Começaram esta terça-feira na Arábia Saudita negociações consideradas cruciais entre os Estados unidos e a Ucrânia para encetar um eventual processo de paz com a Rússia. Em cima da mesa, está o acordo sobre os minerais ucranianos que Donald Trump pretende obter em compensação do apoio dado pelos estados Unidos a Kiev durante os três anos de guerra com a Rússia. Por seu lado, Kiev espera obter garantias de segurança e preconiza um cessar-fogo aéreo e marítimo.
Estas negociações acontecem poucos dias depois de as relações entre a Ucrânia e o seu -outrora- principal aliado, os Estados Unidos se terem consideravelmente degradado, com a violenta discussão entre Trump e Zelensky na Casa Branca no passado dia 28 de Fevereiro.
Isto acontece também num contexto em que a Ucrânia conhece dificuldades no terreno, dificuldades acrescidas pela suspensão na semana passada da ajuda militar e das informações estratégicas americanas.
Por outro lado, isto sucede igualmente numa altura em que Kiev lançou ontem à noite uma série de drones contra o território russo e em particular contra Moscovo, um ataque que a Rússia afirma ter interceptado, mas com o qual o executivo de Zelensky procura fazer inflectir Putin sobre o princípio de um cessar-fogo parcial.
Dados que analisamos com Álvaro Vasconcelos, antigo director do Instituto de Estudos de Segurança da União Europeia.
RFI: O que se pode dizer, para já, do contexto em que decorrem estas negociações?
Álvaro Vasconcelos: São negociações entre os Estados Unidos e a Ucrânia. No fundo, os russos estão a ver o que se passa. Os russos estão a deixar ser o Trump a fazer pressão máxima sobre a Ucrânia para conseguirem aquilo que Putin terá dito a Trump que queria para um cessar-fogo. E portanto, é essa situação paradoxal que vivemos, em que não há uma negociação entre a Ucrânia e a Rússia para um cessar-fogo e depois para um acordo de paz, que são duas coisas completamente diferentes. Mas há uma negociação entre os Estados Unidos e a Ucrânia.
RFI: Antes destas negociações, não se chega a perceber muito bem qual é a posição dos Estados Unidos. Enquanto Donald Trump diz que, a priori, não tenciona restabelecer a ajuda militar a Kiev, o chefe da diplomacia, Marco Rubio, não fecha completamente a porta ao restabelecimento desse apoio e também não fecha a porta a um cessar-fogo parcial no ar e no mar.
Álvaro Vasconcelos: Como se dizia em Portugal durante o tempo da ditadura, há o PIDE mau e o PIDE bom. Trump e Vance fazem o papel do PIDE mau. E Marco Rubio faz um bocadinho, quanto pode, quando o deixam fazer, o papel do PIDE bom. Mas na realidade, o que nós assistimos desde o 12 de Fevereiro, quando Trump falou ao telefone com Putin, é que Trump incorporou toda a narrativa do Putin sobre a guerra da Ucrânia, ou seja, que quem começou a guerra foram os ucranianos, que Zelensky é um Presidente mal eleito, até um ditador. E toda essa pressão extraordinária sobre a Ucrânia foi completada pela retirada do apoio militar americano. Como nós sabemos, o que também foi dramático para a evolução da situação na guerra, foi a retirada das informações que os serviços de informação americanos davam aos ucranianos, o que permitiu alguns avanços significativos da Rússia nas regiões de Kursk, regiões russas que os ucranianos tinham conquistado. Toda essa pressão extraordinária sobre a Ucrânia, é aquilo que Putin queria, dá uma negociação extremamente difícil. É verdade que, entretanto, os europeus acordaram. Os europeus manifestaram como possivelmente nós não esperaríamos, porque nunca tínhamos visto isto, uma unidade significativa face aos Estados Unidos. Se nós nos lembramos, quando foi a guerra do Iraque, só a França e a Alemanha e um ou outro pequeno país se opuseram à invasão do Iraque pelos Estados Unidos. Havia a velha Europa e Nova Europa. A Europa estava profundamente dividida porque eram os Estados Unidos que estavam em causa. Hoje, a Europa está unida, no essencial, contra Trump e contra a política de Trump de obrigar os ucranianos a capitular perante exigências russas.
RFI: Mas não será um pouco ilusório a Europa pensar que pode pesar sobre essas negociações, dado que, como o próprio Trump tem dito várias vezes, não têm as cartas?
