
Jacinto Mathe obtém doutoramento em Oxford tornando-se o primeiro paleoantropólogo moçambicano
Convidado
Jacinto Mathe obteve recentemente o doutoramento na prestigiada Universidade de Oxford, no Reino Unido, tornando-se assim o primeiro moçambicano a especializar-se em Paleoantropologia.
A sua investigação centra-se nas implicações dos ossos e da ecologia do Vale do Rift Austral para a compreensão da evolução humana.
Jacinto Mathe nasceu com uma malformação congénita que lhe causou a doença do pé-boto bilateral, uma condição que dificulta a locomoção. No entanto, apesar das limitações físicas, nunca desistiu de superar os desafios. Ao longo da sua vida, o seu percurso académico foi notável: obteve a licenciatura em Medicina Veterinária, seguiu com um mestrado em Antropologia Forense e, neste mês de Setembro de 2025, obteve o doutoramento em Paleontropologia.
Com um percurso de vida nada fácil Jacinto Mathe considera que este doutoramento traz-lhe ainda mais responsabilidades não só para o estudo e compreensão do passado pré-histórico da humanidade mas também junto dos mais jovens sendo já visto como um exemplo de que qualquer um pode conseguir atingir os seus sonhos e poder afirmar que o céu é o limite...
RFI: Obteve recentemente o doutoramento em Paleoantropologia pela Universidade de Oxford. Qual é o seu sentimento actual, sabendo que é o primeiro moçambicano a obter esta especialização?
Jacinto Mathe: O sentimento e significado é, primeiro, de que o céu é o limite e que todos nós precisamos trabalhar tão duro e sempre que as oportunidades surgem são sempre para aproveitar e ao mesmo tempo tenho o sentimento de muita responsabilidade de transmitir o que consegui adquirir ao longo desses cinco anos numa universidade de prestígio e que agora serei, aliàs já sou visto como modelo, e que os outros poderão olhar para mim como alguém a seguir e é muita responsabilidade ao mesmo tempo, mas também de honra por fazer parte da equipa dos pioneiros na área em Moçambique.
Eu sou, ao conhecimento até agora, o primeiro moçambicano a ter especialização nesta área de antropologia biológica e especificamente ainda dentro da área neste caso da Universidade em que fiz o doutoramento, a Universidade de Oxford, eu sou o primeiro moçambicano até então, sim.
Este seu percurso pode levar à inspiração e ao acordar de muitas vocações da parte de jovens moçambicanos?
Sim. Já eu tive o privilégio de ser imerso na área de colaborações com diferentes pesquisadores, nacionais e internacionais e ao longo desse percurso percebi que ninguém caminha sozinho e agora será um privilégio e uma honra enorme poder contribuir para outros moçambicanos a crescerem na sua vida académica e olho isto como uma oportunidade ímpar e estou aberto para colaborar e por acaso tenho usado neste caso um desses canais para abrir a mão e informar que na verdade estamos aqui porque alguém investiu e também estarei pronto para poder contribuir para a carreira de muitos.
A sua investigação centrou-se sobretudo nas implicações dos ossos e da ecologia, no Vale do Rift Austral para a compreensão da evolução humana. Ainda há muito trabalho pela frente neste domínio?
Sim, há muito trabalho nesta área em que alguém pode servir como ponte entre a parte da paleoantropologia como tal, estudo de coisas muito antigas, há milhões e milhões de anos e alguém que estuda coisas recentes, estamos a falar neste caso dos especialistas em ecologia, então eu sou como se fosse uma ponte de ligação e nesta área os últimos trabalhos publicados datam por volta de 2009, 2008, 2007 e desde então até agora não há nada recente publicado nesta área, o que quer dizer que isso a nível do mundo, não só a nível de Moçambique, não só a nível de África, o que quer dizer que quem será a próxima pessoa a preencher esta lacuna de investigação nesta área será em grande parte Moçambique, como já temos um dos primeiros especialistas que sou eu para poder colaborar com os outros. Então sim, é uma chance enorme para preencher esta lacuna na área de pesquisa.
