Em seu livro mais recente, "A Nova Ordem Moral", o jornalista Milton Blay escreve que "a hecatombe em Gaza ultrapassa os limites do conflito israelo-palestino e vai além das fronteiras do Oriente Médio”. Em entrevista à RFI, o autor explica que o que acontece desde o ataque do Hamas, em 7 de outubro de 2023, sugere um momento de “tentativa de refundação da ordem geopolítica e moral do mundo”.
Maria Paula Carvalho, da RFI em Paris
No livro publicado pela editora Kadimah (2024), Milton Blay defende que o antissemitismo nunca deixou de existir e se dissimula nas correntes de "pseudo-esquerda" e "atrás das cortinas do antissionismo" que, segundo ele, seria capaz de apoiar a discriminação em nome do que considera ser o mal maior, o colonialismo, do qual Israel também é acusado.
O autor descreve o antissemitismo como "uma patologia social", um "vírus hipercontagioso" que se espalha "por terras longínquas". E diz que o ataque sem precedentes do Hamas contra Israel, em 7 de outubro de 2023, questiona a identidade judaica.
Para Blay, os judeus "são as primeiras vítimas quando o obscurantismo ameaça se abater sobre a humanidade", num alerta sobre possíveis novas violências. “Atentados são possíveis e mesmo prováveis”, afirma. “Basta lembrar que a França entrou no norte da África para impedir o desenvolvimento de grupos terroristas naquela região, que atacariam a Europa”, exemplifica.
“O Hamas é o segundo grupo terrorista mais rico do mundo, depois do Hezbollah, no Líbano. Então, nós temos aí uma guerra, atualmente, contra os dois grupos mais ricos e grupos terroristas que estão prestes a fazer atentados no mundo inteiro”, adverte.
Em 2023, na França, “o número de atos antissemitas quadruplicou, chegando a 1.774, para ultrapassar 2 mil nos quatro primeiros meses de 2024", destaca Blay. Em 2022, haviam sido 436 atos antissemitas, segundo o ministério do Interior. Atualmente, "94% dos judeus dizem ter medo", afirma o autor.
Em toda a Europa, os incidentes antissemitas se multiplicam. Coquetéis molotov foram lançados contra uma sinagoga na Alemanha, pichações de estrelas de Davi e de mãos ensanguentadas foram vistas em Paris, enquanto ataques a lojas e sinagogas assustaram a população na Espanha.
Blay escreve que, há um ano, os judeus se sentem inseguros e desestabilizados pelo Hamas. E que "no dia 7 de outubro, o medo despertou fantasmas de milênios".
Coalizão de ultradireita em Israel
Por outro lado, o autor também aponta que a existência de um governo em Israel, “liderado por Benjamin Netanyahu, com participação de partidos ortodoxos de ultradireita, racistas, homofóbicos, misóginos, coloca em risco não apenas os alicerces do Estado, como ataca o judaísmo laico” que, segundo Milton Blay, "permitiu a sobrevivência” dos judeus, após o extermínio de um terço dessa população na Europa.
“Não há a menor dúvida. É um governo de extrema direita, o pior governo que Israel já teve em toda a sua história”, avalia Milton Blay. “É um governo efetivamente racista, um governo misógino, é um governo que se aproxima dos governos teocráticos que existem no mundo”, completa. Blay compara “os sionistas religiosos teocráticos, que não reconhecem o Estado laico e afirmam a superioridade da lei religiosa sobre o direito civil”, com governos de "certos países muçulmanos onde reina a sharia, a começar pelo Irã”.
O jornalista descreve a coalizão israelense no poder como sendo “de extrema-direita hipernacionalista, com teocratas ultraortodoxos, messiânicos, dispostos a acabar com a democracia secular, arrasar os palestinos e combater os judeus progressistas”. E completa dizendo que “Israel nunca esteve tão próximo de uma revolução autoritária religiosa”. Em seu livro, aponta para o risco de Israel se tornar “uma teocracia messiânica com tecnologia nuclear, poder militar e conhecimento tecnológico, de efeito global”.
“O que os aiatolás de Teerã querem é aplicar plenamente a sharia, ou seja, a lei islâmica, a lei do Alcorão. Então, não há lei civil. E uma boa parte do governo israelense hoje gostaria de ter isso, ou seja, de aplicar as leis religiosas, a Bíblia e acabar, inclusive, com o Poder Judiciário”, observa.
Genocídio e limpeza étnica
Em um relatório publicado no dia 14 de novembro, a Human Rights Watch estimou que as repetidas ordens de evacuação feitas pelo exército israelense na Faixa de Gaza, levando ao deslocamento forçado da população, equivalem a um “crime de guerra”. De acordo com a ONG, “as ações de Israel também parecem se enquadrar na definição de limpeza étnica” nas áreas em que o exército ordenou que os palestinos saíssem sem poder retornar.
Blay rejeita essa ideia. “Se você pegar os dados habitacionais na Faixa de Gaza você vai ver que a população de Gaza aumentou em praticamente 2.000% desde a criação de Israel, desde a independência de Israel, em 1947”, argumenta. “Então, falar em limpeza étnica não faz sentido. Nós temos uma população em Gaza que se se reproduz em alta velocidade e eles têm todo o direito. Eu sou amplamente favorável a existência de um Estado palestino ao lado de Israel, vivendo em paz e segurança, em fronteiras reconhecidas internacionalmente”, propõe.
