Macau assinala nesta sexta feira, 25 anos da transferência de soberania de Portugal para a China. A meio caminho deste processo de transição, previsto para durar cinco décadas, é tempo para um balanço e procurar saber qual o sentimento dos habitantes desta região administrativa especial chinesa, antigo território português durante séculos.
Amélia António é advogada radicada em Macau desde os anos 80 do século XX e presidente da Casa de Portugal. Ela começa por fazer um diagnóstico quanto ao cumprimento do que tinha sido acordado entre Lisboa e Pequim quanto a esta transição globalmente respeitado. Segundo ela ele tem sido globalmente cumprido.
Tem sido vivido com muita serenidade. No essencial, tudo o que estava acordado tem sido respeitado. Tudo decorreu dentro de uma grande normalidade. Na vida do dia a dia. As pessoas praticamente não se aperceberam sequer muito de alterações grandes ou de alterações de fundo. Digamos que podemos considerar um tempo até ao COVID. Há o tempo do COVID e o pós COVID. O COVID veio causar muita perturbação. Nós aqui vivêmo-lo de uma forma um bocado violenta e o isolamento que as pessoas tiveram que estar, etc. Causou perturbação em muita gente que fez repensar a sua continuação em Macau. E, a seguir ao COVID houve muita gente, quando abriram novamente as fronteiras, as possibilidades de viajar, etc. Houve muita gente que resolveu regressar a Portugal. Uns porque, enfim, já tinham alguma idade. Outros mais jovens porque ficaram um pouco perturbados e, digamos, assustados com aquele tempo. Foi de facto um período muito difícil e que, esse sim, causou muita perturbação na comunidade portuguesa.
O presidente chinês falou de um grande sucesso em relação a "Um país, dois sistemas". Esta percepção é partilhada ou não?
Eu sei que ainda esta semana a Assembleia Legislativa aprovou uma lei que prevê a demissão de funcionários públicos que sejam considerados como desleais para com Macau ou desleais para com a China.
Sei também que, no passado, por exemplo, na área da comunicação social, muitos profissionais se tinham queixado de agora haver um controlo maior em relação à China. E como é que olha, de facto, para esta parte mais política, ao longo destes 25 anos?
De certo modo, foi um bocado empolado porque quando aparece legislação nova são coisas que existem também nos outros países. O respeito pela bandeira, o respeito por figuras de Estado. E aqui nós não estamos num sistema de censura instalado, etc. Agora, que as pessoas tenham mais cuidado porque não estão no seu país. Estão a falar do vizinho em casa, de quem estão. Portanto, é natural que haja algum cuidado na forma de se expressar.
E acha que isso não se fica também a dever à dimensão que teve a repressão dos protestos pró-democracia em Hong Kong ? Eu lembro-me que no passado havia algumas manifestações, por exemplo, em Macau, para comemorar o massacre de Tiananmen e que de há uns anos para cá já ninguém sai à rua. Portanto, em que medida é que o que aconteceu em Hong Kong não veio a ter impacto em Macau?
O que aconteceu em Hong Kong foi determinante dos cuidados que nunca tinham sido necessários acautelar e implementar em Macau. E que, face a tudo o que aconteceu em Hong Kong, isso veio, digamos, fazer uma espécie de alarme. Sendo que em Macau nunca tinha surgido a necessidade de se pensar que era precisa esta medida ou aquela, porque as coisas em Macau tinham outras características, decorriam de outra maneira. A nossa forma de estar em Macau, as relações das pessoas que vivem em Macau com a República Popular da China foi sempre bastante pacífica.
E acha que se pode falar de alguma submissão de alguma forma dos macaenses relativamente ao que agora é decidido a partir de Pequim ?
Não é submissão. É a compreensão da realidade em que se vive, da realidade do país.
Então a senhora acha que a China está a cumprir com o que tinha sido acordado em relação a estes 50 anos de transferência?
No fundamental, não tenho dúvida nenhuma em afirmar que sim.
Agora, pelo que eu entendi, de facto há neste momento menos facilidade para, por exemplo, cidadãos portugueses se instalarem em Macau para conseguirem a autorização de residência !
