Sudão declara Emirados Árabes Unidos como “Estado agressor”
07 May 2025

Sudão declara Emirados Árabes Unidos como “Estado agressor”

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O governo sudanês rompeu, esta terça-feira, as relações diplomáticas com os Emirados Árabes Unidos que declarou como um "Estado agressor" por, alegadamente, fornecer armas aos paramilitares que lutam contra o exército regular. O anúncio surge um dia depois de o Tribunal Internacional de Justiça se ter declarado "manifestamente incompetente" para julgar a queixa apresentada pelo Sudão contra os Emirados Árabes Unidos por cumplicidade no genocídio no Darfur. Neste programa, Daniela Nascimento, especialista no Sudão, analisa os últimos acontecimentos no país que vive “a pior crise humanitária do mundo” e onde não se prevê um desescalar da situação “num futuro próximo”.

Desde Abril de 2023, o Sudão está mergulhado numa guerra civil entre o exército regular, liderado pelo general Abdel Fattah al-Burhan, e as Forças de Apoio Rápido, uma milícia paramilitar sob o comando de Mohamed Hamdan Daglo. Estima-se que o conflito tenha provocado dezenas de milhares de mortes, cerca de 13 milhões de deslocados e a “pior crise humanitária do mundo", de acordo com a ONU.

Nos últimos três dias, as Forças de Apoio Rápido têm realizado ataques de drones contra várias infra-estruturas em Porto-Sudão, sede provisória do governo sudanês, o qual acusa os Emirados Árabes Unidos de fornecerem armas aos paramilitares. Entretanto, o Tribunal Internacional de Justiça manifestou-se “incompetente” para julgar a queixa de Cartum que acusa Abu Dhabi de cumplicidade no genocídio no Darfur.

Esta terça-feira, o governo sudanês cortou relações diplomáticas com os Emirados, mas a investigadora Daniela Nascimento diz que “o impacto não será significativo” a nível económico. Já do ponto de vista político, “a acusação muito grave de estar a pactuar, a colaborar e a financiar o genocídio no Darfur deixará algumas marcas”, mesmo que os Emirados Árabes Unidos o neguem.

RFI: Qual é a implicação da monarquia petrolífera dos Emirados Árabes Unidos na guerra que está a devastar o Sudão há dois anos?

Daniela Nascimento, Professora de Relações Internacionais da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra: O envolvimento tem sido reportado recorrentemente desde o início desta guerra, por via do apoio que tem sido dado do ponto de vista militar às Forças de Apoio Rápido. Grande parte desta investida militar por parte deste grupo paramilitar que confronta e que contesta também o controlo e o poder das Forças Armadas sudanesas tem sido muitíssimo impulsionado e promovido por actores externos ao conflito.

No caso dos Emirados Árabes Unidos, esse envolvimento tem sido referido sistematicamente pelo general al-Burhan em vários momentos do conflito, sendo que os acontecimentos dos últimos dias remetem para o fornecimento de drones e armamento militar que esteve implicado nos ataques em Porto-Sudão, capital de facto do governo do exército sudanês liderado pelo general al-Burhan, e que vem reforçar esta acusação de que os Emirados Árabes Unidos têm estado directamente investidos no apoio às Forças de Apoio Rápido e, obviamente, considerando-os como uma parte do conflito. Foi isto também que motivou a queixa do Sudão junto do Tribunal Internacional de Justiça, acusando os Emirados Árabes Unidos de estarem a apoiar aquilo que consideram ser um genocídio em curso, sobretudo na região do Darfur.”

O Tribunal Internacional de Justiça disse que é “manifestamente incompetente” para julgar a queixa. Como é que vê a resposta deste tribunal?