Em seu livro, Blay ainda analisa como o atentado do Hamas de 7 de outubro foi recebido no mundo. O autor cita que Antonio Guterres, secretário-geral das Nações Unidas (ONU), "preferiu não condenar o grupo terrorista, sem dúvida por considerar que se trata de um movimento de resistência", nas palavras do autor, e que "o Conselho de Segurança só veio examinar o destino dos sequestrados onze meses após o atentado".
A posição do Brasil
Blay também destaca que o "Brasil, através de seu presidente, demorou a qualificar o Hamas de grupo terrorista (como o fazem a Europa e os Estados Unidos) e meses depois, colocou em pé de igualdade Gaza e Auschwitz". Para Blay, "Lula deve desculpas" à população judia. “Ele deve desculpas pelo que disse não apenas às populações judias, mas a todos aqueles que foram vítimas do Holocausto, sem exceção: os ciganos, os homossexuais, as prostitutas, as Testemunhas de Jeová”, diz.
Em seu livro, Blay afirma, ainda, que "Luís Inácio Lula da Silva virou um mito e como tal tem sempre razão, é infalível, pelo menos para os seus". Em Israel Lula foi considerado "persona non grata", lembra.
“Lula fala que houve atentados terroristas no dia 7 de outubro. Mas quem os cometeu? Ele não diz e nem chama o Hamas de grupo terrorista. E na mesma linha, a ONU assume a mesma postura”, lamenta. “A ONU, através de seu secretário-geral, pediu um relatório sobre os atentados de 7 de outubro do ponto de vista de agressões sexuais. Esse relatório de mais de 200 páginas foi entregue ao secretário-geral da ONU que decidiu não dar publicidade. Por que não dar publicidade? Porque o mundo assumiu uma postura de que a culpa é de Israel, a culpa é dos judeus”, observa. “E quando se fala em Israel como genocida, eu queria acrescentar os números divulgados na semana passada: 15.500 civis foram mortos em Gaza, de um total de 43.500 mortos. Então, foram aproximadamente quase 30.000 terroristas mortos para 15.500 civis. Pode se falar em genocídio?”, pergunta.
Na França, o autor lembra que o líder de esquerda Jean-Luc Mélenchon imediatamente tomou partido dos palestinos, "qualificando-os de resistentes, vítimas da opressão colonial". Para Blay, "tanto a extrema-esquerda, representada pelo partido A França Insubmissa, quanto os herdeiros do neonazista Front Nacional de Jean-Marie Le Pen são antissemitas".
Nos Estados Unidos, os protestos pró-Palestina em universidades como a de Harvard e de Columbia surpreenderam a comunidade judaica que se sentia, até então, segura no país.
Nova ordem global
Blay acredita que “as guerras atuais fazem parte de um conflito mundial”. Segundo o autor, “a terceira guerra já começou” e “na nova ordem moral, os valores herdados do Iluminismo, apresentados até há pouco como indiscutíveis, desapareceram”.
Ele explica a ideia de refundação da geopolítica mundial. “O mundo está dividido entre países que formam um bloco totalmente heterogêneo, afinal, o que a Rússia tem a ver com a China? O que a China tem a ver com o Irã? O que o Irã tem a ver com a Turquia? O que a Turquia tem a ver com a África do Sul? Pois bem, esses países formam um bloco antiocidental”, define. “Quando eu falo em ordem moral, é que não há nenhum objetivo de igualdade social, de democracia, de direitos humanos. São países que violam os direitos humanos mais fundamentais e que decidem se juntar para formar um bloco sólido, com potências como a Rússia e a China”, completa.
Para o autor, a posição do Brasil é muito clara no governo atual. “Lula queria formar um grande bloco do hemisfério sul. Ele agora tem essa chance de ter um papel importante. Ao contrário de outros países, o Brasil consegue conversar com as nações desenvolvidas e com os países mais pobres, menos desenvolvidos. Lula tem a oportunidade de falar a mesma língua dos países do hemisfério sul”, explica.
Uma paz possível, mas distante
No seu novo livro, Blay lembra que "cinco tentativas de paz e acordos para a criação de um Estado palestino estiveram sobre a mesa. Cinco vezes palestinos e árabes rejeitaram”. E segue: “Hoje, temos uma urgência, chegar a um acordo com os palestinos". O autor escreve, por fim, que “Israel precisa olhar para o passado, reconhecer os erros cometidos e assumir sua parcela de responsabilidade na situação dos palestinos”.
“Não há hoje condições mínimas, estruturais e institucionais para que isso aconteça”, avalia. “A população israelense é quase que unanimemente a favor do fim do Hamas, da destruição do Hamas. Isso não quer dizer matar todos os combatentes do Hamas, mas acabar institucionalmente com o grupo, para que o Hamas não tenha um papel relevante em Gaza, a partir do fim da guerra”, acrescenta. “Então, vão ter que encontrar uma saída, que eu acho que passa necessariamente pela presença de países árabes na região, para ajudar os palestinos a formar um país em Gaza e na Cisjordânia. E também passa pelo desenho do território, a partir do momento que se conseguir negociar uma solução de dois estados”, aponta. “A solução passa pela Arábia Saudita, pelos países do Golfo Pérsico, para que se pacifiquem as relações mas, sobretudo, para que os palestinos tenham dinheiro e possam ter um momento, enfim, de prazer e de satisfação, para que possam viver normalmente”, conclui.
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