Rendez-vous cultural
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Reportagens sobre exposições, concertos e espetáculos na França. Destaque para os artistas brasileiros e suas criações apresentadas na Europa. Na literatura, lançamentos e as principais feiras de livros do mundo.

Mostra em Paris celebra centenário do Surrealismo com 'labirinto' monumental de 500 obras
11 October 2024
Mostra em Paris celebra centenário do Surrealismo com 'labirinto' monumental de 500 obras

Abrangendo mais de 40 anos de excepcional efervescência criativa, entre 1924 e 1969, a exposição “Surrealismo” no Centro Pompidou de Paris comemora o centenário do movimento que começou com a publicação do Manifesto Surrealista de André Breton. Cerca de 500 pinturas, esculturas, desenhos, textos, filmes e documentos de artistas como Salvador Dali, Miró, René Magritte, Max Ernst e Dora Maar, incluindo muitos empréstimos excepcionais, estão expostos em uma área de 2.200 m².

As obras revelam até que ponto esse movimento artístico, que nasceu em 1924 em torno de poetas como André Breton e se espalhou pelo mundo, foi visionário e permanece contemporâneo em seu desejo de não apenas transformar a relação entre os seres humanos e a natureza, mas lançando um olhar crítico e político sobre seu próprio tempo.

Reproduzindo a forma de um labirinto, formato de predileção e projeção dos surrealistas, a mostra gira em torno de uma cena central na qual é apresentado o manuscrito original do "Manifesto Surrealista", documento valioso emprestado excepcionalmente para o ocasião da Biblioteca Nacional da França.

Cronológico e temático, o percurso segue figuras literárias que inspiraram diretamente o Movimento Surrealista, como Lautréamont, Lewis Carroll e o Marquês de Sade, e também mitologias e temas que alimentaram o movimento, como a pedra filosofal, a floresta, a noite, o erotismo, o inconsciente. A cenografia brinca com a ilusão de ótica, tão cara aos surrealistas.

O desafio surrealista a um modelo de civilização baseado apenas na racionalidade técnica e o interesse do movimento por culturas que conseguiram preservar o princípio de um mundo unificado (a cultura dos índios Turahumara, descoberta por Antonin Artaud, e a dos Hopis, estudada por André Breton) atestam sua modernidade.  

Segundo Marie Sarré, co-curadora com Didier Ottinger, vice-diretor do Museu Nacional de Arte Moderna da França, “mais do que um dogma estético ou um formalismo, o surrealismo é uma filosofia que, por mais de 40 anos, reuniu homens e mulheres que acreditavam em uma relação diferente com o mundo”. 

O pôster da exposição apresenta uma criatura estranha, um monstro antropomórfico, com roupas largas e coloridas, faixas de tecido torcidas em todas as direções, terminando em mãos que lembram as garras de uma ave de rapina. No centro, na altura do busto, um abismo de sombras se abre. Logo acima, uma cabeça assustadora com uma mandíbula longa e desdentada. E um título que soa como uma ironia, “O Anjo do Lar”, uma obra de Max Ernst, pintada no auge da Guerra Civil Espanhola em 1937, ano em que Guernica foi bombardeada. Ela também é conhecida como “O triunfo do surrealismo” e é um lembrete de que o surrealismo sempre triunfa.

Marie Serré dá mais detalhes sobre a exposição: "É essencial lembrar da preferência dos surrealistas pelas artes populares. Muito cedo eles questionaram completamente essa hierarquia entre as Belas Artes e as artes chamadas populares. Seu modelo não são as exposições de museu, são as festas regionais, o trem fantasma, o parque de diversões. Era necessário sublinhar isso fazendo os visitantes da mostra no Centro Pompidou adentrarem o espaço da exposição através desta enorme boca que reproduz o Cabaré do Inferno, que ficava na Praça Clichy, em Paris, logo atrás do ateliê de André Breton, que os surrealistas tinham o hábito de frequentar", explica.

A exposição não escapa, no entanto, ao olho crítico dos franceses, como ressalta Françoise, uma aposentada que veio direito de Grenoble (leste) para ver a mostra no Pompidou. "A exposição foi feita de maneira muito interessante, por temas, mas ela é muito grande. Fica difícil apreciar tudo, ela acaba saturando o olhar da gente em um determinado momento". Ela manda um recado para os visitantes que ainda não conferiram a exposição em Paris."É melhor escolher um horário com menos gente, porque é realmente difícil ter acesso às obras", avisa.

Já o brasileiro Bruno Damasco gostou da experiência. "Passamos por essa exposição com artistas mais das décadas de 1930, 40 e 50, como Salvador Dali, Miró, trabalhos fortes e que são boas referências, tanto de artistas famosos como de alguns que eu não conhecia, da Alemanha e da Suécia, bem bonito, gostei. Não conhecia ainda esse espaço, tinha visitado apenas os museus mais clássicos de Paris", contou.

A mostra valoriza as muitas mulheres que participaram do Movimento Surrealista, com obras de Leonora Carrington, Remedios Varo, Ithell Colquhoun, Dora Maar, Dorothea Tanning e outras, e reflete ao mesmo tempo a expansão mundial do Surrealismo, apresentando artistas internacionais como Tatsuo Ikeda (Japão), Helen Lundeberg (Estados Unidos), Wilhelm Freddie (Dinamarca) e Rufino Tamayo (México), entre outros.

A exposição "Surrealimo" fica em cartaz do Centro Pompidou de Paris até o dia 13 de janeiro de 2025.

Cinema negro brasileiro é um dos destaques do festival francês de documentários Brésil en Mouvements
04 October 2024
Cinema negro brasileiro é um dos destaques do festival francês de documentários Brésil en Mouvements

Até domingo (6), o Brasil é destaque nas telas do cinema em Paris e arredores. O festival Brésil en Mouvements (Brasil em Movimentos), um dos mais importantes de documentários sobre o país na Europa, ocupa duas salas de projeção, com muitas temáticas diferentes. A RFI conversou com participantes sobre o cinema negro e indígena, mas as produções abordam, também, a violência policial, o desmatamento da Amazônia, a luta pela terra, 60 anos da ditadura, direito ao aborto, entre outros assuntos. 

Maria Paula Carvalho, da RFI em Paris 

O evento que começou no sábado (28) apresenta curtas, longas-metragens e debates sobre as questões sociais, políticas, culturais e as lutas da sociedade brasileira contemporânea. Muitos deles são inéditos, dirigidos por cineastas renomados ou novos talentos, como Davidson Candanda, de “Crônicas de uma jovem família preta” (2023).

O filme mostra o cotidiano de Hellena, uma dançarina, Lucas, um barman, e o filho deles, Dom. Mesmo com poucos recursos, os pais decidem organizar uma festa de aniversário para o menino.  

