RFI Convida
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Entrevistas diárias com pessoas de todas as áreas. Artistas, cientistas, professores, economistas, analistas ou personalidades políticas que vivem na França ou estão de passagem por aqui, são convidadas para falar sobre seus projetos e realizações. A conversa é filmada e o vídeo pode ser visto no nosso site.
“Cessar-fogo é urgente na Ucrânia”, diz embaixador brasileiro em Kiev
22 February 2025
“Cessar-fogo é urgente na Ucrânia”, diz embaixador brasileiro em Kiev

A invasão russa na Ucrânia completa três anos na segunda-feira, 24 de fevereiro. A estratégia de aproximação do norte-americano, Donald Trump, com o russo Vladimir Putin para negociar o fim do conflito inspira desconfiança entre ucranianos e europeus, que temem condições favoráveis a Moscou. Entretanto, na avaliação do embaixador do Brasil em Kiev, Rafael Vidal, a conclusão de um acordo de cessar-fogo é "urgente", devido à tragédia humanitária para as duas partes envolvidas no conflito.

O embaixador Rafael Vidal chegou a Kiev em setembro do ano passado. Desde então, ele presencia diariamente "uma situação muito difícil" enfrentada pela população ucraniana. "A guerra é trágica, sobretudo sob o ponto de vista humano", afirma. Ele descreve ataques russos balísticos e de drones não apenas no leste da Ucrânia, onde ficam as trincheiras e a linha de demarcação dos combates, mas em todo o país, inclusive na capital.

"Diariamente, os ataques alcançam zonas civis muito densamente povoadas", relata o diplomata. Por isso, segundo ele, "todos os analistas no terreno, sejam jornalistas ou diplomatas, são os que mais advogam por uma solução diplomática do conflito".

O embaixador recorda que o governo brasileiro e o presidente Luiz Inácio Lula da Silva têm se dedicado a propor uma solução diplomática com o Grupo de Amigos da Paz, que respeita as condições consideradas necessárias pela Ucrânia e pela Rússia, e tem oferecido a credibilidade internacional do Brasil para construir uma ponte de negociação para o fim da guerra.

RFI – Embaixador, o que o senhor tem observado nesta etapa inicial de diálogo entre Washington e Moscou?

Rafael Vidal Em primeiro lugar, o que é muito importante que seja dito, e que tem sido a posição do Brasil desde a ampliação da guerra em grande escala a partir de 2022, é que as condições para uma negociação são definidas pela Ucrânia e pela Rússia. 

Neste momento, todas as expectativas estão nas negociações diretas entre Estados Unidos, Rússia e Ucrânia. Entendemos que a Ucrânia deseja que seus parceiros europeus também estejam envolvidos em algum momento. Tenho sabido que há intenção de designação possível de um enviado especial da Europa. Portanto, esse processo todo é normal.

Existe muita precipitação neste momento, eu acho, de algumas lideranças europeias que cobram as partes que estarão sentadas à mesa de negociações, quando, no momento, o mais importante é o fato de que as duas grandes superpotências, que têm envolvimento na guerra da Ucrânia, passaram a sentar e negociar. Nós todos entendemos que essa negociação vai envolver a Ucrânia e muito provavelmente a Europa e outros parceiros que as partes considerem necessários que se sentem à mesa, seja como negociadores, seja como facilitadores, seja como implementadores das decisões de um acordo de paz. 

RFI – Os europeus, assim como o presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, temem que a balança pese a favor dos interesses de Vladimir Putin, uma vez que Moscou quer distância das forças da Otan de suas fronteiras e do território ucraniano. A Ucrânia não entra desprotegida nessas negociações?  

RV – As condições para um acordo de paz estão sendo ventiladas em diferentes frentes, por diferentes autoridades, enfim, através da mídia, mas elas só podem ser definidas pela Ucrânia e pela Rússia. O que pode levar os dois países a finalmente buscar uma solução negociada são três anos de uma tragédia humanitária que se verifica sobretudo na região leste da Ucrânia e também em outras cidades, mas também do lado da Rússia, com baixas enormes calculadas nas Forças Armadas da Rússia. 

É uma situação que leva à exaustão dos dois países e muito provavelmente com a convicção de que não existe uma solução militar possível para essa guerra. A única solução possível é a solução negociada e, numa solução negociada, as partes precisam fazer concessões. Todo acordo requer concessões de lado a lado. Essas concessões possíveis serão definidas por Kiev e Moscou, com a mediação, neste momento, dos Estados Unidos. A exaustão com essa guerra faz com que as partes busquem uma solução diplomática, que nós esperamos fortemente que siga.

RFI – O senhor vê a possibilidade de o Brasil se ver envolvido nessas negociações de paz em alguma etapa futura?

RV – O Brasil tem as credenciais necessárias para falar de paz. É um país que está há 170 anos em paz com seus vizinhos, que advoga por princípios muito claros constitucionais, inclusive sobre a solução pacífica de controvérsias, arbitragem e a saída diplomática. O Brasil condenou na ONU quatro resoluções relevantes sobre a invasão do território ucraniano, assinou as resoluções que condenam a invasão, que advogam pela retirada das tropas, que defendem o direito internacional e a proteção da população civil.

As únicas duas resoluções em que nós nos abstivemos dizem respeito à expulsão da Rússia do Conselho de Direitos Humanos, porque nós não consideramos que seja um método aplicável no concerto das nações Os países que enfrentam acusações de violação dos direitos humanos precisam estar nos órgãos adequados, para que possam reverter essa situação. A outra resolução foi sobre as reparações econômicas, que o Brasil também entende que não era o fórum adequado para tratar disso. Reparações econômicas são definidas num acordo de paz.

Eu não deixo de lembrar sempre que o presidente da República, o presidente Lula, e o governo brasileiro saíram da zona de conforto, descruzaram os braços e ofereceram essas credenciais brasileiras como um mediador crível, capaz de dialogar com todas as partes para soluções de paz. O Brasil sempre poderá ser chamado para atuar como facilitador em processos diplomáticos. Nós temos essa capacidade de atuar em todas as frentes.