Exactamente. Isso foi uma das alterações que surgiu na altura do COVID em que as pessoas estavam um bocadinho distraídas. E essas alterações causam alguma dificuldade à comunidade, porque perdemos pessoas muito qualificadas. Precisamos delas, precisamos... quer dizer que elas foram e não é para voltar. Mas precisamos de outras que ocupem os seus lugares, etc. E, portanto, tudo se tornou mais difícil nesse aspecto. Portanto, isso é uma das questões que estamos na expectativa de perceber como é que vai ser conduzido com o novo chefe do Executivo.
Então, precisamente, ele chama-se Sam Hou Fai e pela primeira vez é um chefe do executivo que até fala português. Macau está sempre a querer apostar nas relações, nas trocas com os países de língua portuguesa. Acha que isto tem pernas para andar? Deposita fé no novo chefe do Executivo?
Tenho bastante esperança porque houve uma grande preocupação, desde que ele anunciou a sua candidatura, que houve uma preocupação muito, muito grande em pôr em destaque a relação com os países de língua portuguesa. A importância do português, o papel da comunidade de língua portuguesa aqui. Isso foi sistematicamente afirmado. Nós vamos entrar numa fase diferente de transição. É o primeiro chefe do executivo, que não vem de famílias, comerciantes ou industriais, etc. Portanto, que é um homem de carreira da máquina do Estado. A ideia que nos dá é que, de facto, a China quer, de certa maneira, libertar Macau da grande influência das famílias que, ao longo destes 25 anos, continuaram a ter grande preponderância na vida económica. Dá a ideia de que as orientações de Pequim, neste momento, passaram a ser mais claras, mais objetivas. E, portanto, é uma nova fase.
E fala-se muito da diversificação económica. Macau, obviamente, é conhecida pelo mundo fora, sobretudo através das receitas do jogo. Para além do jogo, quais são os trunfos que Macau poderá ter, efectivamente, para poder não ficar tão dependente destas receitas?
Há várias áreas em que Macau pode apostar. Macau agora construiu um grande complexo hospitalar novo, que está a ser orientado por um hospital de renome de Pequim. Pode vir a desenvolver, por exemplo, com os hotéis todos que tem e que ficam relativamente próximos, etc. a área da saúde, do turismo de saúde. A parte do ensino, porque Macau tem neste momento várias universidades. O ensino é também um ponto, digamos que a China parece, por alguma ênfase em Macau, ser um centro de disseminação do português, etc.
Fala-se muito na integração, precisamente no grande delta da Baía das Pérolas, com Hong Kong, com a parte continental do sul da China !
Sim, sobretudo a parte do delta. A ligação de Macau com a zona de Cantão, as quatro cidades grandes que eles consideram que fazem parte desta área. Quer dizer, a China está a puxar muito pelas pessoas de Macau para a integração e, portanto, isso pode trazer outras fontes de receita a Macau. São perspectivas várias, mas numa fase de arranque.
Estamos a meio de um percurso. Passaram 25 anos. Faltam outros tantos. Portanto, tem esperança, por exemplo, que a língua portuguesa se venha manter a prazo em Macau, quando Macau for 100% chinesa, quando acabar este período de transição ?
Tenho todas as razões para pensar que sim, porque devo dizer que hoje há pessoas a estudar português em Macau no número que nunca existiu no tempo da administração portuguesa. Hoje o ensino do português está bastante diversificado e existe nas universidades. Existe nas escolas luso-chinesas que começam o ensino desde o ensino infantil a crianças que começam logo daí a aprender português.
E eu devo dizer que a Escola Portuguesa de Macau é muito procurada neste momento. Eu diria que a maior percentagem de alunos da escola não são alunos de origem portuguesa. São alunos locais, muitos deles ou de famílias mistas, ou mesmo só de famílias chinesas. Nós temos alunos na escola, na escola portuguesa, cujos pais não falam de todo o português. Logo de início, a partir do ensino pré primário e primário, são escolas da rede pública. Portanto, é o Governo de Macau a implementar essa aprendizagem de português de raiz. Portanto, isto tem que forçosamente vir a ter repercussões, não é? Vai ter que se sentir o resultado. E, portanto, são razões para sermos optimistas relativamente ao uso do português no futuro.