Bangladesh: "Muhammad Yunus é a pessoa certa para acalmar uma sociedade muito polarizada"

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RFI Português
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O vencedor do Prémio Nobel da Paz, Muhammad Yunus, foi designado para o cargo de chefe do Governo interino no Bangladesh. O economista, conhecido por ter reduzido a pobreza no país, disse estar pronto para assumir as responsabilidades. Luís Tomé, professor catedrático e investigador sénior do Instituto português de Relações Internacionais, considera que a escolha de Muhammad Yunus era a mais expectável, sublinhado que o nome do prémio Nobel da Paz era uma das exigências dos manifestantes.

RFI: Muhammad Yunus foi designado para gerir o Governo interino no Bangladesh, ele que tentou formar o próprio partido em 2007. Esta nomeação era expectável?

Luís Tomé, professor catedrático e investigador sénior do Instituto português de Relações Internacionais: Sim, era expectável. Por um lado, porque ele próprio já se tinha disponibilizado para poder governar o país, sobretudo como alternativa àqueles que são os partidos históricos dominantes da política do Bangladesh- para além das ditaduras militares e das Forças Armadas- ou seja, o da primeira-ministra que se demitiu e o Partido Nacional do Bangladesh. E, por outro lado, esta era uma das exigências dos manifestantes que tinham feito constar no caderno de reivindicações um Governo interino, precisamente liderado pelo economista e Prémio Nobel da Paz, Muhammad Yunus.

Que lugar vão ter os estudantes na composição deste Governo interino?

Eu vejo como difícil que os estudantes tenham lugar neste Governo. Certamente que haverá negociações e, portanto, pode haver um ou outro elemento das universidades, em particular, a fazer parte do Governo. Mas a situação é crítica e de grande instabilidade, porque com relativa facilidade o Bangladesh pode voltar a cair perante uma ditadura militar. Pode haver um golpe, por esta via mais civil, se não forem marcadas eleições. No passado já houve várias ocasiões de golpes e ditaduras militares e o Bangladesh sabe disso.

Esta foi, de resto, a postura do secretário-geral da ONU, António Guterres, que veio defender a realização de eleições democráticas. Trata-se de uma prioridade para o país?

O Governo de Muhammad Yunus é um Governo interino. Ele vai ter estabilizar o país, pôr a economia a funcionar e, sobretudo, gerar emprego- 40% dos jovens não estuda, nem trabalha. Ele vai ter de criar condições para marcar, no prazo razoável de um ano e meio a dois anos no máximo, eleições.

Recorde-se que a primeira-ministra Sheikh Hasina, que acaba de renunciar, tinha sido eleita mais uma vez, embora com eleições muito, muito contestadas em Janeiro. Agora com o Governo interino, que resulta de uma negociação entre Forças Armadas e manifestantes, tem que haver um poder legitimado e eu estou em crer que isso acontecerá.

Em 2006, Muhammad Yunus recebeu o Prémio Nobel da Paz pelos esforços económicos graças ao micro-crédito, este homem que é também conhecido como o banqueiro dos pobres. Considera que será capaz de responder aos desafios do Bangladesh?

Ele tem as condições para o fazer porque está muito bem preparado. Ele é economista e, aliás, alguns até dizem que para além do Nobel da Paz também deveria ter recebido o Prémio Nobel da Economia. Ele vive num país tradicionalmente muito pobre, embora tenha havido um crescimento económico depois de 2009. Com esse conhecimento da realidade do Bangladesh, esse reconhecimento internacional e o background económico, acho que é a pessoa indicada para acalmar uma sociedade muito polarizada, dividida, contando com o apoio da comunidade internacional.

Obviamente que o apoio externo- para um país que está nas circunstâncias em que Bangladesh está- é crucial e, portanto, eu acho que ele tem condições internas e externas para conseguir estabilizar o país, colocando-o de novo na rota do crescimento económico. Se as coisas ocorrerem como se espera, ele tem, naturalmente, as condições para ser eleito em eleições livres, apesar da suas idade.

Muhammad Yunus tem 84 anos….