RFI – Com a sua experiência em negociações, é possível dar uma perspectiva de quanto tempo pode demorar o processo de negociação para que se veja algum resultado concreto?

RV – Na minha opinião, a guerra na Ucrânia não pode demorar mais. O tempo é essencial para definir se um processo de paz vai ser eficaz ou se ele vai dar lugar a novas hostilidades, que podem demorar ainda mais.

O nível das hostilidades é muito alto e se um processo de paz, digamos, que se inicia com um cessar-fogo e cria as condições para um acordo de paz, se ele não for rápido, se ele não for urgente, o processo corre o risco de desmoronar em função das hostilidades que seguem. A população civil é afetada diariamente, com vítimas fatais e feridos graves.

RFI – As instalações energéticas da Ucrânia estão muito degradadas. Como o senhor avalia essa questão?  

RV – A situação nuclear é muito delicada porque as subestações que alimentam os sistemas de refrigeração das usinas nucleares estão muito danificadas. Muitas delas foram atacadas. Com isso, há uma ameaça clara a toda a engenharia de resfriamento das usinas nucleares, além da ameaça de ataques balísticos contra essas usinas. A Ucrânia tem um grande número de usinas nucleares. Aliás, hoje, toda a energia elétrica gerada na Ucrânia provém essencialmente das usinas nucleares, porque as usinas termelétricas foram muito danificadas. 

Portanto, o processo de paz, que envolve necessariamente algumas etapas, a desescalada inicial das hostilidades, um cessar-fogo declarado e um acordo de paz negociado, na minha opinião, é urgente na Ucrânia. Me preocupa muito quando vejo prazos sendo diagnosticados de meses e até de um ano. Na minha opinião, é muito tempo depois de três anos, porque esse prazo, se não for curto, ele gera um risco maior de hostilidades diárias, com a população civil sendo afetada, e um risco maior de quebra da confiança entre as partes que possa destruir qualquer iniciativa de paz.

Cineasta de Brasília investiga o luto infantil sob o prisma da invenção e da amizade na Berlinale
20 February 2025
Cineasta de Brasília investiga o luto infantil sob o prisma da invenção e da amizade na Berlinale

A diretora brasiliense Rafaela Camelo estreou mundialmente no último dia 14 de fevereiro seu primeiro longa-metragem, A Natureza das Coisas Invisíveis, na 75ª edição da Berlinale, em Berlim. O filme abriu a mostra internacional Generation Kplus. A cineasta, que já havia sido selecionada para o festival na capital alemã, em 2023, com o curta Miçangas, compartilhou sua experiência e falou sobre a estreia na direção de um longa abordando o olhar das crianças sobre a morte.

rcia Becharaenviada especial da RFI a Berlim

O filme A Natureza das Coisas Invisíveis abriu a mostra Generation Kplus, dedicada a histórias que exploram o universo infanto-juvenil. "Foi a primeira vez que exibimos o filme para grande parte da equipe, então havia uma ansiedade nossa para ver como seria a recepção do público", contou a diretora Rafaela Camelo.

A sessão, que aconteceu na mostra Generation Kplus, onde a obra concorre com filmes internacionais selecionados pelo festival berlinense, foi marcada por um público predominantemente infantil, com cerca de mil crianças. Mesmo com as barreiras culturais e de idioma, a cineasta se disse impressionada com a capacidade das crianças alemãs de reagirem e se envolverem no filme. "Foi interessante ver como elas se emocionaram e fizeram perguntas. Elas conseguiram se conectar com a história", relatou.

O olhar das crianças sobre a perda

A diretora, natural de Brasília, também falou sobre a inspiração por trás de A Natureza das Coisas Invisíveis. "O filme conta a história de duas garotas de 10 anos que enfrentam a perda e o luto. Elas se conhecem em um hospital e acabam formando uma forte conexão. O filme tem um tom agridoce, falando sobre amizade, luto e perda. Ele também explora como a infância usa a imaginação e a fantasia para dar sentido às experiências da vida", explicou a diretora.

A curiosidade infantil sobre o desconhecido molda a trajetória das protagonistas e reflete na estrutura narrativa do filme, que se divide em duas partes: uma ambientada no hospital e outra em um refúgio no interior de Goiás. “É uma metáfora estrutural, como se, naquele ponto, o filme da forma que foi apresentado tivesse que morrer para outro se formar”, contextualiza Camelo.

O tema do envelhecimento, da morte e dos cuidados paliativos, abordado pela perspectiva de duas crianças, também faz parte das temáticas do primeiro longa da diretora. "Existem muitos filmes sobre o amadurecimento ou sobre o luto e a morte, muitos ambientados em hospitais. Eu queria trazer algo novo, colocando uma criança nesse meio e explorando sua perspectiva", comentou Camelo.

Para a cineasta, a fantasia e a imaginação seriam "ferramentas essenciais" para dar significado a esse tipo de experiências. "Eu queria mostrar que a perspectiva das crianças, ao olhar para a morte, também é válida. Não é um sonho ou delírio, mas uma forma legítima de dar sentido ao que está acontecendo", afirmou.

Retomada do cinema brasileiro

Sobre o processo de filmagem, a diretora explicou que o longa é uma coprodução entre Brasil e Chile, e vinha sendo desenvolvido desde 2018. A captação de recursos e as filmagens ocorreram na capital federal. "O encontro com a equipe chilena foi fundamental para o financiamento do filme e para estabelecer essa sua marca internacional", revelou.

Perguntada sobre a retomada do cinema brasileiro, Rafaela falou sobre a situação atual do setor. "No Brasil, vivemos um ano de cada vez. Em 2025, a Berlinale teve 12 filmes brasileiros na programação oficial, o que é um sinal positivo. As histórias brasileiras têm o poder de alcançar o público internacional", destacou. No entanto, ela também ressaltou que a situação do cinema brasileiro ainda é imprevisível. "Não podemos dar tudo como certo, embora este ano tenha sido mais participativo. Espero que essa presença na Berlinale seja uma tendência, um costume, e não uma exceção", afirmou.

