minha cachorrinha e a minha família. Eu fiz duas malas e sumi do mundo para garantir a minha vida e tudo isso valeu a pena”, avalia. 

Ameaça de morte 

Kelli escapou da morte por pouco. Depois de um relacionamento malsucedido, ela se viu com uma medida protetiva e a cópia de um processo criminal nas mãos: “o meu agressor foi preso em flagrante, e eu continuava viva. Então, é muito difícil admitir, mas sim, é verdade. Eu, uma mulher feminista que sempre fiz trabalhos voluntários para ajudar vítimas de violência, estava há um ano e meio em um relacionamento abusivo,” escreve.  

“Ele entrou calmamente no carro, abriu a porta para que eu pudesse enxergar, pegou uma arma e fez o movimento de quem confere a munição. De repente, ele estava apontando aquela arma para mim. Era como se ele dissesse ‘não acreditou que eu seria capaz? Eu estou aqui com a arma na mão e a qualquer momento posso te matar’”, relata a autora em uma das passagens do livro.  

Até que chegou a hora em que ela se deu conta de que estava “muito cansada, que não conseguia mais suportar o controle e a perseguição”.  

“Eu vi os sinais desde o início do relacionamento, eu já sentia que aquilo era estranho, mas como eu falo no livro, a pessoa com quem eu estava, o meu companheiro, era tóxico”, explica. “O relacionamento era tóxico, mas algo em mim conectava tudo isso. E aí, eu percebi a minha dependência emocional, que conectou e deu a liga nesse relacionamento. Mas eu não conseguia sair sozinha. Acabou apenas porque ocorreu essa ameaça horrível e eu tive que sumir do mundo”, relata. 

Kelli foi ameaçada de morte diante de policiais. Num trecho curioso da história, a autora mostra que as estatísticas comprovam que a força do homem está concentrada na arma de fogo e quando ela é retirada, 80% deles ficam tão sensíveis que desmaiam.  

“Depois que passou, isso é engraçado. Na hora eu fiquei em estado de choque. Posteriormente, para escrever o livro, eu comentei com algumas colegas, inclusive amigas policiais, e descobri que vários homens agressores reagem dessa maneira. É incrível como quando o policial o aborda e o homem não tem mais arma, aquele homem que te ameaçou inúmeras vezes, que disse que seria capaz de matar muitas pessoas, de repente começa a chorar como uma criança e finge que vai desmaiar e pede médico, né?”, relata com surpresa.  

  

 

A volta por cima 

Kelli Menin percebeu então que precisava de terapia e buscou a ajuda de uma psicóloga. “Ela me ajudou a me fortalecer, a reconhecer e aceitar a minha dependência emocional, para tentar me desvincular desse relacionamento. E isso funcionou, pois foi a partir do momento em que eu foquei na minha vida, que ocorreu essa situação. Ele não aceitou, se desesperou e aconteceu a ameaça, porque eu estava fortalecida e focando em mim”, conta a advogada.  

 

A advogada esclarece, no entanto, que “não faz o perfil de vítima”.  

“Eu nunca tive o perfil de vítima, mas existiu um período da minha vida, sim, em que eu me vitimizei. Eu não entendia por que eu estava passando por aquilo. E por isso, também, eu escrevi no livro que esse foi o maior tempo perdido da minha vida, pois não serviu para nada”, avalia. “Eu tive que mudar de país para que um processo criminal continuasse no Brasil e para que houvesse uma sentença. Isso foi uma grande vitória, né? Mas eu foquei na minha vida, foquei nas soluções, na vida nova, no meu livro, na mensagem que eu tenho para passar para as mulheres”, completa.  

“Eu posso dizer claramente, depois de todos os ciclos que passei, que quando um problema enorme chega, existe o estado de choque, o estado de tristeza e depois vem a aceitação. E quando você passa por isso várias vezes, você tem a certeza de que quando esse caos termina, é como aquele antigo ditado: ‘depois da tempestade vem a bonança’. Hoje eu consigo ter a maturidade, eu consigo pensar na bonança e ter a certeza de que a tempestade vai passar”, diz. 

Keli ainda denuncia, através de sua experiência, as dificuldades enfrentadas por mulheres que têm medida protetiva. “O meu asilo político foi concedido porque eu comprovei que todo o sistema da Lei Maria da Penha não é suficiente para garantir a segurança da mulher”, avalia. “Depois da denúncia, depois da medida protetiva à mulher, o número de feminicídios aumenta muito. Por isso eu não podia mais voltar para o meu apartamento, para a minha vida”, conta.  

"Na Onda do Caos" terá lançamento oficial na Feira do Livro de Lisboa, entre 29 de maio e 16 de junho.