Sim, já tem 84 anos, o que não lhe vai permitir muito tempo à frente dos destinos do país. Mas, creio que é a pessoa certa para colocar o Bangladesh nos carris do desenvolvimento e da estabilidade política. E se ele conseguir fazer isso, para além de tudo o que já fez no combate à pobreza e o que fez para outros países, deixará um legado importantíssimo para o futuro político do Bangladesh.

A violência no Bangladesh começou com manifestações pacíficas dos estudantes contra as quotas na função pública, conferindo até 30% dos postos de trabalho a combatentes da guerra de independência. O Governo acabou por anular 95% das quotas, mas ainda assim, a violência culminou na morte de 400 pessoas. Temos estado aqui a falar da transição política. Considera que são também importantes mudanças estruturais nesta sociedade?

Sim, são importantes. Do ponto de vista económico, é verdade que a primeira-ministra que saiu -fugiu- conseguiu aquilo que alguns até consideram uma espécie de milagre económico, sobretudo com desenvolvimento da indústria têxtil que emprega uma parte substancial da população do Bangladesh. E, aliás, houve uma série de anos em que a média de crescimento económico anual era de 6%.

Mas o problema é que esse crescimento económico foi acompanhado por progressos de autoritarismo, sob o domínio da própria Liga Awami e da primeira-ministra e, portanto, alguns opositores foram presos. Por exemplo, a antiga primeira-ministra, a líder do Partido Nacional de Bangladesh e o Prémio Nobel da Paz chegou a ser detido, seis meses no início de 2014, porque também contestava a evolução do país.

A líder da oposição que foi, entretanto, posta em liberdade…

A primeira- ministra Sheikh Hasinaque, conhecida como Dama de Ferro, renunciou e fugiu para a Índia -alguma imprensa avança que o destino final será o Reino Unido- houve também demissões na polícia. O país terá condições para julgar os responsáveis por esta onda de violência?

Eu creio que sim. Mas há aqui um papel importantíssimo das Forças Armadas. Aliás, não é caso único, já aconteceu em vários países da região como, por exemplo, no Paquistão. Lembremos que o Bangladesh é o antigo Paquistão Oriental, do qual se tornou independente em 1971, com o apoio da Índia. Eu não estou certo que a senhora demissionária vá para o Reino Unido. É muito provável que fique na Índia. Recordo também que esta é a terceira vez que ela se exila na Índia. Em 1975, quando o pai- o fundador e primeiro Presidente do Bangladesh, foi assassinado, ela exilou-se, regressando depois ao país. Em 1982, após o golpe militar no Bangladesh, ela volta a exilar-se. Esta é a terceira saída. Nós sabemos como alguns processos estão pacificados por uma espécie de acordo de não vingança e, portanto, não punição dos responsáveis de certo tipo de regime e de violência, neste caso em concreto.

Mas podem optar pela amnistia dos responsáveis pela violência?

Eu não sei qual é a negociação política que está em curso e o que vai decorrer nos próximos dias. Há sempre uma espécie de "pau de dois bicos". Por um lado, por uma questão de justiça, os responsáveis, designadamente da polícia, ou os activistas da Liga Chhatra do Bangladesh- que era uma filial estudantil do partido da primeira-ministra Sheikh Hasinaque que também instigou a violência contra outros manifestantes- poderão ser julgados.Todavia, isso pode continuar a fractura na sociedade.

Ou então haverá uma espécie de acordo em que- tal como aconteceu em Portugal, depois do 25 de Abril- não se busca tanto a justiça e até alguma vingança para evitar polarização, conseguindo-se estabilizar o país. Mas isso é uma questão interna e os próprios vão ter que decidir com o apoio dos militares. Cada caso é um caso. Os próprios actores da sociedade conhecem melhor as circunstâncias e decidirão se prendem os responsáveis por estas estimadas 400 mortes, neste último mês e meio, ou se preferem procurar a pacificação, através de uma espécie de amnistia para quem esteve ligado ao regime da senhora Sheikh Hasinaque e, designadamente, à violência das últimas semanas.