Rendez-vous cultural
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Reportagens sobre exposições, concertos e espetáculos na França. Destaque para os artistas brasileiros e suas criações apresentadas na Europa. Na literatura, lançamentos e as principais feiras de livros do mundo.

Pintora francesa Suzanne Valadon revolucionou representação feminina, na vida e na arte
31 January 2025
Pintora francesa Suzanne Valadon revolucionou representação feminina, na vida e na arte

"Eu desenhei loucamente para que, quando não tivesse mais olhos, pudesse enxergar com as pontas dos dedos." A frase é de Suzanne Valadon, artista pioneira que desafiou convenções em sua vida e obra, e que agora ganha uma grande retrospectiva no Centro Pompidou de Paris. Anticonformista por natureza, Valadon demolia regras – inclusive ao pintar escandalosos nus masculinos, algo impensável para sua época. 

Filha de pai desconhecido e criada no ambiente boêmio e popular de Montmartre do início do século 20, Suzanne Valadon começou trabalhando como modelo para grandes nomes da pintura da época, como Toulouse-Lautrec e Renoir. Mas ela não se contentou em ser apenas musa e conquistou seu espaço como artista reconhecida nesse meio eminentemente masculino. Valadon desafiou constantemente as normas sociais e artísticas de sua época. De origem modesta e filha de uma lavadeira, ela lutou para conquistar um lugar para si no mundo da arte, apesar dos preconceitos associados ao fato de ser mulher e às suas origens.

Nathalie Ernoult, curadora da exposição no Centro Pompidou de Paris, fala sobre o começo de sua carreira em Montmartre. "Ao chegar em Paris, Suzanne Valadon trabalhou em diversos pequenos empregos para se sustentar e ajudar sua mãe, mas essas ocupações eram mal remuneradas. Foi então que lhe sugeriram se tornar modelo, uma atividade mais bem paga na época. Em Montmartre, onde existia um verdadeiro 'mercado de modelos', ela rapidamente chamou a atenção dos maiores artistas do século 19, como Puvis de Chavannes, Renoir e Toulouse-Lautrec. Para Suzanne, posar como modelo não representava apenas uma imersão no mundo da arte que marcaria profundamente seu destino, mas uma verdadeira oportunidade financeira. Ser modelo para ela significava ganhar mais dinheiro", precisa Ernoult.

Autodidata e filha de uma lavadeira

Ela se reinventou e forjou sua identidade mudando seu primeiro nome (de Marie-Clémentine para Suzanne). Desde muito jovem, não se conformou com as expectativas tradicionais das mulheres de sua época, como conta Flore Mongin, autora de uma biografia sobre a artista. "Marie-Clémentine Valadon, futura Suzanne Valadon, chegou a Paris aos 5 anos com sua mãe, em um ambiente popular marcado pela miséria. Criada sozinha pela mãe lavadeira, ela cresceu em Montmartre, um bairro vibrante de Paris, que foi um terreno fértil para o seu desenvolvimento. Desde a infância, demonstrou uma personalidade forte e um gosto acentuado pelo desenho, características que se tornariam centrais em sua trajetória artística. Montmartre, com sua efervescência cultural, foi o cenário de sua evolução, moldando a mulher e a artista que ela se tornaria, da infância à adolescência", afirma a escritora.

Suas representações das mulheres romperam com os clichês da época, mostrando corpos naturais e não idealizados em poses cotidianas, como detalha a curadora da mostra, que fala sobre uma de suas obras mais transgressoras, a "Odalisca". Suzanne Valadon "revisita e transgride o modelo clássico da odalisca em uma de suas obras-primas. Diferentemente da odalisca tradicional, frequentemente retratada nua e em uma postura sensual, seu modelo aqui está vestido, usando um pijama descontraído, com calças listradas e uma regata", contextualiza.

"A mulher fuma um cigarro, com livros displicentemente colocados ao seu lado, e sua expressão é séria, distante de qualquer sugestão de sedução. Valadon apresenta aqui a imagem de uma mulher livre e moderna dos anos 20, rompendo completamente com o arquétipo das odaliscas idealizadas. Tendo sido ela mesma modelo e posado para nus reclinados, Valadon conhecia profundamente a forma como os pintores representavam e objetificavam o corpo feminino. Com essa pintura, ela oferece uma visão radicalmente diferente", sublinha a especialista do Pompidou.

"Você é uma de nós": o apoio de Degas

Mas é o impressionista Edgar Degas, o artista mais importante do grupo de Montmartre na época, quem vai desempenhar um papel-chave na vida de Suzanne Valadon, como relata a curadora da mostra, Nathalie Ernoult. "Com os recursos que tinha à disposição, Suzanne Valadon desenhava sem cessar, em qualquer lugar que pudesse. Enquanto posava como modelo, observava atentamente os artistas ao seu redor, analisando suas técnicas de pintura e esboço. Dotada de um grande senso de observação e de uma memória visual impressionante, ela aprendeu a desenhar quase instintivamente, de forma autodidata", lembra.

"Um dia, ela teve a coragem de mostrar seus desenhos a Bartholomé e Toulouse-Lautrec, que imediatamente reconheceram seu talento. Lautrec a incentivou fortemente a apresentar seu trabalho a Edgar Degas, encontro que marcaria uma virada decisiva em sua carreira artística. Degas, que era uma figura central da época, se tornaria mais tarde um de seus maiores apoiadores e mentores", destaca. Foi Edgar Degas quem reconheceu seu talento, comprou seus desenhos e disse: "Você é uma de nós."

Entre os amores escandalosos que Suzanne nunca escondeu, figura uma relação relâmpago com Eric Satie, como conta a biógrafa da artista. "Sim, Montmartre era um lugar propício para os amores, e de fato Eric Satie ficou muito apaixonado. Ele foi um amor transitório de Suzanne Valadon e também um amante passageiro, já que a história deles não durou muito tempo. Eram duas personalidades muito fortes que não estavam necessariamente destinadas a se entender", conta Flore Mongin.

Apesar do reconhecimento, Valadon enfrentou muitos desafios. Ela foi recusada por não ter um "mestre" reconhecido na Escola de Belas Artes de Paris. E mesmo quando começou a pintar, sua ousadia escandalizava – como no caso de "Adão e Eva", onde retratou seu jovem amante nu a seu lado.

Com a exposição no Centro Pompidou de Paris, até o dia 26 de maio de 2025, e os novos livros dedicados a ela, Suzanne Valadon finalmente sai do esquecimento para ocupar o lugar que merece na história da arte.

Artista brasileira expõe em Paris obras inspiradas no combate de Frans Krajcberg
24 January 2025
Artista brasileira expõe em Paris obras inspiradas no combate de Frans Krajcberg

Radicada na França desde 1986, a brasileira Janice Melhem Santos expõe “Hors-Sol”, uma meditação pictórica sobre a natureza, inspirada pelo espírito eco-militante de Frans Krajcberg. A exposição pode ser vista até 22 de fevereiro, em Paris.