Álvaro Vasconcelos: Esta história das cartas, como Zelensky disse bem na conversa com Trump -se podemos chamar aquilo conversa- não se trata de um jogo de cartas. Como disse antes, trata-se é da guerra, da morte de pessoas e das perspectivas a longo prazo para a estabilidade e a segurança na Europa. E, nesse sentido, nunca é tarde para a União Europeia acordar. E evidentemente que, neste momento imediato, o seu peso nas negociações não é o que poderá ser daqui a uns meses ou daqui a uns anos, se estiver a criar os meios militares suficientes para apoiar a Ucrânia. Mas ponha a situação diferente, que a União Europeia não teria declarado a continuidade do seu apoio à Ucrânia, que o novo chanceler alemão não tinha mostrado tanta determinação em apoiar a Ucrânia, que a Europa não tinha continuado a dar o apoio militar à Ucrânia, e apesar de tudo o que diz o Donald Trump, o apoio financeiro europeu é superior ao dos Estados Unidos, a Ucrânia tinha colapsado. Portanto, apesar de a Europa não ter ainda os meios necessários para dar o apoio todo que a Ucrânia precisa, o apoio é decisivo para a Ucrânia ter alguma margem de manobra, senão não teria nenhuma. E repare-se que a pressão americana tremenda sobre Ucrânia é acompanhada por um redobrar da intervenção militar russa, pelo bombardeamento das cidades, etc. E que a Ucrânia respondeu ontem à noite, bombardeando também com drones várias cidades russas, incluindo Moscovo. Portanto, estamos num momento de negociação. E se quisermos voltar à história das cartas, cada um mostra quais são os trunfos que tem. E a Ucrânia continua a ter os trunfos de defender a sua terra, de ter resistido durante três anos com -é verdade- o apoio significativo americano, de ter do seu lado a União Europeia, o direito internacional e de ter o seu lado, de facto, a opinião pública europeia, também não é só os governos da União Europeia, e também a opinião pública europeia.
RFI: Relativamente, lá está, àquilo que mencionou, o ataque durante esta noite contra o território russo e nomeadamente contra Moscovo. Kiev diz abertamente que isto deveria servir para os russos também pensarem na eventualidade de aceitar um cessar-fogo pelos ares e também a nível do mar. Julga que esse tipo de ataques, que aliás a própria Rússia diz ter interceptado, podem pesar nessas negociações?
Álvaro Vasconcelos: Nas negociações com os russos, se calhar pesa pouco. Nas negociações com os americanos, pesam alguma coisa. Porque se Trump estava convencido que ao retirar o apoio aos ucranianos, estes últimos ficavam numa situação de completa vassalagem em relação a Trump -porque Trump vê-se como um imperador- e queria que Zelensky dobrasse a espinha e se apresentasse como vassalo, Zelensky quer mostrar uma prova de força e que ainda tem capacidade para atacar a Rússia e apresentar uma proposta de cessar-fogo. Porque isto do cessar-fogo parece que é simples e que amanhã acabou a guerra. Mas é muito mais complicado, porque é preciso definir as posições, é preciso verificar que nenhuma das partes utiliza o cessar-fogo para avançar, há toda uma série de questões, é preciso criar condições para a verificação do cessar-fogo. Há todo um conjunto de questões para garantir um cessar-fogo que dure. E depois é preciso iniciar negociações de paz, porque o cessar-fogo não é paz, é apenas uma pausa no conflito. A Ucrânia o que está a mostrar, não é aos russos, mas sim aos americanos. E é isso que é paradoxal, como eu disse desde o início, que a negociação não é entre a Ucrânia e a Rússia, é entre a Ucrânia e os Estados Unidos. E os europeus têm tido um papel importante também em apoiar a Ucrânia na negociação com os Estados Unidos. Mesmo que não pesem tanto como nós gostaríamos que pesassem na negociação com a Rússia. Pesam alguma coisa na negociação com os Estados Unidos.
RFI: O que também interessa, aliás é o que está em cima da mesa pelo menos para os Estados Unidos, é a questão dos minerais, que é o ponto central para Donald Trump. Zelensky terá condições para de facto negociar um acordo que não seja demasiado prejudicial para a Ucrânia no que tange, por exemplo, à exploração e aos lucros que os minerais podem gerar?