“É a resposta possível, tendo em conta as circunstâncias e o enquadramento que permite ao Tribunal Internacional de Justiça actuar. Aquilo que foi referido sobre esta decisão do Tribunal Internacional de Justiça é muito claro: no momento de ratificação da Convenção para a Prevenção e Sanção do Crime de Genocídio por parte dos Emirados Árabes Unidos em 2005, tendo em conta aquela que é a margem de manobra que é dada aos Estados no momento de ratificar importantes tratados internacionais, nomeadamente na área dos direitos humanos, os Emirados Árabes Unidos fizeram uma reserva no momento da ratificação, referindo que esta ratificação não abriria a possibilidade ao Tribunal Internacional de Justiça de julgar casos em que os Emirados Árabes Unidos fossem acusados por outro Estado. Porque é assim que o tribunal funciona, com queixas de Estados contra Estados relativamente à participação em crimes de genocídio. Portanto, a sua adesão a esta Convenção foi sobretudo numa lógica de uma certa assunção de responsabilidade na dimensão de prevenção de crimes de genocídio, mas sempre que os Emirados Árabes Unidos fossem implicados - como está agora a ser o caso - em acusações de alegados crimes de genocídio, o Tribunal Internacional de Justiça não tem jurisdição para julgar esses casos.”

Porque é que o Sudão é importante para os Emirados Árabes Unidos? Há quem fale do ouro, não é?

“Sim. É, sobretudo, o acesso facilitado aos recursos naturais, a recursos importantes, e é também um interesse do ponto de vista de alguma influência e controlo do ponto de vista regional, do ponto de vista territorial, também numa zona que tem sido sempre bastante disputada.”

Há quem diga que os Emirados também buscam combater a influência saudita no Sudão e conter a ascensão do islamismo político e da Irmandade Muçulmana…

“Exactamente. Era outra ideia que queria partilhar porque há aqui uma tensão também do ponto de vista daquelas que são as influências das diferentes partes envolvidas neste conflito: as forças sudanesas e as Forças de Apoio Rápido, sendo que historicamente os regimes militares no Sudão têm tido um apoio significativo da Arábia Saudita e, inclusivamente, noutros contextos de instabilidade e de violência, nomeadamente no Iémen, foram sendo também reportadas situações de envolvimento de tropas sudanesas, por exemplo, em apoio àquela que é também a luta da Arábia Saudita contra os hutis no Iémen.

Há aqui toda uma dinâmica regional bastante mais ampla e que favorece a oportunidade a estes actores regionais que se vão implicando nestes contextos. Não são os únicos, podemos falar do Egipto, do Sudão do Sul ou do Uganda em algum momento que servem de factores de desestabilização acrescida. E, obviamente, esta desestabilização tem um propósito de algum tipo de contrapartida e de benefício, seja ele político, seja ele económico e material.”

Uma parte significativa do ouro extraído no Darfur seria exportada para os Emirados Árabes Unidos. Abu Dhabi é um grande centro de comércio de metais preciosos no mundo. Com este corte das relações diplomáticas, como é que fica a questão do ouro sudanês que ia para os Emirados?

“O impacto não será significativo. O facto de ter cortado relações diplomáticas com os Emirados Árabes Unidos não vai necessariamente ter este impacto directo na continuidade de um apoio, eventualmente, menos explícito, sendo que não é necessariamente assumido. Os Emirados Árabes Unidos têm negado. Convém ressalvar isso.”

Os Emirados Árabes Unidos desmentem qualquer implicação…

“Mas a verdade é que a dinâmica no terreno - e tendo em conta a imensa instabilidade - este reforço da posição militar das Forças de Apoio Rápido com estes ataques a Porto-Sudão, que permitiram uma espécie de entrada numa região que estava supostamente controlada pelas Forças Armadas sudanesas, vai continuar a permitir, quanto mais não seja por baixo da mesa, que o ouro continue a circular, enquanto as Forças de Apoio Rápido considerarem que esse apoio lhes é bastante favorável.

O acesso aos recursos será garantido a partir do momento em que as forças controlam uma parte significativa do território onde estas reservas se concentram. Essa possibilidade irá manter-se até que haja efectivamente uma mudança significativa do rumo do conflito e se consiga, eventualmente um desescalar da violência e se encontre um caminho alternativo para esta situação.”