Patrícia Moribe, em Paris

A exposição “Hors-Sol” acontece no espaço Frans Krajcberg (1921-2017), fincado em uma simpática vila arborizada, escondida do burburinho próximo da enorme estação de Montparnasse. Era nessa ruela que Krajcberg mantinha um estúdio em Paris. O espaço com o nome do artista foi inaugurado em 2004.

A exposição permanente traz várias obras que o artista doou à prefeitura de Paris, acompanhando sua trajetória pelo mundo, começando pela fuga da perseguição aos judeus em sua Polônia natal, passando por Paris e finalmente se apaixonando pela natureza em perigo do Brasil.

“Hors sol” quer dizer, ao pé da letra, fora do solo. “Tive a ideia de dar esse título à série e à exposição porque remetia a outras situações, como a minha própria situação de ser, de estar fora do meu país, e a situação do Krajcberg de ter saído também do país dele e ser uma pessoa fora do solo”, explica a artista.

Janice lembra também que Krajcberg tinha uma casa nas arvores, em Nova Viçosa (BA). Ela faz um paralelo com uma casa em malha de metal, exposta em Paris, uma maquete em malha de metal, suspensa no ar e batizada de Héstia. “É a deusa do lar na mitologia grega. É uma casa, mas que não tem base. É a casa que você pode levar em qualquer lugar que você está, porque o seu lar é o que você carrega em você. Não é a casa que você mora, mas ela simboliza isso em uma dentro da outra e dentro da outra. Assim como nós sempre guardamos fases, e pedaços até formar o nosso lar interno”, relata.

Ao longo dos anos, a artista cruzou o caminho de Krajcberg algumas vezes. Em 2010, ele visitou uma exposição de Melhem em Brasília. “Eu tenho a fotografia dele olhando para esse trabalho e eu sei que ele apreciou. Ele não era uma pessoa de fazer grandes elogios e tudo, mas quando ele apreciava, ele ficava. E essa presença dele para mim era importante”, explica.  

“A obra do Krajcberg mostra essa destruição que está sendo feita, mas ele transforma em obra de arte as raízes que estavam sendo queimadas e tudo isso que a gente vê aqui, que é incrível. “De um lado temos aqui a obra de Krajcberg, do outro lado, uma exposição que cumpre o seu objetivo, o de trazer artistas que têm uma relação com o Krajcberg ou que trabalham diretamente ligados com o meio ambiente, a proteção da natureza, das minorias.”

Arte pop e suas vertentes é tema de mostra na Fundação Louis Vuitton, em Paris
17 January 2025
Arte pop e suas vertentes é tema de mostra na Fundação Louis Vuitton, em Paris

A Fundação Louis Vuitton, de Paris, apresenta a mostra “Pop Forever”. A exposição revisita a corrente artística que surgiu nos anos 1950, com raízes no dadaísmo, e destaca a obra do norte-americano Tom Wesselman.

Patrícia Moribe, em Paris

Sem manifesto e sem fronteiras, o pop foi uma das correntes artísticas mais importantes do século 20 e sua influência continua forte nas artes plásticas e na música até hoje. As cores, o psicodelismo, o objeto cotidiano como fonte de inspiração, a sensualidade e o absurdo são elementos recorrentes.

Quem pensa em pop, pensa em Andy Warhol. Ele era o rei em uma Nova York efervescente, onde tudo era possível. Em seu espaço antológico, The Factory, flanavam intelectuais, dramaturgos, drag queens, artistas sem-teto, celebridades de Hollywood e milionários. Ele teria cunhado a frase de que no futuro todos seriam famosos por 15 minutos – e depois cairiam no esquecimento. Um dos quadros mais famosos de Warhol, um silkscreen da série retratando Marilyn Monroe está na exposição.

Mas o fio condutor da exposição é a obra de Tom Wesselman (1931-2004), que morreu em 2004 aos 73 anos.

“É uma exposição dupla, pois é, ao mesmo tempo, uma retrospectiva dedicada a este artista, Tom Wesselmann, que é considerado um dos pais fundadores do movimento pop”, explica Oliver Michelon, um dos curadores. “Mas também é uma exposição dedicada à arte pop, já que é, no fim das contas, uma leitura do pop a partir da obra de Tom Wesselmann e uma interpretação um pouco mais ampla do pop, já que vamos abordar as origens do movimento, por volta de 1960, até os dias de hoje”, acrescenta.

“Tom Wesselmann, junto com Roy Lichtenstein, Andy Warhol e James Rosenquist, é uma das primeiras grandes figuras do pop”, relata o curador. “Ou seja, ele aparece na cena artística de Nova York no começo dos anos 60 com obras que mostram objetos de consumo cotidiano, formas vibrantes, enfim, que fazem a arte passar para uma nova dimensão ao se apropriar da cultura popular. É uma espécie de detonador do pop. Desde o começo dos anos 1960 até o meio da década, e depois, obviamente, sua obra também evolui.”

A mostra reúne 150 pinturas e trabalhos com técnicas mistas do artista. Há também 70 obras de outros nomes do pop, além de Andy Warhol, como os recordes de quadrinhos de Roy Lichtenstein, a releitura da bandeira norte-americana de Jasper Johns e as bolinhas de Yayoi Kusama.

O projeto levou cerca de dois anos para ser concretizado e teve dois curadores convidados, Dieter Buchhart e Anna Karina Hofbauer. “Nunca é fácil conseguir os empréstimos, ainda mais de artistas excepcionais como é o caso”, diz Michelon. “Também pudemos contar com o apoio generoso da família Wesselman, que nos emprestou muitas peças.”

O diálogo do pop acontece com artistas contemporâneos, como Jeff Koons e Ai Weiwei, além da nova geração representada por Derrick Adams, Tomokasu Matsuyama e Mickalene Thomas, que criaram peças especialmente para a exibição.

“Pop Forever” fica em cartaz na Fundação Louis Vuitton até 24 de fevereiro de 2025.  

Artista brasileiro Ernesto Neto redimensiona mito da serpente em instalações monumentais em Paris
10 January 2025
Artista brasileiro Ernesto Neto redimensiona mito da serpente em instalações monumentais em Paris

Da encarnação do mal nas mitologias judaico-cristãs à ideia de sabedoria e regeneração presente nas cosmogonias mesoamericanas, hindus, africanas e nórdicas, passando por suas representações nas culturas aborígenes e asiáticas, o artista Ernesto Neto desconstrói e redimensiona o mito da serpente em instalações monumentais para a loja de departamentos Le Bon Marché. "Filho de Lygia Clark" e "neto de Brancusi", o brasileiro traz pimentas, perfumes e cantos de inspiração indígena para o coração de Paris.