“Para uma família simples como a deles, que está começando uma vida juntos, existe um custo para se fazer esta festa. E por mais simples que seja, pode não ser acessível a todos e isso, de alguma forma, joga luz e a gente pode fazer uma reflexão a partir disso da imensa desigualdade presente na sociedade brasileira”, explica. 

O documentário é o quarto filme do cineasta carioca, que veio a Paris com apoio do Ministério da Cultura (MinC), através de um intercâmbio para a circulação e participação audiovisual no exterior. “Eu sou um cineasta do cinema negro brasileiro. O cinema negro brasileiro é uma cinematografia composta por filmes de cineastas pretos e protagonizado por pessoas pretas”, define. “É um tipo de cinema que tem um compromisso com o antirracismo por meio da produção de histórias que fogem dos estereótipos”, continua. “O filme é um documentário, eu classifico como um documentário, mas em muitas cenas, a família está reencenando eventos que aconteceram”, diz.  

Premiado no Festival Visões Periféricas 2024, ocorrido em março, no Rio de Janeiro, “Crônicas de uma jovem família preta” foi exibido na França, juntamente com outros títulos, na mostra Vozes do Cinema Afro-brasileiro. A sessão foi apresentada pela diretora e pesquisadora Leila Xavier.

Em entrevista à RFI, ela explica a importância dessa temática. “Historicamente, esse segmento sempre foi mostrado no cinema de forma bastante pejorativa, onde os negros desempenhavam papéis subalternos, ou caricatos, ou como bandidos, ladrões. Então, o filme do Davidson mostra o cotidiano de uma família como qualquer família pobre, mas sem este estereótipo. Mostra uma família que sonha, que corre atrás para ganhar a vida, mas que se ama, uma vida normal”, diz. “Mas também tem um trabalho muito grande que esses dois jovens tiveram com o filho no sentido de elevar a autoestima falando para o menino que ele é bonito”, conta. “Porque normalmente na nossa realidade, as crianças já começam a ser bombardeadas desde a escola. E de alguns anos para cá, felizmente, em função da força do movimento negro brasileiro, essa realidade tem mudado”.  

Leila destaca a boa recepção do filme na França. Para ela, a questão do racismo é comum a muitos países. “A gente vê que essa questão do racismo ainda é muito latente em diversas partes do mundo. Então, por isso eu acho que essas duas realidades conversam muito, da França contemporânea com a do Brasil, em que o racismo sempre existiu. O Brasil já nasce com essa questão”, completa.  

As sessões do Festival Brésil en Mouvements acontecem no cinema L’Écran, de Saint-Denis, na periferia norte da capital francesa e no cinema Les 7 Parnassiens, no bairro de Montparnasse, em Paris, onde foi realizada a cerimônia de abertura, na noite desta quinta-feira (3). 

A sessão de abertura teve o longa-metragem “A Transformação de Canuto”, uma cooperação entre os cineastas Ariel Kuaray Ortega e Ernesto de Carvalho, que veio a Paris para um debate, na ocasião, em parceria com o Museu dos Povos Indígenas do Brasil.    

O longa conta a história de um homem com uma doença espiritual conhecida para os Mbyá-Guarani, a da transformação em onça, uma condição perigosa que pode acometer algumas pessoas. Rodado na fronteira entre a Argentina e o Rio Grande do Sul, o filme acompanha Ariel na encenação da metamorfose de Canuto em onça, com participação da comunidade indígena Mbyá-Guarani. 

Em entrevista à RFI, Ernesto de Carvalho falou sobre a recepção internacional do filme. "Considerando a circulação internacional do filme neste primeiro ano, a gente tem encontrado uma resposta muito positiva na França, com espaços muto ricos de debate e de muito acolhimento para o filme", diz. "Estar no Brasil em Movimentos é uma culminância, um momento de aprofundamento e de celebração do fato do que significa a gente fazer um filme brasileiro que tem circulado bem na França", comemora.  

Outro destaque da programação é a sessão especial do longa-metragem “Viajo porque preciso, volto porque te amo” (2009), do cineasta pernambucano Marcelo Gomes. Ele também está em Paris para a exibição do filme, em que divide a direção com Karim Aïnouz. O longa-metragem conta a missão do geólogo José Renato no sertão brasileiro e o encontro com seus habitantes. Ao longo da viagem de um mês, as aventuras se misturam com lembranças de um grande amor.  

Marcelo Gomes já assinou longas de sucesso de crítica e de público como: “Cinema, Aspirinas e Urubus”, de 2005; “O Homem das multidões”, de 2013; ou “Joaquim”, de 2017. O diretor já esteve em Paris, onde apresentou uma masterclass na Universidade Sorbonne sobre sua carreira e obra. 

A programação completa você encontra no site do Festival Brésil en Mouvements.  

Mostra indígena que representou Brasil em Veneza chega a Paris para 'dialogar com olhar do colonizador'
20 September 2024
Mostra indígena que representou Brasil em Veneza chega a Paris para 'dialogar com olhar do colonizador'

Em 2024, o público da prestigiosa Bienal de Artes de Veneza se deparou pela primeira vez em sua fachada principal com obras representativas de diversas etnias indígenas brasileiras. O feito é obra da força de um dos coletivos mais expressivos da arte indígena brasileira, o Mahku, sigla que resume o Movimento Artístico Huni Kuin. A exposição "Encontro de Almas" desembarca agora no Espaço Frans Karjcberg, em Paris. 

O coletivo Mahku de artistas indígenas da etnia Huni Kuin "começou como uma pesquisa de seu fundador, o Ibã [Salles Huni Kuin], com os mais velhos [da tribo], com os cantos sagrados da ayahuasca", conta a artista, pesquisadora e curadora indígena Kassia Borges Mytara.

"Ele fez uma pesquisa, um livro, mas ficou pensando como as pessoas não indígenas e os indígenas iriam entender o que era dito. E ele resolve isso chamando seu filho e solicitando que ele pintasse o que estivesse sendo dito ou cantado... Assim surgiu o Mahku [Movimento Artístico Huni Kuin]. São artistas da etnia que são aldeados, ou seja, moram no alto Rio Jordão, no Acre", localiza Mytara.

"A partir dos pontos dessa pesquisa que o Ibã fez, a gente traduz um som para imagem, e assim surgiram as pinturas do Mahku", contextualiza.

Curadora da exposição cujas obras e artistas ilustraram a fachada principal da Bienal de Veneza em 2024, Kássia Borges Mytara também faz parte do coletivo, que traz instalações, pinturas, cerâmicas e cantos a Paris.

Representando as etnias do Brasil

"A minha cerâmica é uma mistura de várias etnias, mas principalmente da karajás, que é a que eu faço parte junto com o Huni Kuin. Eu trago essa junção entre as etnias e é por isso que [a mostra] se chama "Encontro de Almas", diz.