Álvaro Vasconcelos: Os americanos ligam a questão dos minerais ao apoio à Ucrânia para resistir à invasão russa e evidentemente que, nessa circunstância a negociação é difícil. Mas Zelensky tem continuado e os ucranianos têm continuado a dizer -e percebe-se completamente a lógica disso- que não há resultado final de negociações, ou seja, negociações sobre os minerais e negociações sobre o acordo de paz, ou seja, o cessar-fogo e o acordo de paz estão absolutamente ligados, para os ucranianos e também, de certa forma, para os americanos, à necessidade de haver garantias de segurança para a Ucrânia. E nesse sentido, até hoje não vimos mudança da posição da Ucrânia. Ou seja, aquilo que levou à situação que nós todos assistimos em directo na Casa Branca foi a recusa em aceitar um acordo sobre os minerais sem garantias de segurança para a Ucrânia. Eu não sei se para os americanos ou para Trump é mais importante os minerais ou apresentar-se aos americanos e ao mundo como o homem que impôs o cessar-fogo e a paz. Mas sei que Zelensky até agora não recuou naquilo que é absolutamente essencial. 'Ok, nós fazemos os acordos que os americanos querem, mas na condição de que os americanos dêem garantias de segurança'. Os detalhes do acordo sobre os minerais, ou seja, qual vai ser a parte ucraniana no controlo das suas próprias riquezas, qual vai ser a parte americana, como é que as empresas ucranianas serão envolvidas, que empresas americanas, quando é que isto começará a ter resultados, parece que demora muito tempo, segundo os especialistas. Tudo isso nós não conhecemos os detalhes, só conheceremos possivelmente no fim das negociações. Mas sabemos que a questão das garantias de segurança está absolutamente na agenda.
RFI: Parece já estar assente para os Estados Unidos que, de qualquer forma, para haver paz entre a Rússia e a Ucrânia, deverá haver cedências territoriais por parte da Ucrânia e também que a Ucrânia desista da ideia de aderir à NATO.
Álvaro Vasconcelos: Começamos, talvez pela primeira parte, que é a questão das cedências territoriais por parte da Ucrânia. Isso aí, os ucranianos vão aceitar uma situação de facto, acho eu, que é haver um cessar-fogo e um acordo de paz posteriormente. Mas começamos pelo cessar-fogo, porque os contornos do acordo de paz é difícil discuti-los hoje. Um cessar-fogo nas linhas actuais da guerra, possivelmente com um rearranjo aqui e acolá. E depois, continuarão as negociações para o acordo de paz. E é aí que as questões territoriais vão colocar-se. Mas na situação, digamos, de reconhecimento da ocupação de parte do território ucraniano pela Rússia, acho que nunca nenhum Presidente ucraniano, nenhum governo ucraniano aceitará. Ou seja, eles aceitarão uma situação de facto, mas continuarão a dizer que a reunificação da Ucrânia é um direito garantido pela comunidade internacional, pelas Nações Unidas, várias votações da Assembleia Geral das Nações Unidas e pelos tratados que foram assinados internacionalmente, inclusive pela Rússia, no fim da Guerra Fria. E, portanto, essa integridade territorial da Ucrânia vai continuar a ser defendida pelos ucranianos, ao mesmo tempo que eles farão concessões para um cessar-fogo e iniciarão uma negociação para um acordo de paz. Aliás, nos últimos dias houve esse aspecto interessante, que foi os ucranianos que estavam sempre na defensiva perante Trump, terem feito essa proposta, como já referiu, de um cessar-fogo parcial no ar e no mar, que foi no fundo também tomarem a iniciativa de serem eles a fazerem propostas e obrigarem agora os americanos a negociar com os russos. Até agora, os americanos não negociavam com os russos. Só negociavam com os ucranianos. Agora têm que negociar com os russos. Vamos ver se o Trump tem alguma capacidade ou quer ter alguma capacidade de pressão sobre a Rússia. O que não me parece ser o caso porque ele embarcou completamente na agenda do Putin.
RFI: Outro aspecto que talvez possa pesar nas negociações -um aspecto que foi aliás mencionado pelo próprio Zelensky- que é a sua saída de cena. Isto foi também mencionado por outros responsáveis e pelo próprio Donald Trump que não esconde que gostaria de ver outra pessoa a dirigir a Ucrânia. Julga que isto pode ser também um elemento a ter em conta nas negociações?