Em sua 10ª exposição, Le Bon Marché Rive Gauche, uma das mais tradicionais lojas de departamentos de Paris, homenageia o artista brasileiro Ernesto Neto, que criou instalações monumentais especialmente para a mostra Le La Serpent, ou O A Serpente. Conhecido internacionalmente por suas obras biomórficas, ele realiza uma digressão poética sobre um dos mitos fundadores da humanidade na cultura ocidental, enaltecendo o papel da Serpente, entrelaçada às figuras de Eva e Adão.

"Eu não vejo isso como uma história da Bíblia. Vejo como uma história do Ocidente", argumenta Ernesto Neto. "Esse mito original, o mito da Gênesis, que vem da Torá e que faz parte da Bíblia, tem uma leitura que me tocou muito. Foi há uns dez anos, quando eu tive uma revelação: se a serpente não tivesse falado com Eva, levando aquela conversa 'de mulher para mulher', oferecendo a ideia de Eva compartilhar a fruta divina com Adão, eles estariam até hoje no Paraíso", sublinha o artista brasileiro, que será um dos destaques do ano do Brasil na França, em 2025 .

"Não seria lindo? Adãozinho e Evinha lá, curtindo a vida no Paraíso... E nós, onde estaríamos? Não estaríamos aqui. Não existiria eu, você, a Rádio France, Le Bon Marché, o Museu de Arte, a alegria, a tristeza, nem a guerra. Não haveria sofrimento, mas a vida é isso tudo", provoca Neto. 

O artista subverte a visão ocidental que lê a serpente como um elemento maléfico. "Eu não acredito na ideia de queda do Paraíso. Isso, para mim, é uma invenção, um equívoco. A única coisa realmente importante nesse mito, na minha visão, é que a serpente é a nossa mãe, o nosso pai. Assim como em várias histórias ancestrais ao redor do mundo", diz o artista, que encomendou uma pesquisa a seu amigo e antigo colaborador Pedro Luz sobre como o animal mítico é visto em diferentes culturas, como na Ásia, África, Oceania, Polinésia, América do Sul, Central e do Norte.

"Em todos esses lugares, a serpente é uma figura positiva, associada à criação, à vida. No catálogo da exposição, incluímos textos do Joseph Campbell, um dos maiores estudiosos das mitologias, que traz conexões entre essas culturas", aponta Neto. "Ele fala da ideia de que a vida é feita de vida, que tudo que comemos está vivo, criando um ciclo de retroalimentação. A morte é necessária e parte da vida", afirma.

Muito além do bem e do mal

Realizadas nos ateliês do artista, as obras se distanciam da interpretação do pecado original, que considera o animal como diabólico. Le La Serpent é uma alegoria do vivo que não separa a natureza da cultura, ou o homem do animal. Ernesto Neto propõe uma imersão sensorial e multicultural, desafiando crenças e narrativas presentes em várias mitologias mundiais.

"Eu sempre tento trazer uma continuidade entre o nosso corpo e o corpo da Terra", diz o artista, cuja obra ecoa preocupações iminentes ligadas às mudanças climaticas e ao Meio Ambiente. "Quando vemos a Terra como paisagem, colocamos ela fora de nós. Nós nos tornamos observadores. A ciência faz isso. Mas, quando falamos que a Terra é o corpo, começamos a perceber que somos parte do corpo da Terra, assim como a Terra é parte de nós. Não estamos separados dela. Estamos todos conectados", insiste.

Crochê, DNA e especiarias: o tempero brasileiro de Ernesto Neto

"Trabalhamos com crochê, utilizando algodão como material base. A serpente, por exemplo, possui elementos simbólicos muito fortes. As cores da obra foram obtidas através de tingimentos naturais, como chá preto para o tom bege, e Jatobá e casca de cebola para o marrom", explica o artista. "Esses métodos nos conectam à energia da Terra, oferecendo uma experiência sensorial mais rica em comparação aos tingimentos sintéticos. A ideia foi também trazer à tona uma representação de Adão e Eva com tonalidades mais escuras, refletindo as origens africanas desses personagens", afirma Neto.

"Outros materiais, como tampinhas de refrigerantes, são inseridos como símbolos de transformação e renovação, muito presentes em culturas indígenas, como os Ashaninka [povo indígena da Amazônia peruana]. Além disso, elas fazem parte da proposta de integrar arte e sustentabilidade, trazendo à tona a ideia de que tudo pode ser reimaginado e reintegrado ao ciclo da natureza", detalha.

"A serpente é um símbolo poderoso que atravessa várias culturas, e estudei muito a fundo sua presença tanto no xamanismo quanto em mitologias ancestrais. Um antropólogo chamado Jeremy Narby, por exemplo, explorou a conexão entre as serpentes e o DNA, mostrando como elas representam a espiral da vida e a conexão entre o mundo superior e inferior", aponta Neto.

Brasil "colônia"

"Eu venho de um país colonizado", diz. "O Brasil ainda carrega as marcas da colonização de forma muito sutil, mas presente. A estrutura econômica continua sendo voltada para a exportação de recursos naturais como petróleo, soja e minério, de maneira muito similar ao que acontecia com o açúcar, ouro e café no passado. Apesar de estarmos no século 21, seguimos com um modelo econômico que favorece a exploração em vez de investir em áreas como educação e cultura", contesta o artista. 

Perguntado sobre que obra traria para o Grand Palais, em Paris, para o ano do Brasil na França em 2025, o artista antecipa algumas pistas sobre o trabalho escolhido. "O Barco Tambor Terra é uma escultura que fizemos no ano passado, apresentada no Museu de Arte, Arquitetura e Tecnologia em Lisboa. A ideia é que o barco, simbolizando a jornada, navegue de volta para o Brasil, carregando a energia do tambor, que representa a força vital da Terra. Este projeto é uma celebração dos tambores de diversas partes do mundo — Ásia, África, Europa e América. Estamos trabalhando com muito carinho para que ele chegue aqui, apesar dos desafios de atravessar o mar", afirma Neto.

"A proposta é refletir sobre a conexão do ser humano com a Terra e uns com os outros. O tambor, uma mistura de tronco de árvore e pele de animal, simboliza a união entre o vegetal e o animal, e é uma maneira de nos sintonizarmos com a energia da Terra. A filosofia africana, que valoriza a união e a força coletiva, é uma inspiração importante aqui. A ideia não é simplesmente onde estamos indo, mas como estamos juntos nessa jornada, tocando o tambor e nos conectando", conclui o artista.

A exposição Le La Serpent fica em cartaz no Le Bon Marché Rive Gauche de 11 de janeiro até 23 de fevereiro de 2025.