"Estamos representando as etnias do Brasil. Somos 300 etnias e 300 línguas indígenas. Então eu acho que esse encontro quer falar sobre a união faz a força" sublinha a artista e pesquisadora.

Estar na Bienal de Veneza é poder estar junto com quem nos colonizou, sem deixar de sermos quem somos

Natural de Goiânia, Mytara levou "para dentro da universidade o olhar indígena" ainda na década de 1980, um olhar que "não existia antes. "Minha dissertação de mestrado se chamava 'Origem: um princípio a fundar'. Encontrei no [filósofo alemão] Walter Benjamin essa questão da origem como um turbilhão, uma mistura. Eu acho que trago para a cultura indígena esse olhar da academia, mas levo também o olhar indígena para dentro dessa mesma academia", aponta. 

Mytara contou como foi participar da Bienal de Veneza pela primeira vez: "posso dizer que foi o topo de um desejo. Acho que estar na Bienal de Veneza é poder conversar... Eu acho que a gente está conversando com o público, num lugar em que fomos negados por muitos anos. E aí quando a gente aparece na frente da bienal, no prédio da bienal, no prédio central, estamos nos apresentando, falando sobre isso, e dizendo 'bom dia, seja bem-vindo a esse mundo'. Estar na bienal é poder estar junto com quem nos colonizou, sem deixar de sermos quem somos", sublinha.

"Então essa bienal é muito importante para a arte indígena, para os brasileiros. Foi um ganho e foi, a meu ver, uma coragem muito forte, muito grande do Adriano Pedrosa, que foi o curador dessa bienal", considera a artista. "Foi um gesto de coragem de trazer para o mundo quem somos. Não só a gente, mas todos que estamos representando, todo esse universo", diz Kássia Borges Mytara.

"Ampliar o universo"

A artista e curadora explica como essa abordagem veio mudar o panorama da arte contemporãnea nos quatro cantos do planeta. "Eu acho que a arte indígena vem para ampliar o universo, porque não existe somente um ponto de vista. Não existe uma só verdade. Existem várias verdades e a gente precisava mostrar isso para esse universo que é bem europeu", defende.

"E [era importante] mostrar uma outra estética, no sentido mais literal da palavra estética, que vem da estesia de sentir, de não ficar adormecido. Na verdade, a palavra estética, é sobre isso. É não deixar adormecer os sentidos, despertar os sentidos", indica.

"A arte indígena contemporânea vem para preencher esses outros vazios, que às vezes nem sabem que são vazios. Ela vem mostrar outras possibilidades, outra estética que não é só essa que (a gente) está acostumado, porque é muito fácil você sempre ver as coisas sempre iguais. Aí quando você vê algo diferente, isso te toca. A estética é isso, e aí você percebe que existe outras possibilidades no mundo, outras possibilidades de ver o mundo, outras possibilidades de luta, né? Porque sim, é uma luta", sublinha Mytara.

E as temáticas que permeiam a exposição "Encontro de Almas" não poderiam ser mais atuais, como conta a curadora da mostra. "Estamos falando sobre o antirracismo, de todas essas coisas que estavam meio adormecidas, o feminicídio. A gente toca nisso. A arte indígena toca nisso. A arte indígena toca no sentido de mostrar para o mundo que existem outras possibilidades, outras estéticas, outras maneiras de ver e de sentir o mundo", acredita. 

Mytara ressalta os desafios ambientais que sublinham a necessidade de cura presente nas obras do coletivo indígena. "A cura para nós é muito importante, porque estamos num momento de muita necessidade disso para o mundo, para o meio ambiente. Aqui no Brasil a gente está sentindo uma massa de fumaça já tem um mês, que não dá para respirar direito, e isso tem a ver com o agrobusiness, com o agronegócio", avalia.

"Eu acho que quando a gente traz esses cantos de cura é como se a gente tivesse falando que temos que fazer alguma coisa, nem que seja gritar por essa cura. Porque quando você olha uma pintura do Mahku ou uma cerâmica, você vai ver esse grito de socorro. Mas ao mesmo tempo a gente tem uma esperança, porque [as obras] são cheias de luz. A hora que você vê as pinturas, você percebe a luz. É muita luz que a gente traz, é o que a gente está precisando mesmo", afirma.

O "susto" do colonizador

Kássia Borges Mytara fala sobre a reação do público europeu aos trabalhos em múltiplos suportes do coletivo Mahku. "Às vezes eu percebo que há um susto, eu percebo esse susto e percebo algo assim: 'poxa, o que eu pensava que era arte, não é'. Existe essa ampliação [do olhar estrangeiro]. Eu percebo isso", comenta a artista.

"Bom, eu acho que eles tentam fazer esses questionamentos lá dentro. Eu vi muita gente que gostou demais e ficou feliz de ver o painel [na fachada] da Bienal de Veneza, mas outros já se assustaram e quiseram rotular a arte indígena como primitiva, naïf. Essas pessoas olham o painel com olho de colonizador. Ele se assusta, mas existe a possibilidade também de chegar lá 'nu' e começar a pensar de outro jeito", pondera Mytara.

A exposição "Encontro de Almas" fica em cartaz no Espaço Frans Krajcberg, em Paris, até o dia 20 de dezembro.

Pintura: Gonçalo Ivo revisita inventário de cosmogonias e 'haikais' policrômicos em Paris
13 September 2024
Pintura: Gonçalo Ivo revisita inventário de cosmogonias e 'haikais' policrômicos em Paris

Descobrir o signo e a sombra por trás da cor, do traço, reencontrar o tempo em todas as suas equações imponderáveis, dialogar com uma obra abstrata que, como disse Nélida Piñon, “lida com o firmamento e as trevas”. Esse é o desafio da exposição que mistura trabalhos de duas séries distintas do prolífico artista brasileiro Gonçalo Ivo, radicado na capital francesa há 25 anos: as “Cosmogonias” e o “Inventário das Pedras Solitárias”, na galeria Ricardo Fernandes, em Paris, até 4 de novembro.

Exímio colorista, Gonçalo reinventa espaços polissêmicos e traz densidade às suas cosmovisões, revelando crateras e porosidades, cheias de melancolia, mas que iluminam, em contraponto sinestésico, uma esperança insuspeitada.

Ricardo Fernandes, o galerista que representa o artista em Paris, contextualiza sua obra. "O Gonçalo é um artista nascido em 1958, mas com uma influência muito forte das variantes históricas e artísticas do Brasil, entre elas o modernismo, a questão de ter passado também pela ditadura militar, e todas essas contemplações da arte paralela à vida política e à vida social do país e que fazem com que o trabalho dele seja realmente marcante, histórico", disse Fernandes.

