QUE PAÍS É ESTE?
[Affonso Romano de Sant’Anna, Que país é este? RJ: Rocco, 1990. p. 11-23] para Raymundo Faoro
1
Uma coisa é um país,
outra um ajuntamento.
Uma coisa é um país,
outra um regimento.
Uma coisa é um país,
outra o confinamento.
Mas já soube datas, guerras, estátuas
usei caderno “Avante”
- e desfilei de tênis para o ditador.
Vinha de um “berço esplêndido” para um “futuro radioso”
e éramos maiores em tudo
- discursando rios e pretensão.
Uma coisa é um país,
outra um fingimento.
Uma coisa é um país,
outra um monumento.
Uma coisa é um país,
outra o aviltamento.
Deveria derribar aflitos mapas sobre a praça
em busca da especiosa raiz? Ou deveria
parar de ler jornais
e ler anais
como anal
animal
hiena patética
na merda nacional?
Ou deveria, enfim, jejuar na Torre do Tombo
comendo o que as traças descomem
procurando
o Quinto Império, o primeiro portulano, a viciosa visão do paraíso
que nos impeliu errar aqui?
Subo, de joelhos, as escadas dos arquivos
nacionais, como qualquer santo barroco
a rebuscar
no mofo dos papiros, no bolor
das pias batismais, no bodum das vestes reais
a ver o que se salvou com o tempo
e ao mesmo tempo
- nos trai.
2
Há 500 anos caçamos índios e operários,
há 500 anos queimamos árvores e hereges,
há 500 anos estupramos livros e mulheres,
há 500 anos sugamos negras e aluguéis.
Há 500 anos dizemos:
que o futuro a Deus pertence,
que Deus nasceu na Bahia,
que São Jorge é que é guerreiro,
que do amanhã ninguém sabe,
que conosco ninguém pode,
que quem não pode sacode.
Há 500 anos somos pretos de alma branca
não somos nada violentos,
quem espera sempre alcança
e quem não chora não mama
ou quem tem padrinho vivo
não morre nunca pagão.
Há 500 anos propalamos:
este é o país do futuro,
antes tarde do que nunca,
mais vale quem Deus ajuda
e a Europa ainda se curva.
Há 500 anos
somos raposas verdes
colhendo uvas com os olhos,
semeamos promessa e vento
com tempestades na boca,
sonhamos a paz da Suécia
com suíças militares,
vendemos siris na estrada
e papagaios em Haia,
senzalamos casas-grandes
e sobradamos mocambos,
bebemos cachaça e brahma
Joaquim Silvério e derrama,
a polícia nos dispersa
e o futebol nos conclama,
cantamos salve-rainhas
e salve-se quem puder,
pois Jesus Cristo nos mata
num carnaval de mulatas.
Este é um país de síndicos em geral,
este é um país de cínicos em geral,
este é um país de civis e generais
Este é o país do descontínuo
onde nada congemina,
e somos índios perdidos
na eletrônica oficina.
Nada nada congemina:
a mão leve do político
com nossa dura rotina,
o salário que nos come
e nossa sede canina,
a esperança que emparedam
e a nossa fé em ruína,
nada nada congemina:
a placidez desses santos
e nossa dor peregrina,
e nesse mundo às avessas
- a cor da noite é obsclara
e a claridez vespertina.
3
Sei que há outras pátrias. Mas
mato o touro nesta Espanha,
planto o lodo neste Nilo,
caço o almoço nesta Zâmbia,
me batizo neste Ganges,
vivo eterno em meu Nepal.
Esta é a rua em que brinquei,
a bola de meia que chutei,
a cabra-cega que encontrei,
(...)
PROBLEMATIZANDO!!!
1) – Qual a visão do autor sobre o Brasil, em geral? Justifique sua resposta.
2) – Qual a visão do autor sobre o povo brasileiro, em particular? Justifique sua resposta com algum trecho do poema.
3) – Faça uma comparação entre este poema e a letra da música, com o mesmo título do poema, gravada pela banda de rock nacional, Legião Urbana.
4) –. Na sua opinião, qual é a época histórica do Brasil que o poeta procura retratar no poema? Justifique.
5) – Quais outras questões podem ser levantadas para o debate a partir do rico conteúdo deste poema?
6) –Qual mensagem que você tira deste poema? Justifique.