Brasil concorre a melhor documentário na Berlinale revisitando obra de Lima Barreto com jovens da periferia
19 February 2025
Brasil concorre a melhor documentário na Berlinale revisitando obra de Lima Barreto com jovens da periferia

O filme "Hora do Recreio", de Lucia Murat, que concorre ao prêmio de Melhor Documentário e ao Prêmio da Anistia Internacional na Berlinale, também foi selecionado para a mostra Generation 14plus, voltada ao público adolescente e jovem. A produção combina a linguagem documental com elementos de ficção, explorando temas contemporâneos e sociais que dialogam diretamente com as juventudes das periferias brasileiras, problematizando a educação pública no Brasil.

rcia Bechara, enviada especial da RFI a Berlim

A obra toma como base o romance póstumo de Lima Barreto, Clara dos Anjos, escrito em 1922. A diretora, conhecida por mesclar linguagens cinematográficas em seus trabalhos, explica o processo de adaptar esse texto para os dias atuais.

 

“Desde o início, pensei em trabalhar com Clara dos Anjos. Apesar de não ser o melhor livro do Lima Barreto, é uma obra ideal para abordar temas como racismo, violência e abuso, que infelizmente seguem atuais. Queria que os jovens pudessem estar no centro, não apenas como vítimas, mas como protagonistas. Afinal, o palco é onde os artistas são aplaudidos, e eles mereciam isso”, explicou Lucia Murat.

Porém, trazer a linguagem de Lima Barreto para a contemporaneidade não foi tarefa fácil. “Na primeira leitura do livro com os jovens, percebi que a linguagem antiga, do início do século 20, era uma barreira. Eles ficaram tensos, parecia impossível manter o texto como estava. Mas, no segundo ensaio, algo incrível aconteceu: eles começaram a brincar com o texto, a desconstruí-lo e a usar o humor para trazer aquilo à vida. Foi assim que o livro ganhou um novo vigor, com essa atualização espontânea e cheia de criatividade dos jovens atores”, contextualiza a cineasta, que assina também o roteiro e a produção do longa-metragem.

Os jovens atores vêm de comunidades como o Vidigal, o Cantagalo e a Cidade de Deus, no Rio de Janeiro, onde a diretora trabalhou em parceria com grupos teatrais locais. “Colaborei com o Nós do Morro, do Vidigal, com quem já trabalho há anos; com o grupo Vozes, do Cantagalo; e com o Instituto Arteiros, da Cidade de Deus. Foi um processo intenso e coletivo, em que entrevistávamos jovens, assistíamos às aulas de teatro e selecionávamos os atores. A preparadora de elenco, Luciana Bezerra, foi essencial nesse trabalho”, sublinha Murat.

Realidade X Ficção

Além de enfrentar dificuldades estruturais, como a falta de autorização para filmar em uma das escolas, a equipe incorporou essas limitações na narrativa. “Quando não conseguimos filmar na escola original, alugamos outra, levamos os professores e os jovens para lá, e transformamos isso numa parte do documentário. Fizemos questão de deixar claro para o público que essa não era a escola deles. Isso nos permitiu questionar no próprio filme: ‘Isso aqui é um documentário ou uma ficção?’ E a resposta deles foi linda: ‘É um documentário, porque reflete a nossa realidade’”, conta a diretora.

A cineasta, que desde o seu primeiro filme, Que Bom Te Ver Viva (1989), transita entre documentário e ficção, destaca que romper as barreiras entre os dois gêneros sempre foi uma busca criativa.

“Hoje, o limite entre ficção e documentário já é algo amplamente explorado no cinema, mas naquela época era uma novidade. No caso desse projeto, foi interessante porque as dificuldades nos levaram a experimentar ainda mais, integrando os desafios ao filme.”

Sobre os jovens protagonistas, Lucia Murat é enfática: “Essa não é uma média de toda a juventude brasileira, mas um recorte muito especial. São jovens articulados, conscientes do racismo e da violência que enfrentam, e que respondem a isso de forma extremamente criativa e resiliente. É inspirador vê-los em cena”, diz.

Agora, o documentário se prepara para sua estreia no Brasil. “Temos uma grande distribuidora, a Imovision, e estamos montando a estratégia de lançamento. Acabei de finalizar o filme, e a recepção em Berlim tem sido maravilhosa. Em breve, definiremos se ele chega primeiro aos cinemas ou às plataformas de streaming”, concluiu a diretora.

Escola de samba da Brasuca Show coloca Yemanjá na rua no Carnaval de Nice na França
18 February 2025
Escola de samba da Brasuca Show coloca Yemanjá na rua no Carnaval de Nice na França

A associação franco-brasileira Brasuca Show foi fundada em Nice há mais de 20 anos. Presidida pela brasileira Solange Barreto, a "miniescola de samba" anima os carnavais de Nice e de Menton, no sul da França, que acontecem neste momento. Neste ano, a folia ganha uma relevância especial para a associação criada com a ajuda de Simone Barreto, brasileira assassinada no ataque terrorista à Basílica de Nice e cujo processo é realizado também neste momento em Paris.

Os tradicionais carnavais nas cidades da Côte d’Azur começaram no último sábado (15) e acontecem até 2 de março. O primeiro desfile da Brasuca Show foi no último domingo (16) com o tema “o rei do espaço”, em Menton, cidade onde o Carnaval é conhecido como a “Festa do Limão”.

Mas a ligação histórica da Brasuca Show na região é com Nice, onde a associação foi fundada e está sediada. O grupo participa do mais importante Carnaval da França e um dos maiores da Europa há 15 anos. “A gente sai da Bahia, mas a Bahia não sai da gente. Então, nós estamos aqui sempre defendendo a nossa cultura, com capoeira, com dança, com o Carnaval,”, conta Solange Barreto.

A associação também realiza há 12 anos uma festa de Yemanjá em Nice, que inclusive já entrou para o calendário oficial cultural da cidade francesa, mas não recebe nenhum apoio do governo brasileiro, critica Solange. “Precisava também de um apoio do governo brasileiro porque não deixa de ser um intercâmbio cultural”, acredita.

Contraponto ao “rei dos oceanos”

O tema dos desfiles este ano no Carnaval de Nice é “o rei dos oceanos”. Essa edição 2025 é uma espécie de abre alas da celebração do "ano do mar" na cidade que irá sediar em junho a terceira Cúpula Mundial dos Oceanos da ONU.