Filme 'Ainda Estou Aqui' e mostra de Tarsila do Amaral são destaques culturais de 2024 na França
27 December 2024
Filme 'Ainda Estou Aqui' e mostra de Tarsila do Amaral são destaques culturais de 2024 na França

O filme “Ainda Estou Aqui”, de Walter Salles, é um dos grandes destaques de 2024. O longa passou pela França, primeiro no festival latino americano de Biarritz, e depois em pré-estreia em Paris. Nas artes plásticas, a retrospectiva dedicada a Tarsila do Amaral, no museu de Luxemburgo, em Paris, é um franco sucesso.

O filme “Ainda Estou Aqui”, de Walter Salles Júnior, baseado no livro de Marcelo Rubens Paiva, está fazendo história. Sucesso de bilheteria no Brasil, o longa concorre ao Globo de Ouro nas categorias melhor filme em língua não inglesa e para melhor atriz – Fernanda Torres.

A trama se concentra em Eunice Paiva, cujo marido, o deputado Rubens Paiva, é preso, torturado e assassinado pela ditadura. Sua vida de dona de casa com cinco filhos com um marido desaparecido toma outro rumo. Ela se forma em Direito aos 47 anos e passa a defender direitos humanos das vítimas da ditadura e seus familiares.

Fernanda Torres vive Eunice Paiva em uma atuação de elogios unânimes. Fernanda Torres, sua mãe na vida real, é Eunice no final da vida, com Alzheimer. Há 25 anos, Montenegro concorria ao Oscar de melhor atriz por seu trabalho em Central do Brasil, do mesmo Walter Salles. Agora, a torcida é grande para que Torres também seja indicada. A Academia de Cinema anuncia os candidatos à estatueta em janeiro. Outra feliz coincidência é que Fernanda Torres estava no primeiro longa de Salles, “Terra Estrangeira”, de 1995. Ela, aliás, foi prêmio de melhor atriz em Cannes, por “Eu Sempre Vou te Amar”, de Arnaldo Jabor, em 1986.

"Eu tive a sorte de conhecer essa família quando eu tinha 13 anos", conta Walter Salles. "Eles tinham vindo de São Paulo e alugado uma casa no Rio. Eu voltava de cinco anos na França, onde tinha vivido de 1964 a 1969. Então, quando eu voltei para o Brasil, voltei para um país sob a ditadura militar, onde havia censura, um país onde eu me sentia bastante perdido. E, através de uma amiga, acabei conhecendo os cinco filhos da família Paiva".

"Na casa deles, pulsava um outro país, que era quase o contracampo do país da ditadura e onde a discussão sobre política era livre e acalorada, onde tocava o tempo inteiro música brasileira", lembra o cineasta. "A gente tem que lembrar que Gilberto Gil e Caetano Veloso estavam exilados naquele momento. Então, poder ouvi-los já era algo bastante excepcional. Isso me abriu um mundo novo. Todas essas informações culturais foram se somando e eu fui formado, em grande parte, pelo cinema e, de alguma forma, pela convivência nessa casa."  

Walter Salles foi entrevistado pela RFI em Biarritz.

Retrospectiva de Tarsila

Nas artes plásticas, o destaque vai para “Tarsila do Amaral, Pintar o Brasil Moderno”, no museu do Luxemburgo, em Paris.

Com 150 obras, a exposição vem preencher uma lacuna e resgatar a história de Tarsila do Amaral (nascida em 1886-1973) com a França. A pintora paulista morou na capital francesa no início dos anos 1920, ao lado do então marido Oswald de Andrade (1890-1954).

A retrospectiva parisiense acontece quase cem anos após a primeira mostra individual que revelou Tarsila do Amaral em Paris, em 1926. “O motivo dessa exposição é justamente valorizar essa artista que foi muito parisiense naquela época e foi esquecida”, disse a curadora da mostra, Cecília Braschi, em entrevista a Adriana Brandão, em Paris. 

A pintora chegou a fazer uma segunda exposição parisiense em 1928, sempre com muito sucesso, e vendeu seu primeiro quadro para um museu, a tela “A Cuca” que pertence ao fundo francês de artes plásticas.

Em Paris, Oswald lançou o Manifesto Pau Brasil em 1925, que precedeu o famoso Manifesto Antropofágico de 1928. Os dois manifestos foram ilustrados por Tarsila do Amaral. Cecília Branski ressalta que a participação da pintora foi muito além e que ela ajudou a criar movimento.

“Eles são totalmente complementares na pintura e literatura. Mas dá para ver, simplesmente pelas datas das obras, que Oswald se inspirou nas obras da Tarsila. O movimento antropofágico também nasceu inspirado na obra mais conhecida dela, o Abaporu”, lembra. O quadro que pertence ao Museu de Arte Latino-Americana de Buenos Aires não integra essa retrospectiva parisiense. A curadora tentou negociar, mas não conseguiu o empréstimo.

A RFI entrevistou em 2024 muitos artistas e intelectuais brasileiros como a escritora e jornalista Eliane Brum, o ator Antonio Pitanga, os músicos Armandinho Macêdo e Jards Macalé, além do cineasta Karim Ainouz e a diretora de teatro Cristiane Jatahy, entre outros.

Única bailarina brasileira na Ópera de Paris fará seus primeiros solos no clássico ‘Paquita’
20 December 2024
Única bailarina brasileira na Ópera de Paris fará seus primeiros solos no clássico ‘Paquita’

Luciana Sagioro, de 18 anos, a primeira bailarina de nacionalidade brasileira a integrar o balé da Ópera de Paris, terá seus primeiros solos no espetáculo 'Paquita', em cartaz na Ópera Bastilha até o dia 4 de janeiro de 2025. Natural de Juiz de Fora, ela entrou para o corpo de baile - com contrato profissional vitalício até sua aposentadoria - no cargo de base Quadrille. Mas em menos de um ano, Luciana foi promovida à Coryphées, se destacando mais uma vez.

Luiza Ramos, de Paris

A primeira e, até hoje, única brasileira a ingressar na equipe de dançarinos na história do balé da Ópera de Paris foi recentemente promovida e fará seus primeiros solos no clássico 'Paquita', em cartaz na Ópera Bastilha. O espetáculo, criado na própria Ópera de Paris em 1846, faz sucesso devido as suas danças alegres e por ser um balé em que os dançarinos se manifestam por gestos e mímicas.

Foi dançando um trecho de 'Paquita' que Luciana Sagioro venceu o concurso Prix de Lausanne, em 2022, aos 16 anos, quando conquistou uma vaga na prestigiada Escola de balé parisiense. Em 2024, ela foi contratada para o corpo de baile no cargo chamado Quadrille. Em menos de um ano, Luciana já foi promovida à Coryphée, se destacando mais uma vez.  

Como Coryphée, Luciana terá mais destaques no corpo de baile, e por isso, alcançou a possibilidade de realizar alguns solos em 'Paquita' - nos dias 23 e 30 de dezembro e no dia 3 de janeiro.