"É um trabalho que ultrapassa as obras, que ultrapassa a força da abstração, nos fazendo perceber os signos que estão por trás de cada forma, de cada cor, em todas as composições do artista. Suas obras nos fazem navegar de forma bem orgânica através das tonalidades que penetram diferentes suportes. São obras que eu considero históricas, em uma exposição individual que foi trabalhada durante dois anos para estar na galeria", afirmou. 

O Paul Klee tem uma frase linda, que é uma frase do diário dele: 'a cor me domina, sou pintor'

Dono de uma policromia sofisticada, espalhada em superfícies, suportes e texturas variadas ao longo de suas mais de quatro décadas de carreira, Gonçalo Ivo fala sobre sua relação com a cor, uma de suas marcas registradas. "A questão da cor, para mim, veio com com idade... A cor para o pintor é como um vocabulário para o poeta, né? Como o abecedário para o poeta...", argumenta Ivo. "O Paul Klee tem uma frase linda, que é uma frase do diário dele: 'a cor me domina, sou pintor'", relembra o artista.

O pintor conta que começou a imaginar a continuação da série "Cosmogonias", cujos primórdios remontam aos anos 1980, num quarto de hotel em Nova York, em 2017, pouco antes da pandemia, segundo ele um prenúncio, uma intuição de algo que seria dramático para a humanidade. "Mas eu também acho que [essa série] antecipa uma coisa de beleza, de beleza de céu de começo do mundo, ela tem essa coisa. E, na verdade, as pinturas têm muito a ver com as iluminuras e mandalas tântricas. Tem essa estrutura que é uma estrutura da própria iluminura tântrica de algo no centro. Uma moldura, uma coisa que se refere ao que está dentro, a partir do que está fora... Eu acho que são pinturas de culto mesmo", avalia.

O inventário das pedras solitárias

O artista, filho do poeta, tradutor e colecionador Lêdo Ivo, foi aluno de nomes como Iberê Camargo e frequentava artistas como Lygia Clark e Nelson Rodrigues. Antes mesmo de se formar arquiteto pela Universidade Federal Fluminense (UFF), foi nesse ambiente pródigo em inspirações que ele deu asas a seu universo criativo. "Com relação à questão de signos ou símbolos, eu acho que o meu trabalho é muito carregado de poesia mesmo. E de uma poesia que se materializa em cor, forma e conteúdo. Eu sempre tive um mundo assim, muito de fantasia, de alegoria, nunca fui muito racional. Eu acho que, um pouco como todo mundo, o mundo prático nunca me interessou", afirma. 

Gonçalo Ivo relata como nasceu o projeto das “pedras solitárias”, que traz também uma inspiração dos haikais do poeta medieval japonês Matsu Bashô. "Em Nova York realmente eu comecei a estruturar as pedras como se elas fossem uma escrita, vários pequenos seichos, um ao lado do outro. Quando eu fui convidado pela fundação Joseph & Anni Albers em Betanny, Connecticut, aí sim, fui para uma zona rural dos Estados Unidos, sem ninguém, durante a pandemia, e aí as pedras afloraram quase que como personagens", conta. "E eu as colecionava, colocava em frente ao pátio da minha casa, na floresta, e eu as pintava, as reproduzia, dentro do meu estúdio,  do meu atelier". 

"Eu gosto muito de um romance do Harry Bradbrury, que é um escritor norte-americano já falecido, que se chama 'O homem ilustrado'; é a história de um homem todo tatuado e cada noite uma tatuagem se revela e vira realidade. Então as pedras têm essa capacidade de mimesis, e, ao mesmo tempo, de continuar sendo o que são", diz. 

A exposição “Inventário das Pedras Solitárias”, com as obras de Gonçalo Ivo, fica em cartaz na galeria Ricardo Fernandes, em Paris, até o dia 4 de novembro.

Ecoarte de Frans Krajcberg inspira mostra de artistas e designers brasileiros em Paris
06 September 2024
Ecoarte de Frans Krajcberg inspira mostra de artistas e designers brasileiros em Paris

Acontece neste momento a Paris Design Week, evento que desde 2011 reúne na capital francesa arquitetos, designers e artistas do mundo inteiro. Entre as cerca de 450 exposições previstas até o próximo 14 de setembro, está The Collector’s House, em cartaz Espaço Frans Krajcberg em Montparnasse, histórico bairro de artistas de Paris.

A mostra, que tem o formato “da casa de um colecionador” apresenta trabalhos de 25 brasileiros e três franceses. Todas as peças foram realizadas especialmente para a exposição e dialogam com a obra de Frans Krajcberg (1921-2017). O artista de origem polonesa, naturalizado brasileiro, foi pioneiro ao denunciar com sua arte a destruição da natureza. A ideia da curadora Patricia Monteiro Leclercq era, nesta segunda edição do The Collector’s House, unir design, arte contemporânea e sustentabilidade.

“O convite para os designers e para os artistas foi justamente de criar algo em relação ao pensamento ecológico, à ecoarte do Krajcberg, que foi o pioneiro. Todos estavam muito motivados. A gente tem resultados incríveis numa bela homenagem ao Krajcberg”, conta Patricia.

 

 

Essa homenagem ao artista é uma excelente ilustração do projeto “Bref” que a curadora desenvolve. "O projeto se chama Bref por ele ser breve e nômade, mas ao mesmo tempo tem o Br de Brasil e F de França”, explica.

Mestres do design brasileiro

Móveis do mestre da madeira José Zanine Caldas (1919-2001) foram os primeiros escolhidos para integrar a exposição. Zanine criou a casa na árvore para o amigo Krajcberg, simbolizando a “relação harmoniosa” do artista com a natureza, acredita a curadora.

Outra peça de destaque é uma versão contemporânea da icônica poltrona “Esfera” de Ricardo Fasanello (1930-1993). As criações do último dos mestres modernistas brasileiros continuam sendo produzidas com novos materiais pela família dele. “Esfera” foi a segunda a poltrona desenhada por Ricardo Fasanello, em 1969, e a versão exposta em Paris foi feita por um neto, com algumas modificações em relação à original.

 

 

“Nós introduzimos a areia na resina e fibra de vidro para dar cor da parte da ‘coquille’ e o couro é um couro de pirarucu, que é um peixe brasileiro que estava em extinção e que hoje está sendo protegido. Esse curtume Cairú, no estado do Rio de Janeiro, tem uma parceria com os índios locais para fazer o manuseio sustentável”, relata Andrea Fasanello, filha do designer.