Brasuca Show é apenas um dos vários grupos a desfilar até o próximo dia 2 de março em Nice. Ele entra na folia na quarta-feira (19) com o enredo "Yemanjá, protetora dos mares", fazendo um contraponto ao tema principal.

“Como é ‘o rei dos oceanos’, nós não poderíamos deixar de colocar nossa rainha (do mar) que é o que a gente defende aqui, mas voltada também para o Carnaval, com muitas plumas e paetês como o brasileiro sabe fazer”, antecipa.

Solange Barreto define o trabalho como uma “miniescola de samba”, formada por cerca de 30 integrantes, majoritariamente brasileiros. “Nós somos uma associação que defende a cultura brasileira. Então, a prioridade é realmente para os brasileiros que estão aqui: músicos, dançarinos. Nós vamos ter uma ala de percussionistas, com 10 músicos, que vai fazer o nosso samba-enredo, nosso axé, samba-reggae”.  

Além da porta-bandeira e passistas, o cortejo terá como comissão de frente “um barco com quatro meninas vestidas de roupas estilizadas de Yemanjá, mais uma Yemanjá tradicional. Vocês vão ver, está muito bonito”, garante Solange que também é responsável pelos figurinos e adereços do bloco.

Despois da estreia no dia 19, Brasuca Show desfila também nas ruas de Nice em 22 e 26 de fevereiro e 1° de março.

Irmã morta no atentado contra Basílica de Nice

Apesar de toda essa preparação, envolvimento e dedicação, Solange não vai participar do primeiro desfile da associação Brasuca Show no Carnaval de Nice. Ela vai estar em Paris, participando da primeira jornada de depoimentos dos familiares das vítimas do atentado terrorista contra a Basílica Notre-Dame de Nice, que deixou 3 mortos em 2020, entre eles a irmã dela, Simone Barreto.

O julgamento do suposto terrorista, o tunisiano Brahim Aouissaoui, de 25 anos, começou em 10 de fevereiro e vai até o dia 26 de fevereiro, coincidindo com o Carnaval de Nice. “Foram quatro anos de espera. Caiu no mês de fevereiro, que é o Carnaval daqui. Mas a gente é uma família grande, nós estamos dividindo os trabalhos, as tarefas, de quem vai segurar o carnaval quando eu não estiver”, diz

Solange Barreto, que volta a reclamar da falta de apoio do governo brasileiro nesse processo, espera justiça. “A nossa determinação de ir até Paris é para poder cobrar justiça, porque uma pessoa dessas não pode estar solta, não pode estar livre. (...) Eu estou correndo atrás da justiça de Deus, atrás da justiça dos homens pela vida da minha irmã. O meu trabalho artístico e cultural é que me dá força para continuar”, pontua.

Dez anos após 'Que horas ela volta?', Anna Muylaert apresenta drama urbano sobre maternidade na Berlinale
17 February 2025
Dez anos após 'Que horas ela volta?', Anna Muylaert apresenta drama urbano sobre maternidade na Berlinale

Após o sucesso de "Que Horas Ela Volta?", que conquistou o prêmio do público da Berlinale em 2015, a diretora Anna Muylaert desembarca neste primeiro grande encontro do cinema mundial de 2025 com um novo filme, no qual a trama gira novamente em torno da figura de uma verdadeira "Mãe Coragem". Ela refletiu para a RFI sobre a importância dessa figura feminina, comparando-a com a personagem de Regina Casé no filme anterior, destacando como a maternidade ainda é subestimada na sociedade.

Para ela, a mãe é a figura mais importante da sociedade e, ao mesmo tempo, a mais desvalorizada. "Eu acho que a sociedade ainda não entendeu institucionalmente que precisa apoiar a mãe. Por exemplo, se alguém vai casar na igreja, precisa fazer um curso de um mês. Se vai ser enfermeira, faz um curso de dois anos. Se vai ser médica, o curso é de seis anos. Mas a mãe, que é a grande educadora, a menina tem 15, 17, 20 anos, nunca leu um livro, não sabe nem as fases de desenvolvimento da criança. Ela pega a criança no colo e pronto. A sociedade não prepara a mulher para ser mãe, então cada mãe vai puxando sua carroça sozinha", avalia, numa referência à protagonista de seu nome filme, "A melhor mãe do mundo", que atravessa a cidade levando os dois filhos pequenos numa carroça. 

"O urbanismo da cidade não favorece a mãe, não favorece o espírito comunitário que a criança precisa para viver. Eu volto sempre à mãe, porque existem milhares de mães e tipos de mães, da boa à amada, que faz a benção, e outras, a maldição. Eu acho que precisamos evoluir para uma sociedade que se estruture a partir dessa figura, que é a educadora maior", diz a cineasta brasileira.

Muylaert mencionou também a difícil realidade de muitas mães brasileiras que, sem o apoio do pai, se tornam as verdadeiras chefes da família, enfrentando desafios sozinhas. Nesse sentido, a cineasta reflete sobre a importância de se pensar na mãe como parte de uma estrutura coletiva, que vai além da responsabilidade individual: "precisamos começar a pensar a maternidade de forma coletiva", afirmou.

Ana fala também sobre a personagem de seu filme, comparando-a com Eunice Paiva, a mãe do filme "Ainda estou aqui", interpretada por Fernanda Torres, de Walter Salles. "A semelhança entre as duas personagens está no fato de enfrentarem sozinhas a violência do mundo, tentando proteger seus filhos e não transparecer as dificuldades que encaram. Eu vejo semelhanças porque a Eunice, da mesma forma, está enfrentando uma barra sozinha. E eu acho que é responsabilidade da mãe não passar a sua dor para o filho, o que é muito difícil. Tem muita mãe que, inclusive, usa o filho como terapeuta ou como melhor amigo. Os problemas da mãe acabam indo parar no filho. Por isso existem essas 'maldições' de geração para geração. Então, a mãe que consegue estancar a violência para a próxima geração, é a melhor mãe do mundo", diz a cineasta. "Sim, eu vejo similaridades".