“A Ópera de Paris são 154 bailarinos. Somos muitos e todos muito bons, todos com uma grande excelência. Eu sempre soube que eu tinha minhas qualidades e que eu queria muito ser promovida de ano em ano, de temporada em temporada, para continuar a minha progressão. Mas eu sabia que seria muito difícil com a qualidade de todas as bailarinas do corpo de baile”, reconhece a jovem.

“Eu precisei realmente trabalhar muito para isso. Não é muito comum, no primeiro ano de trabalho, já conseguir ser promovida. Então realmente eu sou muito grata por isso. Mas tudo foi pago com muito trabalho, então eu sei que eu fiz muito para chegar lá”, acredita a dançarina.

A carreira de bailarina

Na progressão profissional na Ópera de Paris após o Coryphée vêm os Sujets, que são os solistas fixos. Depois, o profissional da dança pode ser promovido a Primeiro Bailarino ou Primeira Bailarina, que fazem os papéis principais dos espetáculos. Por último, o mais alto cargo da companhia, conhecido como Étoile - a Estrela -, ao contrário dos outros cargos, não passa por concurso, e sim por nomeação da diretoria da instituição. 

Luciana, que estuda balé desde os 3 anos de idade, convenceu seus pais a se mudar para o Rio de Janeiro aos 10 anos com a babá para se profissionalizar em dança. A jovem mora há três anos na capital francesa, enquanto seus pais e suas duas irmãs gêmeas mais novas continuam em Juiz de Fora. Ela, que afirma ter “um orgulho enorme de ser brasileira”, desde criança abdicou do convívio com a família pelo sonho da profissão de bailarina, que lamenta não poder ser vivido no seu país.

“Infelizmente, hoje, como bailarina, se você escolhe essa profissão e quer realmente se dedicar a 100% e ser valorizado pela profissão que escolheu, você não consegue ser bem pago no Brasil. Desde pequena eu soube, eu pesquisei que para ser bailarina profissional você vai ter que sair do seu país”, diz Luciana Sagioro. 

Inclusão de talentos na Ópera de Paris

A Ópera de Paris vem, há alguns anos, tentado ser mais inclusiva. Em 2021, a direção tomou a decisão inédita de revisar seus critérios de recrutamento para encorajar a entrada de artistas que não sejam brancos e contratou um "fiscal da diversidade", a exemplo do Metropolitan Opera de Nova York. Em 2023, a tradicional instituição francesa nomeou pela primeira vez em três séculos de existência um bailarino negro como Étoile, Guillaume Diop, um dos raros dançarinos negros ou mestiços da instituição.

Como a primeira bailarina brasileira a ingressar na aclamada Ópera de Paris, Luciana afirma que o Brasil é rico em potencial para a dança. “Somos um país de muitos talentos”, confirma ela ao apontar nomes que se destacam no mundo das artes, dança e esportes na cena internacional. Luciana cita dançarinas em quem se espelha:

“Eu tenho uma grande inspiração na minha antiga mestre, a Patrícia Salgado, que foi minha mestre de balé, foi uma grande bailarina solista no balé de Stuttgard na Alemanha. Ela me inspirou muito pela forma que aprendeu tudo como bailarina, mas pela forma que ela transmite hoje como professora. A bailarina Mayara Magri, Étoile do Royal Ballet em Londres, brasileira também. E a Dorothée Gilbert, Étoile aqui da Ópera de Paris, é uma grande inspiração e hoje divido o palco com ela. Isso é demais! Marianela Nuñez também, outra grande Étoile do Royal Ballet em Londres. A lista é enorme, mas essas são algumas”, brinca. 

Sonhar e realizar é possível

A mineira admira muitos artistas, mas também quer inspirar outros jovens brasileiros. Ela planeja em um dia poder ajudar outros bailarinos a alcançarem seus objetivos. 

“Hoje, com meu papel, sendo bailarina da Ópera de Paris, eu crio a esperança nas pessoas de que elas são capazes de realizar os sonhos delas. E o meu maior sonho como bailarina brasileira, vendo a situação do meu país, que infelizmente é um país que é pobre, não tem muitos recursos, como aqui na França, é criar uma associação que possa ajudar bailarinos que tenham os mesmos sonhos que um dia eu tive, mas não tenham a mesma facilidade, os mesmos recursos que eu tive, graças a minha família”, agradece Luciana.

“Eu abdiquei realmente de muitas coisas. Nada disso foi fácil, foi muito trabalho, muita dedicação, muito esforço. É isso que eu quero inspirar nas pessoas. Muitas pessoas desistem porque o caminho é muito difícil e poucas pessoas falam do quão difícil é. A gente fala do glamour que chegar até lá. A gente fala que é muito gratificante, mas a gente esquece que a trajetória, os caminhos, foram difíceis”, pondera. 

Para Luciana, a força do sonho fala mais alto. “Muitas coisas vão tentar impedir que você alcance seus sonhos. Mas se você não for mais forte que tudo isso, ninguém vai ser por você. Sempre falo [que] tudo é possível, basta só você acreditar”, declara. 

A temporada de 'Paquita', que começou no início de dezembro e termina em 4 de janeiro de 2025, ainda tem ingressos disponíveis no site oficial da Ópera de Paris. Mas quem não conseguir ver a mineira Luciana Sagioro nesta temporada no clássico palco francês, terá ainda muitas oportunidades em espetáculos futuros. Afinal, a carreira da jovem cheia de brilho nos olhos pela dança está apenas começando. 

Teatro: peça celebra em Paris memórias de domésticas exploradas por diplomatas brasileiros na França
06 December 2024
Teatro: peça celebra em Paris memórias de domésticas exploradas por diplomatas brasileiros na França

Até o começo dos anos 2000, os diplomatas brasileiros alocados em Paris dispunham de um privilégio, abolido durante o primeiro mandato de Luiz Inácio Lula da Silva: trazer consigo para a capital francesa duas empregadas do Brasil. Sem falar francês, isoladas pela distância e sem redes sociais, muitas delas viveram em regimes comparáveis à semi-escravidão. A peça "Ressonâncias: Revoltas Silenciosas", do ator e músico Yure Romão, busca dar visibilidade a essas protagonistas invisibilizadas pelo silêncio.

"O projeto começou em 2022, durante um café na casa de uma amiga, a primeira pessoa que conheci aqui em Paris. Por questões de anonimato, já que os diplomatas com quem algumas dessas mulheres trabalharam ainda estão em atividade, vou chamá-la de Maria", conta o diretor do espetáculo, o ator, músico e encenador Yure Romão.

"Naquele dia, estávamos conversando sobre política. Era o dia da eleição presidencial na França, e a extrema direita estava ganhando força. Eu estava muito contrariado, sem entender como brasileiros vivendo aqui podiam votar na extrema direita no Brasil, ou como franceses optavam por isso", contextualiza. 