Álvaro Vasconcelos: Se eu não perdi nenhuma declaração do Zelensky sobre a questão- e posso ter perdido- o Zelensky diz que aceitaria sair de cena se a Ucrânia aderisse à NATO. Ou seja, se a garantia de segurança máxima que a Ucrânia pode ter, ser membro da NATO, porque até hoje nenhum membro da NATO foi atacado, não sabemos o que acontecerá amanhã com os Estados Unidos cada vez menos presentes e dando cada vez menos garantias de segurança no quadro da NATO. Mas até hoje, nenhum membro da NATO foi atacado. E o Zelensky disse que se Ucrânia entra na NATO, eu saio. Isso Evidentemente que a Rússia não vai aceitar, porque não quer que a Ucrânia tenha garantias de segurança, não aceita essas garantias de segurança máxima, não aceita as garantias de segurança que os europeus querem dar, com a presença militar europeia que tenha algum respaldo americano. Os russos e, pelos vistos, também Trump, querem sacrificar Zelensky. Mas o que é que significa sacrificar Zelensky? Significa tentar pôr no poder na Ucrânia alguém que seja dócil em relação a Trump e, logo, dócil em relação a Putin. E é no fundo, quando se fala de substituir Zelensky, que quando se diz que não é um Presidente eleito porque não houve eleições em Maio do ano passado dada a situação de guerra, o que se está a dizer? Ponham lá um homem pró-russo. Há vários. Lembremo-nos da França durante a Segunda Guerra Mundial. Acabou por chegar ao poder Pétain, que era um homem que aceitou a capitulação. Portanto, procurar um homem na Ucrânia que aceite a capitulação é o que estão a fazer russos e americanos. Mas evidentemente que isso enfrenta uma enorme dificuldade, que é a popularidade de Zelensky que aumentou desde a conversa da Casa Branca e o empenho dos ucranianos em protegerem a sua própria terra e os ucranianos terem criado nos últimos três anos um exército poderoso. Hoje a Ucrânia tem um exército poderoso, armado pelos americanos, mas também pelos europeus, e tem a sua própria indústria de armamento. Portanto, os ucranianos, apesar de todas as perdas e todas as mortes, continuam a querer defender a sua pátria. E nesse sentido, qualquer Presidente que capitula perante os russos, terá muita dificuldade de continuar no poder.
RFI: No cômputo geral, o que é que se pode esperar desta primeira ronda negocial?
Álvaro Vasconcelos: No fundo, isso são cenários. Não conhecemos os bastidores. Só sabemos aquilo que se passa à sua volta, os ataques ucranianos sobre as cidades russas, os ataques russos em curso, as declarações públicas de uns e de outros. Mas um cenário possível é que Donald Trump, querendo tanto a paz, consiga neste momento, que a delegação russa diga 'Ok, nós vamos fazer um primeiro passo nessa direcção', convencidos que têm Trump pelo seu lado e que Trump vai garantir os interesses russos. Ou seja, os russos vão dizer 'nós queremos uma Ucrânia desmilitarizada' e o Trump dirá 'sim a prazo'. E, entretanto, sairiam de uma negociação com a Ucrânia, aparentemente teriam conseguido alguma coisa, mas na realidade, o essencial estaria na mesma. Ou seja, Trump a apoiar o projecto russo de uma capitulação da Ucrânia e a prazo a sua desmilitarização e neutralização, o que criaria uma situação de altíssima vulnerabilidade para a Ucrânia e a Ucrânia, a prazo, seria conquistada pela Rússia. É possivelmente um cenário que permitiria a Trump dizer que teve algum sucesso nesta negociação. Mas a verdadeira negociação acontecerá quando ucranianos e russos se sentarem à mesma mesa e negociarem o que será um acordo de paz e um cessar-fogo -para começar- entre ambas as partes. E não me parece que isso vá acontecer agora na Arábia Saudita. Um outro cenário que é talvez o mais provável, é que a gente tenha a notícia de que as negociações fracassaram. Que os negociadores regressaram e marcaram outra data da negociação porque não conseguiram chegar a um acordo. Que a Ucrânia manteve a exigência de garantias de segurança e os Estados Unidos ainda não declararam, e não me parece que vão declarar, que deram essas garantias de segurança.