Sobre o filme, a diretora compartilha sua expectativa para a estreia mundial na Berlinale, destacando que o momento de apresentação ao público é o mais importante, pois é nesse instante que o filme realmente ganha vida e é entendido. "Esse é o momento em que o filme realmente 'nasce' e a gente entende o que ele realmente é. Então, eu preparei esse prato, esse bolo, com todo amor do mundo, e amanhã vou saber que cheiro ele tem", brinca.

Retorno do cinema brasileiro

Muylaert se mostra otimista quanto ao retorno do cinema brasileiro, que passou por uma pausa durante o governo anterior, mas agora, está retomando um fluxo de criação. "O cinema está aos poucos retomando depois de uma pausa com os governos de direita. Eu acho que o governo Lula está ajudando a retomar esse fluxo e as equipes técnicas e artísticas, nós já temos qualidade, uma qualidade que vem sendo desenvolvida desde os anos 1990. Nós temos tudo para fazer grandes filmes", acredita a diretora.

Em relação ao Oscar, Anna Muylaert, que é membro da academia, comenta sobre a dificuldade deste ano devido à polêmica em torno de "Emília Perez". A diretora acredita que o filme brasileiro tem grandes chances de ganhar na categoria de Melhor Filme Internacional, e também fala sobre as chances da atriz Fernanda Torres, destacando que, embora Demi Moore seja a favorita, Fernanda é a segunda mais cotada. "Voto, já votei este ano. Foi o ano mais difícil de votar desde que comecei a votar para a academia, por causa de tantos debates em cima do filme Emília Perez. Este ano, o voto se tornou muito político", avalia.

Ao final, Ana reflete sobre a polarização política crescente no mundo e a influência da extrema direita, mencionando a relação com a tecnologia e a dominação das corporações. "Eu acho que o mundo nunca esteve tão polarizado. Desde que nasci, nunca vi uma radicalização tão grande. Acho que isso vem da internet, né? O mundo está se tornando uma grande corporação", analisa.

"Os Estados Unidos estão virando uma oligarquia. Os bilionários da tecnologia estão dominando, e a gente está sendo dominado. Estamos aqui, falando pelo WhatsApp. Acho que estamos numa situação bem complicada, muito orwelliana. A extrema direita, a direita, está com a tecnologia na mão. Eu acho que estamos em uma situação bastante perigosa para a humanidade, porque os números estão valendo mais do que a poesia ou a humanidade. E ainda vem mais por aí. Acho que estamos num momento bem perigoso", conclui a diretora.

O filme "A melhor mãe do mundo", de Anna Muylaert, estreou mundialmente na seção Berlinale Special neste sábado (15), na capital alemã, e deve entrar em cartaz no Brasil apenas em agosto de 2025.

'Sem justiça fiscal não há democracia': especialista brasileiro defende 'taxação de ricos' em evento no Vaticano
13 February 2025
'Sem justiça fiscal não há democracia': especialista brasileiro defende 'taxação de ricos' em evento no Vaticano

Nesta quinta-feira (13), a Pontifícia Academia de Ciências Sociais do Vaticano e a Comissão Independente para a Reforma da Tributação Corporativa Internacional promovem o evento de alto nível "Justiça Fiscal e Solidariedade". Entre os participantes está o vice-presidente de Programas da Open Society Foundations, Pedro Abramovay, que coordena o painel "Propostas e Oportunidades para um Sistema Tributário Internacional Justo", que conversou com a RFI sobre o assunto.

Criado há um século pelos países ricos, o sistema tributário internacional, concebido em um mundo não globalizado, e vem enfrentando uma imensa pressão, graças à intensificação da competição fiscal, à digitalização, ao sigilo financeiro e aos paraísos fiscais.

"Tudo isso se traduz em bilhões de dólares perdidos anualmente devido ao abuso fiscal, especialmente em países em desenvolvimento que necessitam urgentemente de receitas significativas para financiar serviços públicos, adaptação às mudanças climáticas e a transição verde", diz o documento que apresenta o evento de alto nível no Vaticano, que contou com a participação de um vídeo gravado do presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

"A democracia vive hoje seu momento mais crítico desde a Segunda Guerra Mundial, a desigualdade entre ricos e pobres aumentou de maneira expressiva", disse Lula na abertura de seu discurso, enfatizando que "os superricos pagam proporcionalmente muito menos imposto do que a classe trabalhadora".

Ele subinhou ainda que "o Brasil tem investido no tema da cooperação internacional para desenvolver padrões mínimos de tributação global, fortalecendo as iniciativas existentes, incluindo os bilionários". "Com a presidência dos Brics, da Cop 30 neste ano, o Brasil quer propor uma nova arquitetura, de financiamento climático", destacou Lula durante o evento no Vaticano.

 O fator Trump e o sistema tributário global

Em meio às rupturas na ordem mundial [impostas por Donald Trump, por exemplo], ainda é possível sonhar com um sistema tributário global mais equitativo? O advogado Pedro Abramovay acredita que "não temos outra opção".

"Justamente em momentos como este, em que vemos ataques ao Estado, liderados por figuras como o ex-presidente dos Estados Unidos, é que precisamos reforçar a ideia de que não há como enfrentar problemas globais – pandemias, desigualdade, mudanças climáticas – sem Estados fortes. Especialmente fora do Norte Global, onde a redução de ajuda e cooperação internacional exige que os países desenvolvam capacidade própria de reação. E isso só acontece com o fortalecimento da capacidade fiscal, o que depende de um sistema tributário internacional mais justo", afirma.

"Chegamos perto do primeiro trilionário"

Sobre as tendências de desigualdade, o vice-presidente de Programas da Open Society Foundations destacou a crescente concentração de renda global, impulsionada pelo aumento do número de bilionários.

"Chegamos perto do primeiro trilionário no mundo. É claro que há incentivos econômicos que promovem essa concentração, mas o sistema tributário é um dos maiores culpados. Hoje, bilionários pagam em média apenas 0,5% de imposto de renda, enquanto trabalhadores pagam muito mais. Enquanto mantivermos um sistema tão injusto, a concentração de riqueza continuará. Precisamos de uma reforma tributária global para reduzir desigualdades, aumentar a arrecadação e fortalecer a capacidade dos Estados de proporcionar bem-estar à população", diz Abramovay.