"Maria começou a compartilhar experiências pessoais e de amigas próximas", relembra Romão. "Ela contou que conhecia muitas famílias brasileiras, especialmente de diplomatas, que nos anos 2000 tinham o direito de trazer duas empregadas domésticas ao país onde estavam alocadas", detalha.

"Eu não sabia disso. Maria explicou que, até 2003, isso era um privilégio concedido, mas que foi cortado no governo Lula, junto com outros benefícios, como auxílio-moradia. Segundo a análise dela, isso gerou um sentimento anti-Lula entre muitos diplomatas", avalia o diretor.

Algumas recebiam salários bem inferiores ou nada, e muitas viviam isoladas, longe das famílias, num contexto análogo à escravidão.

"Essas empregadas domésticas vinham com a promessa de receber um salário de US$ 800 e moradia digna. No entanto, ao chegarem aqui, a realidade era outra", conta.

"Algumas recebiam salários bem inferiores ou nada, e muitas viviam isoladas, longe das famílias, num contexto análogo à escravidão. Nos anos 2000, a comunicação era difícil — sem celulares ou WhatsApp, elas ficavam ainda mais isoladas", destaca o artista brasileiro, que desenvolve diversas residências com artistas em ex-colônias francesas, como Guadalupe e Martinica.

"Naquela tarde, Maria me apresentou duas amigas que passaram por essas situações. Elas expressaram o desejo de que suas experiências fossem conhecidas, não só como registro histórico, mas para que filhos, netos e outras gerações soubessem o que viveram", relata Romão.

Histórias reais

No cruzamento da narrativa e da pesquisa documental, com dramaturgia fortemente marcada pela presença da música popular, do Brasil às ex-colônias francesas, o espetáculo resgata histórias reais de empregadas domésticas brasileiras na França, como conta Yure Romão.

"Decidi então transformar essas histórias em um espetáculo, pois sou diretor e músico, e meu trabalho é centrado no teatro e na música. Paralelamente, começamos a trabalhar em um livro, baseado nas transcrições das entrevistas. Tanto o espetáculo quanto o livro respeitam o anonimato, com cada mulher escolhendo um pseudônimo para garantir segurança e evitar retaliações", conta o diretor.

Uma das mulheres contou que dormia na lavanderia, embaixo de uma tábua de passar roupa.

"As histórias que elas contam revelam realidades dolorosas. Muitas vieram seduzidas pela ideia de ganhar US$ 800 — uma quantia impressionante comparada ao salário mínimo da época no Brasil. Algumas eram trabalhadoras domésticas; outras, como enfermeiras e administradoras, que aceitaram a proposta por parecer mais vantajosa. Mas ao chegarem aqui, enfrentaram promessas não cumpridas: salários retidos, condições precárias de moradia e isolamento", relata o diretor, em entrevista à RFI.

Os abusos aconteciam de formas variadas, como relata o diretor do espetáculo. "Uma das mulheres contou que dormia na lavanderia, embaixo de uma tábua de passar roupa. Outras relataram violências físicas e psicológicas, agravadas pela distância da família e pela dificuldade de pedir ajuda. O diretor conta ainda que "essas situações ocorriam dentro de um quadro legal, já que havia contratos, mas que na prática eram desrespeitados".

Entrelaçamento de dramaturgias

Yure Romão detalha o entrelaçamento de dramaturgias que ele teceu, num diálogo com a autora antilhana Françoise Ega, através de seu livro “Cartas a uma negra”, onde ela endereça cartas à escritora brasileira Carolina Maria de Jesus.

"Ao longo do processo, percebi semelhanças com outras migrações institucionais, como as descritas pela escritora martinicana Françoise Ega, em seu livro Cartas a uma negra. Nele, ela relata a experiência de mulheres das Antilhas Francesas, nos anos 1960, que também vieram para a França com promessas de melhores condições, mas encontraram exploração. A conexão entre essas histórias, separadas por décadas e continentes, revela padrões profundos de desigualdade e abuso", analisa Yure Romão.

Visibilidade

"O espetáculo busca dar visibilidade a essas mulheres e suas histórias, enquanto o livro serve como registro memorial. Algumas delas decidiram que suas famílias descobrirão o que viveram apenas ao assistir à peça ou ler o livro. Elas desejam que suas histórias não se percam e que sirvam como alerta para que outras mulheres não enfrentem as mesmas dificuldades", ressalta Romão.

"Não sinto medo de expor essas questões, embora elas revelem um lado sombrio da diplomacia brasileira", diz o diretor. "Estamos protegidos pelo anonimato e pela importância do trabalho. Essas histórias fazem parte da história do Brasil e da diplomacia, e acredito que merecem ser contadas", insiste.

"Estamos planejando levar o espetáculo ao Brasil em 2025, durante o Ano do Brasil na França. Será uma versão em português, e algumas das mulheres que entrevistei poderão assisti-lo. Espero que o impacto seja tão transformador lá quanto tem sido aqui", afirma Romão.

"Muitas vezes, quando falamos do projeto, deixamos claro que não se trata de 'dar voz' a essas mulheres. Elas já têm muita voz e falam muito. E isso é maravilhoso. Acho que o nosso papel é mais sobre escutar essas vozes, amplificá-las e fazê-las ressoar", diz a atriz, marionetista e contadora de histórias Ana Laura Nascimento.

"Enquanto mulher, filha e neta, essa questão me atravessa profundamente. Minha avó foi empregada doméstica, e minha madrinha ainda é, vivendo no interior de Pernambuco", afirma. "Mesmo com a PEC das Domésticas, muita coisa não mudou, especialmente nos interiores. Muitas empregadas domésticas ainda não têm seus direitos reconhecidos. É algo muito próximo para mim, porque tenho pessoas da família que enfrentam essas condições", sintetiza a artista brasileira, que desenvolveu seus estudos e boa parte de sua prática teatral na França.

"Quando falo, crio ou produzo peças sobre temas difíceis como esse, o que mais me motiva é explorar como essas pessoas conseguiram resistir e continuar. Quero falar sobre o que foi necessário para elas seguirem em frente, mesmo diante de tantas adversidades", destaca Nascimento.

"Tecnologias de sobrevivência"

"Vivemos em um país que enfrentou 400 anos de escravidão. Se estamos aqui hoje, é porque criamos tecnologias de sobrevivência, maneiras de seguir vivendo", avalia Nascimento. "Não foi só pela luta, mas também pela celebração, pela criação de subjetividades e de espaços onde antes não havia nada. Foi essa capacidade de criação que nos manteve vivos", aponta.

"Além disso, ontem, no início do ensaio, falamos sobre como essas histórias nos atravessam e nos emocionam profundamente. Elas nos deixam frágeis, mas também nos impulsionam", sublinha Nascimento. "Trabalhamos com artistas incríveis, com muita técnica, e isso nos permite transformar essa emoção em algo produtivo. Essa emoção se torna adubo, alimentando a nossa técnica e o nosso trabalho", conclui a atriz.