“É uma versão vintage-contemporânea” que terá uma “edição realmente muito limitada, no máximo 3 ou 4 peças, para comemorar os 30 anos da morte do papai”,

Diálogo com Krajcberg

A arte ecológica de Frans Krajcberg inspirou a ceramista carioca Denise Stewart, que expõe em Paris um conjunto de vasos. “Pensei numa coisa que pudesse transformar em uma peça decorativa, que lembrasse um pouco as ‘Palmeiras’ que ele produzia, aquelas ‘Palmeiras’ com listras”, revela Denise Stewart.

 

 

A ceramista expõe seu trabalho em Paris pela segunda vez e acha muito “bacana essa coisa dos brasileiros estarem aqui, de como o Brasil está andando com essa coisa do design também. Eu acho que tem tudo a ver Brasil e França”.

Mobiliário, objetos decorativos, mas também obras de arte fazem parte da seleção, como “Beyond the Forest” (Além da Floresta), de Fernanda Froes, que denuncia a quase extinção do Pau Brasil, árvore que deu nome ao país.

A artista redescobriu e utiliza “receitas” de tintas de tecido do século 16 extraídas do Pau Brasil para reproduzir uma “floresta utópica, uma floresta que quase não existe mais, porque é uma planta quase extinta, uma planta em perigo”, denuncia.

Fernanda tinge pequenos pedaços “de algodão orgânico e (faz) uma obra como um conjunto de fragmentos do Pau Brasil, reconstruindo o Pau Brasil”.

O resultado é bem colorido, como a copa das árvores de uma floresta. Cada fragmento de tecido traz uma cor diferente porque “dependendo da alcalinidade, a tinta fica mais amarela se for mais ácida, mais roxa se for mais alcalina....”, detalha Fernanda Froes, ressaltando que nenhuma árvore foi derrubada para esse trabalho. Ela só utiliza a tinta extraída da poda do Pau Brasil.

 

Ainda entre as obras em destaque também estão o quadro "À Table" , da artista brasileira Lavinia Góes, radicada em Paris, e a instalação "Colmeia", da ceramista Sandra Arruda, que alerta para o risco de desaparecimento das abelhas.

Lelião

As obras que compõem a exposição The Collector’s House também podem ser adquiridas e no sábado (7) haverá um leilão. A curadora Patricia Monteiro Leclercq diz que parte do benefício será doado para o espaço Frans Krajcberg, criado para administrar as obras legadas pelo artista à prefeitura de Paris em 2002. Ela explica que é importante “doar para uma associação que desenvolve um trabalho incrível com poucos recursos e, principalmente, porque a gente quer muito expandir a obra do Krajcberg, do conhecimento, desse pensamento, na França”

O design brasileiro, que começou a ter destaque internacional com os modernistas, ganha cada vez mais espaço. O público poderá ver a criatividade dos designers contemporâneos brasileiros até o próximo domingo, no espaço Krajcberg que fica no 14° distrito de Paris.

Panteão de Paris recebe exposição sobre história das Paralimpíadas
30 August 2024
Panteão de Paris recebe exposição sobre história das Paralimpíadas

“Histórias Paralímpicas – da integração esportiva à inclusão social”, em cartaz no Panteão de Paris, traz um panorama do fenômeno esportivo paralímpico, desde o seu início até os dias de hoje. A exposição acontece paralelamente aos Jogos Paralímpicos de Paris 2024.

Patrícia Moribe, em Paris

Através de cartazes de época, fotografias de momentos históricos e sequências de filmes, o visitante acompanha o desenvolvimento da prática esportiva para deficientes, desde as primeiras competições, chamadas “hospitalares”, realizadas no hospital de Stoke Mandeville, no Reino Unido, sob supervisão do dr. Ludwig Guttmann, em 1948, passando por Roma, quando acontecem os primeiros Jogos Paralímpicos, em 1960, na ocasião só para cadeirantes, até que progressivamente englobassem todas as pessoas com deficiência, como é o caso hoje.

“É uma exposição que segue um eixo histórico e que busca mostrar a evolução histórica desse movimento esportivo, que nasceu no final da Segunda Guerra Mundial e teve um grande desenvolvimento durante a segunda metade do século 20. E, desde, digamos, os anos 2000, está se tornando cada vez mais mediático, o que não era o caso antes”, explica Anne Marcellini, especialista em sociologia do esporte da Universidade de Lausanne, na Suíça e comissária da exposição, junto com Sylvain Ferez. 

“No início, essa prática esportiva foi imaginada por médicos para ajudar na reabilitação física dos jovens feridos de guerra. Mas, rapidamente, também se consolidou a ideia de que essa reabilitação deveria ajudar esses jovens a retornarem à vida social e profissional”, acrescenta.

“Os impactos dessa evolução se refletem também no nível social, com uma mudança na maneira como o mundo vê a deficiência. Antes dos Jogos Paralímpicos, as pessoas com deficiência viviam mais isoladas, de forma menos visível”, explica Barbara Wollfer, administradora do Panteão. “Essa questão da visibilidade é muito importante. Os Jogos Paralímpicos colocam o corpo em evidência, e essa visibilidade muda a maneira como as pessoas enxergam aqueles em situação de deficiência. Então, uma dimensão muito importante dessa exposição é mostrar isso e ir além da questão puramente esportiva”, acrescenta.

O percurso da exposição foi pensado também para o púbico com deficiência. Além do material visual, há audiodescrições, textos, documentos em Braille e explicações em língua de sinais francesa e internacional. Há próteses e cadeiras de rodas antigas, e suas versões mais modernas. A mostra conta ainda com mascotes dos Jogos e versões de bonecas, como a Barbie, com deficiências.

O imponente edifício Panteão de Paris, no alto do monte Santa Genoveva, no 5° distrito de Paris, foi construído entre 1759 e 1790, a pedido do rei Luís 15. O prédio abriga os restos mortais de grandes figuras da história francesa, como os filósofos Voltaire e Rousseau, o escritor Victor Hugo, a cientista Marie Curie, a artista nascida nos Estados Unidos Josephine Baker, e Simone Veil, sobrevivente do Holocausto e política que defendeu o projeto de lei pelo aborto, em 1974.

“O Panteão é o lugar de reconhecimento dos grandes homens e mulheres da nação. Essas figuras se destacaram especialmente por suas lutas pela emancipação e igualdade”, explica Barbara Wollfer. “Entre esses grandes homens está Louis Braille, o inventor da escrita tátil, que descansa no Panteão desde 1952. Portanto, foi bastante natural organizar essa exposição aqui, pois é também a história de uma luta pela igualdade.

“Histórias Paralímpicas – da integração esportiva à inclusão social”, fica em cartaz no Panteão de Paris até 29 de setembro de 2024.