Papel "central" do Brasil no cenário global

O papel do Brasil foi destacado no evento, especialmente no contexto da presidência do G20. "O Brasil desempenhou um papel fundamental ao liderar o G20, que, pela primeira vez desde a invasão russa na Ucrânia, conseguiu uma declaração assinada por todos os países. Além disso, o Brasil utiliza essa liderança para avançar em pautas progressistas, como justiça tributária e mudanças climáticas. É um dos poucos países com capacidade de dialogar com diversas nações – China, Rússia, Estados Unidos, África e países árabes – e propor agendas concretas para uma ordem mundial mais justa", acredita Abramovay.

Evasão fiscal "tóxica" das corporações multinacionais

A evasão fiscal por corporações multinacionais foi apontada como um dos aspectos mais tóxicos da globalização.

 

"A evasão fiscal drena cerca de um trilhão de dólares para paraísos fiscais todos os anos. Enfrentar isso só é possível com cooperação global. Apesar de pouca esperança nos Estados Unidos durante a gestão Trump, observamos maior comprometimento da União Europeia, países africanos e latino-americanos, além de uma entrada mais recente da China no tema. É preciso um esforço coordenado para fechar esses gargalos", sublinha.

Desafios de uma reforma tributária global

Abramovay também destacou os desafios para modernizar um sistema tributário internacional criado há mais de um século, num mundo ainda não globalizado. "O sistema atual foi concebido numa época em que as transações eram feitas em papel e confiavam na troca limitada de informações entre países. Hoje, a tecnologia permite transferências rápidas e eficientes, tornando possível criar um imposto global único, compensado automaticamente entre nações. Precisamos atualizar o sistema para o século 21, aproveitando essas ferramentas para criar maior justiça tributária."

Riscos para a democracia e o papel da justiça tributária

Encerrando a entrevista, Pedro Abramovay alertou sobre a relação entre a injustiça tributária e os riscos à democracia. "Num mundo em que o Estado é atacado por forças autoritárias, é crucial reforçá-lo – não de forma repressiva, mas como promotor de bem-estar social. Estados incapazes de reduzir desigualdades e atender às demandas dos cidadãos perdem legitimidade, abrindo espaço para aventureiros autoritários. A justiça tributária é essencial para fortalecer a democracia, e eventos como o do Vaticano reúnem mentes brilhantes para mostrar que é possível construir um mundo mais justo, mesmo diante de tantos desafios", concluiu.

Livro resgata episódio trágico da morte de um cantor que levou a uma revolta nas Ilhas Maurício
12 February 2025
Livro resgata episódio trágico da morte de um cantor que levou a uma revolta nas Ilhas Maurício

Memórias afetivas e história se misturam na narrativa criada pelo escritor Nitish Monebhurrun para revisitar um evento dramático para os moradores das Ilhas Maurício: a morte de um cantor popular no país, em circunstâncias até hoje não esclarecidas, segundo o autor. Seu livro “Kaya est mort” (Kaya está morto, em tradução livre do francês revive o episódio no final dos anos 1990 que desencadeou uma onda de violência e expôs as tensões por trás da aparente harmonia entre as diversas comunidades que compõem a sociedade mauriciana.

Nitish Monebhurrun recorre às lembranças da adolescência para narrar o episódio histórico da morte de Kaya, nome artístico adotado por Joseph Réginald Topize, criador do gênero musical "seggae" - uma fusão de tradições africanas, reggae e cultura rastafári.

Nascido em Port-Louis, capital do país, Kaya era adepto do movimento rastafári e a favor da legalização da maconha em um contexto cultural, já que algumas comunidades do pequeno país do Oceano Índico usam a substância em festividades e rituais religiosos.

Preso horas depois de um show no qual exibia um cigarro de cannabis, o cantor foi levado a uma prisão e apareceu morto.

“O discurso oficial do Estado era de que ele se suicidou porque estava precisando de maconha, bateu a cabeça na parede e morreu. É óbvio que ele não se suicidou. Ele não morreu, foi morto”, afirma Nitish.

Depois do anúncio da morte de Kaya, em 21 de fevereiro de 1999, uma onda de revolta e muita violência atingiu a ex-colônia britânica e francesa no Oceano Índico, formada por uma diversidade étnica de europeus, indianos, chineses e africanos. 

Segundo o autor, o episódio que por cerca de 10 dias parou o país, quase deu origem a uma guerra civil. “As Ilhas Maurício são conhecidas sobretudo por ser um país tropical do Oceano Índico, com um mar que é quase uma piscina e onde é o reino da paz. Esse episódio mostrou que essa paz existe, mas pode ser apenas superficial, um vulcão adormecido, mas não morto, e que pode ‘acordar’ a qualquer momento”, explicou.

No livro, Nitish relata o drama vivido pelo seu olhar de adolescente. Por um lado, celebrava o fechamento das escolas e o tempo livre para se dedicar ao lazer com amigos, e por outro, percebia gradualmente o impacto profundo na sociedade. Para o autor, a publicação do livro é mais do que um registro autobiográfico.

“Quando ele morreu, não me tocou tanto, mas depois percebi que Kaya não era tão desconhecido. Comecei a sentir um tipo de mea culpa. Outra razão é que ele deixou um patrimônio musical que talvez muitas pessoas não conheçam e que deve ser preservado. E também quis mostrar que desde 1999, algumas coisas não mudaram, e tenho receio de que esqueçam do que aconteceu”, afirma.

Circulação intercultural

Professor de Direito no Centro Universitário de Brasília, Nitish Monebhurrun publicou vários livros na área jurídica, mas tem se dedicado também, nos últimos anos, à literatura de ficção, como na obra “O assassinato do presidente do Brasil”, e de memória. Antes de “Kaya est mort”, ele publicou em 2022 também pela editora Vizavi “Face au tableau noir” (Diante do quadro negro, em tradução livre do francês), no qual expõe de maneira crítica o sistema educacional de seu país natal.