Depois da temporada francesa, a peça "Ressonâncias, revoltas silenciosas" deve desembarcar em 2025 no Brasil, dentro do calendário que comemora os 200 anos de relações diplomáticas entre os dois países.

Universidade na França dedica jornada para discutir desafios da língua portuguesa no cenário global
22 November 2024
Universidade na França dedica jornada para discutir desafios da língua portuguesa no cenário global

Como promover e proteger a língua portuguesa e as culturas dos nove países que têm o idioma como oficial em um mundo cada vez mais dominado pelo inglês? Esse foi o tema central da 4ª Jornada da Lusofonia, evento internacional organizado pela Universidade Clermont Auvergne, em Clermont-Ferrand, região central da França.

Realizado nesta quinta-feira (21), o encontro reuniu acadêmicos, diplomatas e especialistas para discutir o papel da língua portuguesa em um cenário global marcado pela predominância de idiomas hegemônicos, como o inglês, especialmente em áreas como ciência, tecnologia e entretenimento.

A língua portuguesa, com mais de 260 milhões de falantes nativos, é uma das mais faladas no mundo. Mas, como outros idiomas, tem perdido relevância internacional diante da crescente predominância do inglês amplamente utilizado em áreas como tecnologia, ciência, diplomacia e entretenimento em todo o mundo. Para que o português mantenha sua relevância internacional, é necessário expandir seu alcance e atrair interesse de falantes não nativos.

"No último recenseamento, que foi feito pelo instituto Camões, o português é colocado com uma quarta língua mais falada por pessoas nativas do mundo. Então, nós precisamos trabalhar justamente para que essa língua não seja somente uma língua utilizada como ferramenta para nativos, mas atrair também pessoas que não necessariamente têm nacionalidades de países lusófonos que possam aprender e se interessar por esse idioma”, destaca Ailton Sobrinho, professor do Departamento de Estudos Portugueses e Brasileiros da Universidade Clermont Auvergne (UCA).

Universidades francesas e o ensino do português

Muitas universidades francesas têm departamentos de língua portuguesa, indicando o interesse pelo idioma na França. Somente na Universidade de Clermont Auvergne são mais 200 alunos, de graduação e pós-graduação. Comércio internacional, turismo e tradução são as principais áreas de atuação visadas. A Inteligência Artificial (IA) representa um grande desafio, principalmente para os tradutores, segundo Ailton Sobrinho.

“Acredito que nós não vamos conseguir substituir o homem por uma máquina, porque ela nunca terá essa sensibilidade de compreender os contextos, de compreender as especificidades de uma língua. Então eu prefiro acreditar que a profissão do tradutor, a figura humana, ela será sempre essencial nesse trabalho, nessa profissão”, afirma.

A UNESCO e o papel do Brasil na promoção do português

A embaixadora do Brasil na Unesco, Paula Alves de Souza, foi uma das participantes da Jornada da Lusofonia. Ela lembrou que o papel da Unesco, formada por 194 países, é justamente a promoção e a defensa da diversidade cultural e linguística. Foi a Unesco que declarou o dia 5 de maio Dia Mundial da Língua Portuguesa. Paula Alves de Sousa ressalta, no entanto, a importância do governo brasileiro ter uma política nacional de proteção de sua língua e cultura.

"O papel do governo é investir em uma produção cultural de língua portuguesa. Por exemplo, investir recursos na produção audiovisual, no cinema brasileiro e justamente investir em salas de cinema e na reserva de mercado para que as pessoas possam assistir a filmes brasileiros”, exemplifica.

Outro campo de exploração, segundo a embaixadora, é na área das ciências e da educação. “É tentar fazer que a língua portuguesa seja a língua da ciência, e que a gente possa escrever e produzir em língua portuguesa e assim ganhar cada vez mais força e espaço no meio científico”, defende. 

Paula Alves de Sousa acrescentou que, em um mundo cada vez mais globalizado, a preservação do idioma tem que ser um esforço contínuo. "É uma batalha difícil, talvez quase perdida, mas precisamos insistir. O mundo está se tornando cada vez mais anglófono e particularmente norte-americano. E com isso, nós teremos uma única cultura mundial e cada vez menos diversidade cultural. Isso sem dúvida alguma, é um empobrecimento para todos nós”, alerta.

Mesmo diante de cortes orçamentários, a embaixadora acredita que é possível direcionar recursos de forma eficiente para a promoção da cultura brasileira. "Hoje é impossível você pensar em cultura se você realmente está tentando ainda alimentar ou dar vacina para as pessoas. Na realidade é pouco dinheiro para muita coisa, para muitos objetivos. Mas é pensar criativamente, para poder ter investimento na cultura", diz Paula, citando o Fundo Setorial do Audiovisual como um exemplo do uso de recursos com criatividade e boa gestão.

Obra múltipla de Fernando Pessoa inspira nova peça do diretor americano Bob Wilson
08 November 2024
Obra múltipla de Fernando Pessoa inspira nova peça do diretor americano Bob Wilson

“Pessoa, since I’ve been me” (“Pessoa, desde que eu sou eu”, em tradução livre) é a última peça de Robert Wilson. No espetáculo, o renomado diretor de teatro americano faz uma leitura pessoal da vida e obra de um dos maiores escritores portugueses de todos os tempos. Depois da estreia mundial em Florença, no primeiro semestre, a peça entrou em cartaz na terça-feira (5) no Théâtre de la Ville, em Paris.

Uma escolha de fragmentos de textos de Pessoa retraça a vida do poeta do nascimento a morte. A peça começa e termina com a frase "I know not what tomorrow will bing" (Não sei o que o amanhã trará"), escrita em inglês antes da morte do poeta em 1935.

Bob Wilson conhecia pouco a obra de Fernando Pessoa e mergulhou no universo do poeta português no processo de criação, conta a brasileira Janaina Suaudeau, uma das atrizes do espetáculo. "Ele (Bob Wilson) mesmo diz que aos poucos, justamente fazendo trabalho de dramaturgia com Darryl (Pinckney), com o Charles Chemin, foi se encantando cada vez mais com esse personagem. Não tem como não se encantar com o Pessoa, não é?”, aponta.

 

 

A atriz franco-brasileira diz que nessa homenagem ao poeta português o diretor americano “brincou muito com a multiplicidade do Pessoa em todas as esferas. No imagético, ele passa de um universo para o outro muito rápido. Passa do 'Fausto', por exemplo, que é uma coisa tão profunda, mais sombria, e logo depois vem uma música no final". 

Espetáculo caleidoscópio

Em cena, sete atores e atrizes de várias nacionalidades: italianos, franceses, portugueses e brasileiros.