Com Lana Del Rey e revezamento da tocha, festival Rock en Seine, em Paris, entra na "maturidade"
21 August 2024
Com Lana Del Rey e revezamento da tocha, festival Rock en Seine, em Paris, entra na "maturidade"

Paris se transforma na capital da música a partir desta quarta-feira (21) e é palco até domingo (25) do Rock en Seine, o maior festival da capital francesa e um dos principais da Europa. O evento, que ocorre desde 2003 no Parque de Saint Cloud, no sudoeste de Paris, é um dos poucos a ser realizado no período da Olimpíada e Paralimpíada, mas também entra no clima dos jogos e acolhe até uma das etapas do revezamento da tocha. 

 

Daniella Franco, da RFI 

Para essa 21a edição, o Rock en Seine aposta grande novamente, mantendo o formato de cinco dias de festival, com cinco palcos e cerca de 90 artistas e bandas. No line-up, Lana del Rey - que entra em cena nesta noite - Massive Attack, PJ Harvey, Pixies, Offspring, The Kills, entre tantos outros grandes nomes. 

"Acho que atingimos a nossa maturidade. Tivemos um belo início de vida, despreocupado, com muita vontade. Depois o festival conheceu períodos mais complicados, que podemos considerar como um período adolescente, com tumultos e mudanças que são difíceis de serem aceitas", diz o diretor do Rock en Seine, Matthieu Ducos, em entrevista à RFI. "Mas depois da época da Covid, conseguimos reencontrar um festival com muita força nas propostas artísticas e na coerência delas, chegando à idade adulta, com o encontro também de uma confiança em si mesmo", reitera.

A cada edição, o Rock en Seine se renova, expande a oferta musical e investe também em outros eventos culturais, como exposições, debates, além de projetos voltados para o meio ambiente, inclusão e diversidade. O show do trio americano Gossip, nesta quinta-feira (22) será completamente traduzido em libras e contará com a participação de dois corais inclusivos da grande região parisiense. Essa, aliás, é uma das tantas iniciativas do Rock en Seine neste ano em conexão com a Paralimpíada, com uma programação especial para celebrar os laços e valores comuns entre a música e o esporte. 

"Os Jogos Paralímpicos começam um pouco depois do Rock en Seine e queríamos abraçá-los através de artistas com deficiência que vamos acolher no festival, com demonstrações de esportes paralímpicos que estamos propondo, também por meio de uma grande obra de arte, o streetartist The Blind - que aborda a deficiência visual - além de debates, que realizamos todos os anos e que neste ano vão tratar dos laços entre música e esporte", destaca Ducos.

A tocha paralímpica passará pelo Parque de Saint-Cloud no domingo, entre os shows de PJ Harvey e LCD Soundsystem. Um paratleta e um artista escolhido pelo festival, cujo nome ainda não foi relevado, serão as grandes estrelas de um momento evocado com muita emoção pelo diretor do festival. "Quisemos ter um papel direto nesse espírito olímpico que atravessa o verão na França e, quando nos ofereceram a possibilidade de acolher a tocha, ficamos muito entusiasmados com a ideia de participar de uma etapa do revezamento", celebra Ducos.

Imprevistos e futuro do rock

O Rock en Seine também teve de enfrentar um grande imprevisto: o cancelamento do show do grupo britânico The Smile, que integrava o line-up deste ano do festival e era uma das bandas mais aguardadas. A organização do evento anunciou em 12 de julho que a banda teve de adiar sua turnê europeia por conta de problemas de saúde do guitarrista Jonny Greenwood. Por outro lado, o festival conseguiu rapidamente convocar o icônico quarteto americano Pixies, que sobe no palco principal do Rock en Seine neste domingo. 

Mas apesar de o evento propor neste ano pesos-pesados do rock, Matthieu Ducos destaca jovens artistas que estão revolucionando a cena musical. "Acho que há uma verdadeira renovação com novos grupos de rock. Há seis, sete anos, o rock estava em baixa, mas atualmente há uma nova geração liderada por artistas muito talentosos", observa.

O diretor do Rock en Seine cita The Last Dinner Party, banda formada por cinco garotas britânicas que sobem no palco do Rock en Seine nesta quinta-feira. "Elas são um exemplo excelente de um novo grupo de rock, com uma proposta musical rica, nova e intensa, e com uma performance grandiosa", elogia.

Para Ducos, esse movimento de renovação musical suscita o interesse de jovens pelo rock e mostra um novo universo "com atitude e energia que pode complementar outros estilos". "É isso também que defendemos no Rock en Seine", conclui. 

Olhar de fotógrafas japonesas é destaque no festival Encontros de Arles, no sul da França
08 July 2024
Olhar de fotógrafas japonesas é destaque no festival Encontros de Arles, no sul da França

Os Encontros de Arles, que acontecem no sul da França, voltam a reunir o mundo profissional e amador da fotografia do mundo todo. A programação é eclética e extensa, com uma forte presença feminina, principalmente de japonesas. O Brasil também compareceu em várias vertentes do evento durante a semana profissional, de 1 a 7 de julho. As exposições em Arles podem ser vistas até 29 de setembro.

Patrícia Moribe, enviada especial a Arles

Cristina de Middel, diretora da mítica agência Magnum, ocupa a Igreja dos Irmãos Pregadores com “Viagem ao Centro”, uma espetacular – em vários sentidos – releitura do complexo movimento migratório saindo do México em direção aos Estados Unidos.

Inspirado inicialmente na “Viagem ao Centro da Terra”, de Júlio Verne, a artista mistura ficção, encontros com personagens extraordinários e homenagens visuais a artistas como a fotógrafa mexicana Gabriela Iturbide, permeado de experiências trágicas de vítimas anônimas ou não.

O Japão também é presença marcante, a começar pelo prêmio Woman in Motion, que neste ano homenageia a veterana Ishiuchi Miyako. Através de imagens quase etéreas, fantasmagóricas e poéticas de objetos pessoas, um apanhado de sua obra traz uma imersão na intimidade de pessoas como a própria mãe, Frida Kahlo, e de vítimas da tragédia de Hiroshima. 

Outra mostra que destaca o olhar de fotógrafas japonesas é “Que alegria de vê-las de novo”, com mais de vinte artistas de várias gerações. Em outra exposição, “Réplicas”, fotógrafas e fotógrafos japoneses revisitam a catástrofe de Fukushima, em 2011. Um relato visual emocionante é o de Mayumi Suzuki, que perdeu os pais no desastre. Ela encontrou objetos nos destroços, como a câmera do pai, que também era fotógrafo.  

Arles também revisita a obra seminal e humanista da americana Mary Ellen Keller. Já a francesa Sophie Calle usa uma cripta do centro histórico para expor obras condenadas, ou seja, imagens expostas recentemente no museu Picasso em Paris, mas que foram atingidas no depósito da instituição pelas águas de violentas tempestades. Condenadas à destruição por estarem contaminadas por fungos, a cripta serve como último receptáculo dos trabalhos de Calle. 