O Parque da Gorongosa é para si e tem sido um berço e um local de constante aprendizagem?
Sim, o Gorongosa é um lugar especial em várias questões, em várias vertentes, Primeiro devido à sua localização geográfica, sabemos muito bem que está localizado na última grande porção do vale do Rift africano e todos os países que tiveram esta estrutura geológica deram sua contribuição naquilo que nós chamamos de berço da humanidade, primeiros nestes casos ancestrais, e por outro lado temos uma combinação de grutas ou cavernas, mais de 30 cavernas bem documentadas e mapeadas, o que corresponde ou análogas às que nós temos na África do Sul, que também contribuíram de forma inequívoca para aquilo que eu estudo, a evolução humana, então o Gorongosa é especial nesse sentido, não só, mas também pela sua diversidade, devido, em grande parte, à guerra civil que devastou muito, mas a sua recuperação, a sua história de recuperação é um modelo a nível de África e do mundo, na recuperação da vida selvagem que agora está a crescer de uma forma espetacular, então é muito interessante ter um lugar como este e sinto-me honrado por fazer parte da equipa, fazer parte da geração do projeto da Gorongosa.
Na sua opinião, as autoridades locais e estatais estão conscientes da importância do estudo que o Jacinto leva a cabo, com outros especialistas naturalmente, nomeadamente em Moçambique?
Sim, estão conscientes. A Gorongosa tem um programa da media de cientistas jovens moçambicanos, onde as nossas pesquisas passam pelas televisões locais, isso incrementa o impacto que têm as pesquisas da Gorongosa, não só neste caso na minha área, mas em outras áreas, então sim, estão cientes. E temos a primeira coleção osteológica num parque nacional em Moçambique, onde todos têm o privilégio de visitar sempre que tiverem algum tempinho para passar pela Gorongosa. É um dos locais onde querem mesmo estar e passar mais tempo, e aí nós aproveitamos da oportunidade de dar, inclusive as colaborações com instituições de ensino nomeadamente as universidades, institutos superiores, que já estão em contacto, inclusive um dos moçambicanos que estou agora a supervisionar, que enquanto nós falamos está baseado no Parque Nacional da Gorongosa.
Voltando ao seu recente doutoramento na Universidade de Oxford, e falando agora de uma pessoa que penso é muito importante neste seu percurso, a sua mentora, a professora Susana Carvalho, foi uma das impulsionadoras e motivadoras também deste seu percurso...
Sim. Costumo sempre dizer que a vida como ela funciona, funciona como se fosse uma corda de sisal. Cada filamento contribui para o crescimento e para a construção da própria corda, tornando-a forte até pode puxar, neste caso, um carro ou qualquer veículo. E dentro dessa chave, no não crescer sozinho, tenho a professora Susana como mentora, que não só ela entrou na minha vida no âmbito do doutoramento, mas sim muito antes, em 2017, quando era o Bolseiro de Investigação da Biodiversidade da Gorongosa.
Desde lá, tem acompanhado o meu percurso passo a passo, juntamente com o professor Doutor René Bobe, também que teve um grande impacto na minha pesquisa. Os dois têm trabalhado de lado para aquilo que eu já sinto hoje.
Sabemos que teve um percurso de vida difícil, não podemos passar ao lado disso, mas com resultados que podemos dizer felizes hoje em dia...
Sim... em grande parte a minha motivação para me focar nesta área em que estou especializar-me é que o objeto central do estudo são os ossos, as carcaças, diferentes tipos neste caso, como é que são preservados, como são decompostos em vários cantos. Essa entrada deriva da minha história, do ponto de vista pessoal, devido à malformação congénita que eu tive, e que tive, neste caso, o privilégio de ser corrigido esta malformação em Portugal, que chama-se pé boto, era para poder entender melhor os ossos, o centro, como é que isto aconteceu, quais são os fatores associados, e apaixonei-me por esta área.