“Pessoa” é um espetáculo caleidoscópio, que revela com a encenação límpida, os gestos geométricos e lentos que caracterizam a obra de Bob Wilson, mas também muitos elementos burlescos, as várias vidas do escritor português, simbolizadas por seus diversos heterônimos.

Cada ator ou atriz se identifica com um dos heterônimos, principalmente os mais conhecidos: Álvaro de Campos, Ricardo Reis, Alberto Caeiro, Bernardo Soares. Já a atriz portuguesa Maria de Medeiros vive em cena o próprio Fernando Pessoa.

“O que eu achei muito interessante na proposta do Bob foi abordar o Pessoa pela infância, pelo lado lúdico. E esse ‘Pessoinha’ com o seu bigode, andrógino porque é interpretado por uma mulher, de alguma forma vai organizar no sistema pessoano aquilo que ri das coisas mais dramáticas, das dificuldades de ser, das angústias pessoanas”, detalha.

A atriz e cineasta, que brinca que a obra do poeta português é para ela uma “espécie de líquido amniótico”, concorda com a leitura que Bob Wilson faz de Pessoa. “Isso está certo porque o Pessoa também tem um lado extremamente irônico e autoirônico”, afirma Maria de Medeiros, que interpreta a obra do escritor português desde os 19 anos.

Pessoa universal

"Pessoa, since I’ve been me" convida o público para uma viagem visual e sonora, e em várias línguas europeias: inglês, português, francês e italiano. Com a presença de atores e atrizes brasileiros e portugueses em cena, Maria de Medeiros ressalta a importância de se ouvir na peça os sotaques do português do Brasil e de Portugal.

“Os brasileiros sempre foram e são grandes intérpretes do Pessoa. Por isso, me parece muito certo que dois brasileiros estejam no espetáculo e que se ouça o português de Portugal e o português do Brasil também. Ao atravessar todas essas línguas com a perspectiva particular do Bob, que é um americano, de alguma forma é o afirmar da universalidade do poeta Pessoa”, salienta a atriz portuguesa.

A peça de Bob Wilson é uma produção do Teatro della Pergola, de Florença, e do Théâtre de la Ville, de Paris, coproduzido por vários outros teatros europeus.

 

 

Depois de Paris, a peça irá estrear no São Luiz Teatro Municipal de Lisboa, em março de 2025. O contratenor brasileiro Rodrigo Ferreira, escolhido entre os mais de mil e setecentos candidatos para atuar na produção, torce para o espetáculo ir também para o Brasil.

“Nós queremos ir ao Brasil. Teatros brasileiros, levem o espetáculo! O Pessoa merece. A língua portuguesa está sendo honrada. É bom ter um espetáculo onde se fala português e outras línguas latinas: italiano, francês. Isso é bastante Fernando Pessoa e isso é o que eu mais gosto no espetáculo, esse fato que a gente passa de uma língua a outra, ao mesmo tempo e que é bastante fluido”, elogia.

 

A peça "Pessoa, since I've been me" fica em cartaz no Théatre de la Ville de Paris até 16 de novembro de 2024.

Loucura da Idade Medieval ao Renascimento é tema de nova exposição no Louvre
01 November 2024
Loucura da Idade Medieval ao Renascimento é tema de nova exposição no Louvre

“Figuras do Louco, da Idade Média aos Românticos” é uma nova exposição do Museu do Louvre, em Paris, a respeito desse personagem que povoa o imaginário visual do século 13 ao século 16. O louco é uma figura que invade literalmente todo espaço artístico e se impõe como personagem fascinante, perturbada e subversiva, em uma época de grandes rupturas.

“Esta exposição nasceu de uma interrogação. Por que houve uma tal proliferação de loucos nos tempos góticos e na Renascença? Qual o significado dessa figura às vezes sorridente, ou dançante, às vezes os dois ao mesmo tempo?”, questiona Elisabeth Antoine-König, co-curadora da exposição.

“Os loucos são representados nos objetos mais variados, desde os mais modestos aos mais preciosos. Como nosso ponto de partida foram as representações, o nosso objetivo não foi escrever a história da loucura na era pré-clássica. Isso os historiadores já fizeram”, explica a conservadora geral do departamento de objetos de arte do Louvre.

“Além disso, os homens da Idade Média não estavam abordando a loucura sob o aspecto patológico ou médico. Ao tratar a figura multiforme do louco, o objetivo desta exposição foi também revelar uma Idade Média inesperada, ou melhor, mal conhecida, uma Idade Média que faz rir, refletir sobre nós mesmos e sobre nossas relações com outros”, diz Antoine-König, no vídeo de apresentação da mostra.

A exposição traz cerca de 350 obras emprestadas por instituições da França, Europa e Estados Unidos, com peças raras e excepcionais. Entre as preciosidades expostas, está a “Nau dos Loucos”, do holandês Jerônimo Bosch, conhecido por pinturas que misturam fantasia e grotesco.

O ser louco, endemoniado, meio homem, meio bicho, começa a aparecer nas bordas de livros sagrados, ricamente copiados e ilustrados à mão na Idade Média. Dali passa a figurar em livros impressos, gravuras, tapeçarias, pinturas, esculturas, objetos preciosos ou do cotidiano. Ele ganha outras vidas e formas com o passar do tempo, geralmente calcadas no grotesco e no ridículo.

A mostra aborda também a loucura do amor dos romances de cavalaria, com personagens célebres como Lancelote, um dos cavaleiros da Távola Redonda, e Tristão – de Isolda.

"Vim pelo tema. Acho interessante, pois é um tema que nunca foi tratado e, além disso, a loucura é algo muito relativo. A exposição mostra muito bem a loucura, o amor louco, a loucura religiosa. Ela mostra também o bobo da corte, que com suas loucuras vai salientar a sabedoria do rei. São oposições muito interessantes”, diz François, um visitante.

“E há também os códigos de cores, como os bobos da corte se vestiam com cores vibrantes, com guizos. A exposição cita Michel Pastoureau, que é um especialista das cores e que tratou do assunto de maneira excepcional. Depois, na última parte, temos o Dr. Philippe Pinel, que foi o primeiro a abordar a doença psiquiátrica de maneira inovadora, com a ideia de que muitos considerados loucos não precisavam ser internados, mas apenas ter uma adaptação ou viver um ambiente favorável”, acrescenta.

Já Catherine, visitante assídua do Louvre, aponta para a obra que mais a impressionou, a penúltima do extenso percurso: “Stanczyk durante um baile após a queda de Smolensk”, de Jan Matejko, 1862.

“É um bobo da corte polonês do século 16, que agoniza sobre o futuro de seu país enquanto os líderes fazem a festa nos fundos. Acho que é simbólico, pois ao longo da exposição a gente se questiona as razões e motivações e se este personagem não seria o fio condutor de todos os outros que estão à margem. São tantas fases e etapas diferentes – e talvez o resumo seja essa última figura”, conclui.