Conexão Brasil

O Brasil compareceu em várias seções da semana profissional dos Encontros de Arles. A fotografia brasileira contemporânea na França é cada vez mais presente, principalmente devido à atuação da associação Iandé, fundada por Glaucia Nogueira e Isabelle Brosolette Branco.

A Iandé, que em tupi-guarani quer dizer nós, pronome pessoal inclusive, surgiu como plataforma para dar visibilidade à fotografia brasileira na França. Em 2024, a Iandé fez parte do circuito OFF de Arles, com um espaço próprio, um local de exposição de livros brasileiros e de intercâmbio.

O leque de atuação da Iandé também vem se expandindo. “Agora queremos fazer a ponte entre os profissionais franceses e brasileiros, dos dois lados”, explica Glaucia Nogueira. Foi o que se viu na sexta-feira (5), durante um café da manhã promovido pela associação, reunindo representantes de festivais brasileiros, de instituições francesas e artistas dos dois países, para um contato informal de trocas de muitas ideias. 

“Eu gosto muito dessa ideia de que a França não está restrita apenas à metrópole, mas é capaz de se abrir para territórios ultramarinos, com um forte vínculo com o Brasil”, explicou Erika Negrel, diretora do Réseau Diagonal (Rede Diagonal), que reúne 30 centros fotográficos em toda a França. “Em nossa rede, temos também uma instituição implantada na Guiana Francesa, chamado La Tête dans les images (Cabeça nas Imagens), lembrando que a fronteira mais longa e extensa que compartilhamos com um país, é com o Brasil. São 700 quilômetros de fronteira que nos separam do Brasil”, diz a responsável francesa. “Como rede, temos o desejo de sermos abertos, de nos enriquecermos também com experiências, projetos e de compartilhar ideias com colegas, especialmente no Brasil.”

Livros e encontros

Na feira de livros dos Encontros, Rafael Roncato apresentou “Tropical Trauma Misery Tour”, vencedor em 2023 do Dummy Award, um concurso internacional de projetos de livros de fotografia, antes conhecido como Kassel Dummy Award e que atualmente é outorgado pelo PhotoBookMuseum, de Colônia (Alemanha) e MAS Matbaa, de Istambul (Turquia). O livro de Roncato, uma revisão do fenômeno Bolsonaro, foi sua defesa na tese de mestrado da Academia Real de Haia, na Holanda, onde ele hoje é professor de fotografia.

A primeira semana do festival de Arles também traz uma maratona de encontros reunindo especialistas e fotógrafos do mundo todo para encontros de 20 minutos cronometrados para intercâmbio de ideias. Entre os especialistas, estava João Kulcsár, diretor dos festivais de São Paulo e de Paranapiacaba (SP). Na seção OFF de Arles, muitas leituras de portfólio são organizadas pelas estruturas participantes, entre galerias e revistas.

Ainda no circuito OFF, o fotógrafo Ricardo Tokugawa foi finalista do prêmio revelação Saif x La Kabine, com a série "Travessia".

Em outro evento paralelo, o artista Shinji Nagabe, baseado em Madri, participou da mostra "Embajada", com peças da série Dioramas. 

Festival de Avignon destaca teatro de resistência e lança evento contra extrema direita na França
05 July 2024
Festival de Avignon destaca teatro de resistência e lança evento contra extrema direita na França

Cerca de 1.700 espetáculos. Um total de 25 mil apresentações, em 150 teatros e espaços cênicos. 1320 companhias de teatro, sendo cerca de 160 delas estrangeiras e cerca de 115 mil espectadores na mostra oficial, e mais de 2 milhões de ingressos vendidos no OFF. O Festival de Avignon, dirigido pelo português Tiago Rodrigues, abriu as portas no último dia 29 de junho, mantendo o foco no engajamento político com uma incrível pluralidade de vozes teatrais, no maior evento de artes cênicas do mundo.

Marcia Bechara, enviada especial da RFI a Avignon

Quem abriu o baile em 2024 na prestigiosa Cour d’Honneur do Palacio do Papas, vitrine principal do Festival de Avignon, foi a encenadora espanhola Angélica Liddell, com Dämon, peça que homenageia Ingmar Bergman, trazendo toda a fúria do verbo da espanhola, um verdadeiro convite à rebelião. 

"Descobri Bergman ainda muito jovem na televisão pública espanhola, numa época em que esse tipo de mídia pública ainda era interessante na Espanha, eu devo meu imaginário e minha educação estética a ele e a outros cineastas, e desde pequena percebi que Bergman tinha conseguido colocar palavras para nomear meus sentimentos, e isso me nutriu espiritualmente e esteticamente", contou a performer espanhola, uma veterana do festival.

"Para mim, este testamento de Bergman sobre como deveria ser seu funeral é seu último grande ato estético. Toda rebelião passa pela estética, e não pela mensagem. Efetivamente, essa descrição de Bergman de seu funeral é sua última grande obra, uma escolha estética formidável, e que nos coloca em contato com o grande demônio da vaidade", detalha a diretora, uma provocadora por excelência.

"Arte é coisa de artistas"

Um dos alvos de Angélica Liddell na peça é, assim como Ingmar Bergman, os críticos. "Compartilho com ele esse ódio aos críticos. Minha obra é uma bofetada, que não posso dar fisicamente porque me denunciariam. Mas eu gostaria de confrontar toda essa gente que me insultou banal e impunemente, cara a cara, e dar-lhes uma bofetada. A arte é coisa de artistas, os críticos são arcaicos e chegam a ser, em determinado momento, uma coisa daninha para a arte", disparou Lidell.

O coreógrafo francês Boris Charmatz, hoje à frente da companhia de Pina Bausch, na Alemanha, falou sua participação como artista-cúmplice da edição 2024 do Festival de Avignon. "Essa cumplicidade está ligada a esta direção do festival de Tiago Rodrigues e sua equipe, e nasceu no momento em que Tiago se mudava para Avignon, enquanto cidadão português, convidado a assumir um posto importante na França, e eu chegava a Wuppertal, na Alemanha", declarou.

"Não se trata de um exílio, mas de se juntar a instituições muito vivas, mas, ao mesmo tempo, cheias de histórias, lendas e mitos. Essa cumplicidade nasceu então desse entrelaçamento entre passado, presente e futuro, uma vez que estamos aqui para inventar, improvisar e talvez desenhar caminhos de esperança nestas narrativas de fim do mundo que nos angustiam a todos", disse Charmatz, que apresentou Cercles, com foco no "círculo", um formato cênico que sempre assombrou a memória da dança, seja ela tradicional ou moderna, clássica ou contemporânea. 

