
Há oito anos, o norte de Moçambique, mais especificamente a província de Cabo Delgado, rica em gás, tem sido palco de ataques terroristas. Esta semana, o Governo classificou como esporádicas as recentes incursões na região, contradizendo a versão das Nações Unidas, que alerta para o aumento da violência em Cabo Delgado e aponta para a possibilidade de um recorde de ataques em 2025. O cientista político moçambicano Justo Nauva considera que o executivo tem adoptado um discurso "eufemista" sobre a situação, que está actualmente fora de controlo.
O Governo moçambicano classificou, esta semana, como esporádicas as recentes incursões na região de Cabo Delgado, contradizendo a versão das Nações Unidas, que alerta para o aumento da violência no norte do país e aponta para a possibilidade de um recorde de ataques em 2025. Como se explicam estas duas narrativas?
Penso que o Governo tem tido um discurso “eufemístico” em relação ao fenómeno de Cabo Delgado. Mas, no fundo, o que nós estamos a constatar é que o conflito, em Cabo Delgado, está a ganhar uma dimensão que, em algum momento, no início, não se esperava que pudesse chegar a estas proporções, que vão até, digamos assim, aos impactos dos deslocamentos internos, da insegurança humana, entre outros factores. E, por outro lado, temos a perspectiva das Nações Unidas que, por ser um órgão internacional, lida com relações interestatais e relações com outros Estados. Existe, portanto, uma ideia vital relativamente a esta dinâmica de evolução do conflito.
O Governo quer enviar uma mensagem de que o país está estabilizado para garantir que os investidores regressem ao norte do país? Isto quando a empresa francesa TotalEnergies veio dizer que só regressaria ao país quando as condições de segurança estivessem reunidas…
Este discurso governamental deve ser compreendido como um mecanismo de justificação de acções de interesse do próprio Governo, face às dinâmicas de investimento e face aos diversos actores que estão interessados, digamos assim, na exploração dos recursos naturais naquela região. Esse é um ponto de partida. O outro ponto de partida é compreender, também, a securitização do Estado naquela zona, que, muitas das vezes, está ligada ao controlo, particularmente da zona que alberga os próprios recursos.
Zona que é rica em gás…
Exactamente. Então, muitas das vezes, a actuação das Forças Armadas de Moçambique e das forças ruandesas tem sido muito mais de acção quando se identifica, digamos assim, o actor adverso, no contexto do combate ao conflito em Cabo Delgado. É preciso compreender que Moçambique está numa situação bastante complicada, sob o ponto de vista de resposta estratégica face a este conflito. E esta fase complicada e de crise não se resolve com a suavização do discurso governamental de estabilização. A realidade é outra em Cabo Delgado. Todo o mundo sabe disso. Quando nós acompanhamos, quando vamos ao terreno, percebemos que as coisas estão complicadas.
As Nações Unidas avançam que, desde o mês de Agosto, os testemunhos dão conta da expansão da urgência do norte para o sul de Cabo Delgado. Ancuabe, Chiúre e Balama têm sido alvos preferenciais dos insurgentes. Neste momento, as forças moçambicanas, apoiadas pelas forças ruandesas, lutam contra o terrorismo. O que é que tem falhado?
É preciso que se compreenda que, diante desta instabilidade, é necessário que o Governo comece a pensar em estratégias, respostas específicas e claras em relação ao conflito em Cabo Delgado. Existe aqui uma problemática que diz respeito à forma como se actua concretamente para fazer face a este conflito. Talvez a grande questão que se deve colocar é: como é que tem sido a nossa acção de segurança? Como é que tem sido a acção de combate ao terrorismo, ao movimento jihadista que opera em Cabo Delgado? Só depois se poderá definir uma estratégia clara.
Que estratégias seriam essas?
Essas estratégias devem estar aliadas às políticas de segurança em Moçambique e em Cabo Delgado.
Perceber as falhas de segurança no norte do país. O que é que falhou para que um grupo terrorista se tenha instalado?
O fenómeno de Cabo Delgado é um fenómeno que lida com a segurança, que lida com a questão da militarização. Penso que existe uma profunda fragilidade institucional de segurança, sob o ponto de vista da actuação das nossas Forças Armadas em Moçambique. E, quiçá, por mais que nós tenhamos o apoio da força ruandesa, há uma fragilidade do ponto de vista material, bélico, e de outros recursos transversais que possam fazer face a este fenómeno.
Numa entrevista ao canal de televisão Al-Jazira, o Presidente de Moçambique, Daniel Chapo, voltou a admitir a possibilidade de dialogar com as lideranças do grupo terrorista. De que forma poderia ser viabilizado este diálogo? E com a ajuda de quem?
É necessário que se identifiquem as lideranças, as pessoas desses grupos terroristas, para que se possa conversar, negociar. Porque, partindo do pressuposto da forma como nós saímos da guerra de 16 anos, em que tínhamos dois beligerantes identificados na história de Moçambique, a FRELIMO e a RENAMO, que conseguiram, digamos assim, colmatar uma espécie de diálogo e chegaram a um processo de pacificação, por um lado.
Por outro lado, temos um grupo que se militarizou em Cabo Delgado e o Governo, desde o final de 2017, não foi capaz de mostrar uma estratégia concreta de negociação com este grupo. A questão que mais me preocupa é: se pretendemos negociar com este grupo, é preciso que se identifique o espaço geográfico do grupo. Esta é a primeira questão. Depois, há outra questão: com quem é que nós queremos negociar? Porque é um grupo específico que demonstra ter lideranças que comandam, que dão uma certa autoridade para operações militares.
O embaixador da Rússia, em Maputo, declarou a disponibilidade do país para partilhar a experiência com Moçambique, para travar a insurgência armada na província de Cabo Delgado, garantindo ter nomes dos terroristas para partilhar com as autoridades. Que conhecimento pode dar a Rússia a Moçambique? E que interesses tem a Rússia nesta zona?
É expectável que tenhamos diversos actores, numa perspectiva de ajuda, por um lado, mas também numa perspectiva de interesses desses actores em relação ao Governo de Moçambique e à região, nomeadamente interesses económicos. Mas também devemos recordar que as relações entre Moçambique e a Rússia remontam aos tempos da luta de libertação nacional. Já tivemos, também, um grupo específico que operou entre 2017 e 2018 em Cabo Delgado.
O grupo Wagner…
O fenómeno do terrorismo não poderá ser apenas resolvido pelas autoridades moçambicanas. Intervenientes de outras esferas globais poderão apoiar na luta contra este fenómeno em Cabo Delgado.
A União Europeia, por exemplo. Portugal também se veio mostrar disponível para ajudar e cooperar com o Governo moçambicano no fortalecimento das Forças Armadas…
Quando temos o Governo a justificar que o conflito de Cabo Delgado se trata de um problema de terrorismo, assume-se a ideia de que não se pode resolver apenas a partir de um Estado nacional. É necessário o envolvimento de outros intervenientes externos, organizações, Estados de cooperação. Não só Portugal, mas a União Europeia tem vindo a fazer um trabalho, desde o início do conflito até cá, no apoio ao Governo de Moçambique, entre outros intervenientes. Temos essa abertura do mundo para ajudar Moçambique.