Com uma trajetória que transita entre as Ilhas Maurício, Brasil e França, o escritor vê a sua experiência multicultural como fundamental para sua literatura. "O fato de conviver em sociedades diferentes contribui para uma certa distância enquanto observador", analisa. "Um autor precisa ser como uma esponja que absorve tudo e depois tenta retratar de maneira bonita em um livro. Essa circulação intercultural contribui para isso", conclui.

Filme brasileiro 'Jacaré' ganha menção especial em maior festival de curtas do mundo
11 February 2025
Filme brasileiro 'Jacaré' ganha menção especial em maior festival de curtas do mundo

Eles acabaram de chegar de Clermont-Ferrand, mais especificamente do maior festival de curtas-metragens do mundo, onde levaram o prêmio de Menção Especial do Júri Internacional. Victor Quintanilha e Helena Dias, respectivamente diretor e roteirista, e produtora e roteirista do curta-metragem "Jacaré" falaram à RFI sobre a história do filme, além de suas inspirações e desafios.

 

Jacaré conta a história de Pedro, um adolescente que mora perto de uma estrada e, durante as férias de verão, trabalha vendendo bebidas para os motoristas presos no trânsito a caminho da praia. "Apesar de estar sempre nesse contexto, ironicamente, ele nunca conheceu o mar. Até que, um dia, decide subir escondido na caçamba de um carro para finalmente ver o oceano. O filme fala sobre esse encontro, mas também tem uma abordagem poética e abstrata", conta o diretor Victor Quintanilha.

Inspiração

Quintanilha conta que se inspirou em imagens de um lugar que frequenta desde criança, próximo à casa de um parente. "Sempre tive um contato muito próximo com essa região e minhas ideias acabam surgindo do cotidiano ao meu redor. O roteiro nasceu em um momento de ócio, quando eu estava preso no trânsito tentando voltar para casa. Comecei a observar os jovens que trabalhavam ali e pensei: 'Por que não criar uma história sobre isso?' Assim surgiu Jacaré", relata.

Essa não é a primeira vez que um curta de Quintanilha ganha menção especial do Júri. Portugal Pequeno, filmado em Niterói, cidade vizinha ao Rio de Janeiro, produzido em 2020 e exibido em Clermont-Ferrand no ano seguinte, também levou o prêmio. "Em 2021, quando aconteceu pela primeira vez, eu não pude estar lá presencialmente por conta da pandemia. Agora, foi muito especial poder vivenciar essa experiência ao vivo", conta.

"Jacaré é meu primeiro curta dessa dimensão como produtora, e participar do maior festival de curtas-metragens do mundo abriu muitas portas", diz Helena Dias, roteirista e produtora pela Sapucaia Filmes. "O evento não é apenas uma vitrine para as obras, mas também um ponto de encontro com cineastas de várias nacionalidades. No nosso programa, havia representantes da Irlanda, Irã, Coreia do Sul. Essa troca cultural é riquíssima! Além disso, há oportunidades de networking com distribuidores, festivais e laboratórios de desenvolvimento. Para um produtor, é um ambiente incrível. No momento, Jacaré está sendo avaliado por outros festivais. Depois de Clermont-Ferrand, recebemos convites e estamos analisando onde será exibido em seguida", afirma.

"Temos uma estratégia de distribuição estruturada junto à nossa distribuidora, Cajuína. O plano é focar nos festivais internacionais nos primeiros seis meses do ano, especialmente na Europa, América do Norte e Ásia. No segundo semestre, voltamos nossa atenção ao Brasil e América Latina. Ainda não temos uma data exata, pois dependemos dos festivais, mas será no segundo semestre, com certeza", antecipa Dias.

Desafios

"Produzir um curta tem todas as etapas e desafios de um longa-metragem. A diferença é a duração. A narrativa precisa ser mais concentrada, e cada detalhe importa. Além disso, temos desafios financeiros e de acesso a profissionais, pois muitos preferem trabalhar apenas em longas", lembra Victor Quintanilha. 

"Existe também uma diferença na recepção do mercado", diz Quintanilha. "O curta nem sempre recebe o mesmo destaque que um longa. Mas eventos como Clermont-Ferrand mostram que existe, sim, um mercado valioso para curtas-metragens. Tivemos sessões com 1.400 espectadores! Isso demonstra que, quando existe uma cultura de formação de público, o curta pode ser rentável e relevante. Essa experiência abriu muito meus olhos para as possibilidades futuras", conclui o diretor.

Brasileiro Antonio Obá imagina “festim” em sua 1ª exposição individual em Paris
07 February 2025
Brasileiro Antonio Obá imagina “festim” em sua 1ª exposição individual em Paris

“Festim da alma” é a primeira exposição individual de Antonio Obá em Paris. Todos os quadros e desenhos que compõem a mostra, inaugurada nesta quinta-feira (6), são inéditos. Em entrevista à RFI, o artista brasileiro define a narrativa do conjunto das obras “como uma pequena celebração” sobre os ciclos da vida.

Antonio Obá, nasceu em 1983 em Ceilândia, e atualmente mora e trabalha em Brasília. Sua obra tem reconhecimento internacional, já foi exposta em muitas cidades do mundo e vários de seus quadros integram a coleção de arte contemporânea do bilionário francês Pinault, uma das mais prestigiosas do planeta. Em Paris, seu trabalho já havia sido exposto em mostras coletivas ou feiras de arte.

“Festim da alma”, apresentada na galeria Mendes Wood DM, é a primeira individual na capital francesa. “Essa exposição é muito feliz. São trabalhos inéditos que pontuam um momento muito especial, de pesquisa. E o fato de ser em Paris é para mim uma honra e é muito rico”, diz.

Os 21 quadros a óleo e alguns desenhos que compõem a exposição foram feitos em 2024. A mostra propõe uma narrativa sobre os ciclos da vida.

Segundo o artista, “a proposta é uma pequena celebração. O conjunto das obras que estão expostas demarcam uma certa ideia de um ciclo que inicia e termina. As imagens, os símbolos usados propõem muito a pontuação de um rito que tem a ver com a nossa existência”.

 

Ele ressalta as imagens de crianças, como no quadro “Alegoria para uma nascida”, ou a tela “Memento Mori: Baile de debutantes”. Para ele, a palavra debutante por si só “designa algo que morre para iniciar num outro estágio. E aí, a gente pode jogar essa construção narrativa para tudo na vida que começa, termina, reinicia. Tudo pontuado por rituais, um festim, uma pequena celebração da alma”, completa.