Disse que o impacto deste corte de relações diplomáticas não será significativo a nível económico ou a nível de circulação do ouro. A outros níveis haverá alguma consequência?

“É difícil fazer essa cenarização. De facto, acho que há um objectivo político de marcar uma posição política por parte do governo sudanês, mesmo no que toca a um potencial envolvimento dos Emirados Árabes Unidos numa eventual solução de apaziguamento deste conflito porque isso também tem sido colocado em vários momentos.

Houve aqui uma tomada de posição política. Tem havido várias tentativas de colocar essa pressão sobre os Emirados Árabes Unidos no sentido de fragilizar a posição das Forças de Apoio Rápido, mas, obviamente, também temos de ter aqui em consideração que as Forças de Apoio Rápido não se fazem valer apenas do apoio dos Emirados Árabes Unidos. Há outros actores que também têm estado bastante investidos nesse apoio e que têm os mesmos interesses de acesso a estes recursos. Por exemplo, o Grupo Wagner de que não se fala tanto, mas também tem tido um papel importante.

Do ponto de vista político, do ponto de vista daquilo que é a imagem dos Emirados Árabes Unidos, fica aqui esta marca de uma ligação muito directa entre aquilo que está a acontecer no Sudão - este cenário de violência – e uma acusação muito grave que é a de estar a pactuar, a colaborar e a financiar o genocídio no Darfur, o que inevitavelmente deixará algumas marcas.”

Ainda que, mais uma vez, os Emirados Árabes Unidos desmintam qualquer implicação?

“Claro que sim. Faz parte, obviamente, das dinâmicas político-diplomáticas de não assumir directamente o envolvimento em situações que são consideradas situações graves, em que se têm cometido actos de violência muito significativos, em que há esta acusação de um crime particularmente grave e que, do ponto de vista da condenação internacional, é particularmente simbólico e importante.

Ou seja, esta ideia do genocídio tem uma carga - dirão alguns que se calhar essa carga já se perdeu também, tendo em conta os acontecimentos noutros contextos do globo - mas não deixa de ter uma carga importante do ponto de vista da responsabilidade que incute sobre a comunidade internacional. Portanto, inevitavelmente, a postura dos Emirados Árabes Unidos será sempre de negar esse envolvimento directo para também não fragilizar a sua posição noutros contextos políticos e geopolíticos e económicos.”

Para quando e em que circunstâncias o desescalar do conflito?

“Não o prevejo para um futuro próximo. Houve quem considerasse que estes últimos desenvolvimentos no Sudão, nomeadamente o retomar do controlo da capital, há uns meses, por parte das Forças Armadas sudanesas, pudesse ter como efeito alguma fragilização do papel das Forças de Apoio Rápido, alguma desmotivação ou falta de condições para continuar esta guerra.

Enquanto as duas partes sentirem que têm a ganhar em continuar esta guerra, dificilmente se conseguirá uma via de entrada, uma oportunidade séria, para um cessar-fogo que possa permitir condições para se iniciar um processo negociado. Independentemente dos cenários possíveis que têm sido suscitados até no sentido de uma eventual secessão da região controlada pelas Forças de Apoio Rápido, nomeadamente o Darfur. Há aqui vários cenários que têm sido colocados em cima da mesa para uma espécie de via de resolução deste conflito. A meu ver, ainda não estão efectivamente criadas as condições para que isso aconteça.

Também não antevejo aqui grande vontade, por parte de grandes actores do sistema internacional ou organizações com alguma capacidade de intervenção até mais musculada, para que isso aconteça. Enquanto o Sudão se mantiver um bocadinho fora do radar mediático da agenda internacional, dificilmente se conseguirá este apaziguamento, essa desescalada da situação no Sudão, infelizmente. Continuaremos aqui a ter meses de intenso confronto militar com os custos humanos dramáticos e terríveis que temos tido no Sudão.”