Já o diretor do festival, Tiago Rodrigues, explicou a escolha de revisitar uma tragédia de Eurípides em Hécuba, não Hécuba, espetáculo que estreou no Festival de Avignon 2024. "Eurípides é o trágico mais progressista, aquele que coloca em questão o divino, transforma o divino em simbólico e responsabiliza os humanos por suas escolhas", diz o diretor.

"Ele introduz hesitação e uma quase psicologia nos diálogos, e sobretudo continua uma linhagem de Ésquilo e de Sófocles de olhar para o 'outro', seja o estrangeiro, seja a mulher – porque em Atenas, há 2.500 anos, a mulher era o 'outro', e não tinha acesso à tragédia, seja no palco, seja na plateia", sublinhou.

"O que ele nos propõe é algo fundamental hoje, falando de lei, falando de justiça, de vingança. Hécuba, rainha de Troia, agora transformada em escrava, uma mulher estrangeira, uma troiana, que perdeu a guerra contra os gregos, uma escrava, mais velha, e zangada, quer justiça para seu filho, morto sob a proteção de um suposto aliado", destacou Rodrigues. "Ela é madura, não é aquela heroína trágica jovem como Ifigênia ou Antígona, idealizada", aponta o diretor.

"Uma mulher ferida que exige justiça, Hécuba também é um símbolo político. Essa dimensão sempre me fascinou e atinge seu clímax em uma peça sobre a aceitação da vulnerabilidade pela sociedade", diz o diretor, na apresentação da peça. "Quando um artista diz Shakespeare ou Molière, ele está reescrevendo ou traduzindo Shakespeare, ou Molière. É um exercício de imaginação. A vida dos artistas de teatro é repleta de experiências. Há uma porosidade entre atores e atrizes, suas vidas e suas interpretações das palavras que interpretam", acredita Rodrigues.

Contra a extrema direita

Inspirado também por esse pacto euripidiano, o diretor Tiago Rodrigues irrompeu a cena da Carrière de Boulbon, nos arredores de Avignon, depois da estreia de Hécube, pas Hécube, no dia 30 de junho, após ser confirmada a vitória da coligação comandada por Marine Le Pen e Jodan Bardella nas eleições legislativas antecipadas da França, para convocar a coletividade presente a participar do evento La nuit d'Avignon (A noite de Avignon), uma iniciativa cidadã do festival para lutar contra "a ameaça da extrema direita" no país.

"Fiel a seus valores fundadores, e convencido que outro projeto de sociedade progressista, popular, democrática, republicana, feminista, ecologista e antirracista é desejável, o Festival de Avignon, convocando o público a se unir à Noite de Avignon, deseja encarnar o lugar vital do debate social e político”, diz o texto do evento, que acontecerá a portas abertas e gratuitamente nos dias 4 e 5 de julho no Palácio dos Papas, vitrine principal do festival, com a presença de vários artistas convidados.

Festival de Avignon 2024 fica em cartaz no sul da França até o dia 21 de julho.

'Desfile Solidário' de estilista brasileira em Paris mostra criações com meias recicladas
28 June 2024
'Desfile Solidário' de estilista brasileira em Paris mostra criações com meias recicladas

A estilista franco-brasileira Márcia de Carvalho apresentou sua mais nova coleção no "Desfile Solidário “Baguette magique” (Varinha de Condão, em português), na sub-prefeitura do 18° distrito de Paris. Suas criações têm origem no trabalho desenvolvido com sua associação, que alia moda, inserção social e desenvolvimento sustentável. 

O salão principal e as escadarias do imponente edifício do século 19, situado ao norte da capital francesa, foram o cenário para apresentar o novo trabalho da estilista nascida em São Paulo e que fez carreira na França. 

“A ‘varinha de condão’ é um objeto que lembra nossa infância, a possibilidade de transformar qualquer coisa em outra coisa que a gente sonha", destaca a estilista ao falar do tema escolhido para o desfile. "“Essa é alma das nossas ações. No plano do meio ambiente, transformar o inútil, dar uma segunda vida. Mas também transformar o que é menos belo em extraordinário. E dar a mão para as pessoas que estão precisando passar para outra etapa da vida”, acrescenta.

Márcia de Carvalho é fundadora da Associação Meias Órfãs, que associa moda e economia circular, social e solidária. A ONG, criada em 2008, transforma meias usadas em fios e tecidos que mobilizam uma cadeia de produção envolvendo uma população de baixa renda.

“A primeira etapa é sempre a coleta de meias, que a gente faz com empresas parceiras e também com várias instituições. Depois vem toda a parte de transformação dessas meias em fio. E uma vez que temos um fio que é a base do têxtil, transformamos em tecido, em malha, e depois em roupas e acessórios”, explica.  

Tricotado, tecido, nós de macramé ou bordados fazem parte das diversas criações das peças e acessórios. O 'Desfile Solidário' foi concebido em várias temáticas, que buscaram valorizar o trabalho de criação e também mostrar a evolução técnica dos últimos 15 anos da transformação das meias.

“Tem uma parte que chamo de upcycling que é o uso da matéria-prima reciclada, mas sem  uma transformação industrial. Depois tem a produção mais industrializada, que é a transformação em fibra e depois em tecido. E também tem impressões e estampas feitas feita a partir de pedacinhos de meias”, explica a estilista.

Em ano de Jogos Olímpicos e Paralímpicos, o evento esportivo inspirou a estilista, que procurou mostrar na coleção um pouco da evolução da moda esportiva e também do trabalho envolvendo crianças e adolescentes do bairro da Goutte D’Or, onde fica seu ateliê na capital francesa. “Eles escolheram seus esportes preferidos, como basquete, tênis, natação, e trabalharam na criação de pequenos quadros e estampas para camisetas”, conta.

Na passarela montada para exibir suas criações, desfilaram modelos não profissionais, manequins com deficiências, diferentes gerações, religiões e classes sociais. Essa diversidade reivindicada pela estilista. “Eu convido pessoas para desfilarem que sejam de todos os horizontes, idades, formas físicas. Enfim, a diversidade que existe na sociedade. É todo mundo junto para mostrar que esse conjunto de 'diferentes' faz uma coisa muito harmoniosa”.

Com o apoio de algumas empresas privadas e públicas e associações caritativas, o desfile anual da estilista é a ocasião para dar visibilidade não apenas às suas criações, mas ao trabalho da Associação Meias Órfãs e seus projetos de formação profissional e inserção social em um contexto de produção e consumo sustentáveis.

“O desfile é realmente para mim um sonho, porque eu posso colocar em ação tudo que eu gosto em termos de criação de arte, música, pintura e o desenho. E para mim o que também é muito incrível é a relação com as pessoas. Nesse momento, o ateliê está cheio. Nós somos uns 15 trabalhando juntos. O trabalho pode ser  difícil, mas pode ser também um prazer tão grande e te deixar feliz da vida. Eu faria isso todo dia”, conclui.