Ancestralidade africana e discriminação racial

O trabalho poético de Antonio Obá dialoga com a tradição iconográfica ocidental, resgata a ancestralidade africana e questiona a discriminação racial no Brasil. “Certamente, tem esse caráter de problematizar isso tudo. Por que num dado momento passa a ser tão surpreendente você entrar numa galeria, numa exposição onde a maioria das figuras, ao invés de serem caucasianas, são negras? Qual a surpresa disso eu tendo essa pele?”, questiona, lembrando que seu trabalho é “quase autorreferente”.

No entanto, ele salienta que sua obra não se “resume a isso”. Antonio Obá afirma que tem “tido um certo cuidado de não transformar a obra num conteúdo moralizante. Ela não está aqui para dar lição de moral”.

“Festim da Alma” fica em cartaz até 27 de março na galeria Mendes Wood DM, na Praça de Vosges, no 4° distrito de Paris.

 

Clique na imagem principal para ouvir a entrevista completa de Antonio Obá.

Festival de Curtas de Clermont Ferrand exibe 'vivacidade' da produção brasileira em sessão especial
05 February 2025
Festival de Curtas de Clermont Ferrand exibe 'vivacidade' da produção brasileira em sessão especial

Cinco filmes paulistas na programação do Mercado do Filme do Festival de Curta-metragem de Clermont Ferrand serão exibidos em uma sessão especial para o público nessa quinta-feira, 6 de fevereiro, no centro da França. O evento francês é o maior do mundo para produções neste formato e reúne, todos os anos, um público fiel e interessado na criação brasileira.

A seleção dos curtas apresentados no centro da França foi definida por Anne Fryzsman, programadora internacional do Festival de Curtas de São Paulo – Kinoforum. Ao lado do coordenador Marcio Miranda Perez, Anne dá continuidade ao trabalho iniciado há décadas pela diretora da mostra paulistana, Zita Carvalhosa, que abriu as portas do mercado global de produtores e distribuidores aos cineastas brasileiros.

"A seleção foi feita em cima de filmes paulistanos de 2024 – alguns  estavam em fase de finalização –, e de 2025, porque estávamos à procura de filmes recentes. Queríamos mostrar a vivacidade e a diversidade do curta-metragem brasileiro", disse Anne em entrevista à RFI

Duas produções vieram da Rede Afirmativa, da Spcine. Quase Trap!, um filme de iniciação, dirigido por Filipe Barbosa, conta a história de um menino da periferia de São Paulo absorto pela questão da virilidade na adolescência. Anastácia, de Lilih Curi, aborda a violência doméstica. Já 2 Brasis, de Carol Aó e Helder Fruteira, é um filme de ação e uma distopia, com uma produção bem trabalhada, enquanto Carlinha e André, de Ricky Mastro, retrata a história de amor de uma senhora transgênero que está esperando a volta do marido para casa, depois dele ter revelado a ela que estava com Aids. Por fim, Migué, de Rodrigo Ribeyro, vencedor do prêmio Revelação no festival de curtas de São Paulo no ano anterior, conta a história de uma garota paulistana trabalhadora que resolveu tirar um dia de folga. 

"A gente queria mostrar filmes que conversariam internacionalmente e também mostrar um certo panorama de gênero, com diretores mais velhos e outros mais novos", explica Anne Fryzsman. 

Além dos curtas do programa elaborado pelo Kinoforum, com o apoio da Spcine, do Instituto Guimarães Rosa e da Embaixada do Brasil em Paris, três curtas brasileiros concorrem a prêmios na competição internacional do festival: Amarela, de André Hayato Saito; Jacaré, de Victor Quintanilha; e Eu Sou um Pastor Alemão, de Angelo Defanti, na categoria animação.

Curtas brasileiros já foram aplaudidos de pé 

Todos os anos, o festival de curtas francês transforma a vida dos moradores de Clermont Ferrand, ao acolher a nata internacional de diretores, jovens cineastas, produtores e distribuidores. Desde cedo, a Casa da Cultura, um imponente edifício no centro da cidade, oferece uma programação extensa de filmes em grandes auditórios, que lotam rapidamente com um público fiel e impregnado pela cultura do curta-metragem. 

Mais de dez salas espalhadas pela cidade acolhem as seleções in e off do festival, ao mesmo tempo em que jornalistas do mundo todo acompanham as apresentações e ficam no vaivém entre a Casa da Cultura e o Mercado do Filme, realizado em um edifício adjacente.

Os filmes brasileiros costumam gerar expectativa positiva, uma vez que vários deles marcaram o público e profissionais do setor. 

"Eles lembram que os maiores sucessos de público foram brasileiros. Ilha das Flores [curta de Jorge Furtado, 1989] ganhou o prêmio do público em 1991 e sempre está numa retrospectiva. Quando um produtor recebe uma carta branca, ele vai querer mostrar Ilha das Flores", conta Anne Fryzsman. 

O curta de Jorge Furtado faz uma crítica ácida do capitalismo, ao narrar a trajetória de um tomate, desde o seu plantio até o seu descarte na Ilha das Flores, local que abrigava um lixão de Porto Alegre, onde cerca de 500 toneladas de lixo por dia eram despejadas na época e vasculhadas por pessoas famintas.

"Mais recentemente, tivemos um outro filme brasileiro que ganhou o prêmio do público, que era Meu Amigo Nietzsche [Fáuston da Silva, 2012]. No final do filme, na sala onde ele foi exibido, que é a maior do festival, com 1.400 lugares, estavam todos em pé cantando. Foi uma coisa inacreditável", recorda Anne.

Desta vez, Zita Carvalhosa, iniciadora dessa história de admiração dos franceses pela criação brasileira em Clermont Ferrand, não veio à França. Ela acompanha à distância o trabalho de promoção que faz há anos para divulgar o curta-metragem brasileiro no exterior. Essa dedicação tem resultados concretos com os prêmios conquistados pelo cinema nacional e o acolhimento caloroso do público.