Nos 50 anos da independência de Cabo Verde, a RFI publica várias reportagens sobre o tema. Neste sexto episódio, damos voz às mulheres que também escreveram a história da luta de libertação. “A história da luta armada de libertação nacional tem sido escrita fundamentalmente pelos homens”, adverte Josefina Chantre, avisando que “a participação da mulher na luta foi tão importante como a do homem”. Nesta reportagem também falamos com Amélia Araújo, "a voz da luta" na Rádio Libertação, e com Maria Ilídia Évora, Marline Barbosa Almeida e Ana Maria Cabral.
Esta é uma história de mulheres que lutaram pela independência de Cabo Verde. Uma delas, Josefina Chantre, diz que “a história da luta armada de libertação nacional tem sido escrita fundamentalmente pelos homens” e lembra que “a participação da mulher na luta foi tão importante como a do homem”.
Josefina Chantre foi uma das fundadoras da Organização das Mulheres de Cabo Verde, depois de ter estado numa das muitas frentes de batalha da luta liderada pelo PAIGC: a informação. Trabalhou no jornal “Libertação-Unidade e Luta” e na Rádio Libertação, os órgãos de comunicação oficial do partido.
“Cabral dizia que toda a frente de luta era uma frente. A minha frente de luta, a minha arma, era a comunicação social”, resume Josefina Chantre.
O Jornal Libertação foi criado em 1960 e a Rádio Libertação começou a emitir em 1967 e era o “canhão de boca” da luta, dizia o líder do partido, Amílcar Cabral. A voz da luta era precisamente a de uma mulher, Amélia Araújo, angolana de origem cabo-verdiana, tão conhecida pelo "Programa do Soldado Português" e pelo programa "Comunicado de Guerra".
“Durante a guerra, durante a luta, as mulheres tiveram vários postos. Cabral fazia questão de valorizar as mulheres. Então, nós tínhamos camaradas em posições de relevo”, recorda Amélia Araújo, admitindo que não eram muitas, mas que se destacaram, apontando os exemplos de Dulce Almada e Carmen Pereira.
Maria Elídia Évora, conhecida como Tutu, foi a única mulher no grupo de 31 cabo-verdianos que receberam formação político-militar em Cuba para um eventual desembarque em Cabo Verde, cujo objectivo seria desencadear a acção armada no arquipélago. Em Cuba, sentiu-se descriminada pelos camaradas, mas contou com o apoio de Amílcar Cabral quando a tentaram excluir do grupo. O projecto de desembarque acabou por não se concretizar e o grupo foi disperso por várias frentes de batalha na Guiné. A maioria dos companheiros de Tutu foram para o mato lutar com armas. Ela foi tentar salvar vidas nos hospitais de Boké e Koundara, depois foi enviada para a ex-República Democrática Alemã estudar enfermagem e obstetrícia.
Dos tempos de Koundara, lembra-se da surpresa inicial quando viu as instalações rudimentares e sem condições do hospital. “Fizemos o que era possível fazer, levámos mais de uma semana a limpar aquele lugar para estar mais ou menos. Não é que fosse um grande sítio para fazer as operações, mas a gente fazia, não tinha outro remédio”, lembra Maria Elídia Évora.
O líder da luta, Amílcar Cabral, tinha ideais de emancipação e participação das mulheres. Em 1965, o PAIGC instituiu, na Guiné, a equidade de género no respeitante à esfera familiar, profissional e política. A partir de 1967, as mulheres foram integradas nas milícias populares criadas para a protecção da população civil. Em 1970 foi decidido que, pelo menos, dois em cada cinco dos membros dos comités da Tabanca deveriam ser obrigatoriamente mulheres. Em 1972, as mulheres passaram a integrar os júris dos tribunais populares. Por outro lado, na Escola-Piloto de Conacri vigorava a equidade de género a nível dos comités de gestão e da representação dos estudantes.
Porém, Amílcar Cabral era uma voz solitária num mundo de guerra dominado historicamente pelos homens, admite Josefina Chantre.
“Cabral nunca fez distinção entre homem e mulher. Eu costumo dizer que Cabral foi um grande visionário porque o que agora se diz da igualdade de género, na altura, ele já tinha pensado nisso porque ao criar os comités de tabanca, ele exigia que de cinco elementos, duas pessoas, pelo menos, tinham que ser mulheres. Por outro lado, ele dizia-nos sempre que a nossa emancipação, a verdadeira emancipação da mulher, teria que ser fruto da própria mulher e que não pensássemos que haveria algum homem que viesse realmente lutar pela nossa emancipação. Inculcava-nos sempre esse espírito e ele sempre respeitou as mulheres, ele sempre deu o devido valor porque a mulher é mãe, a mulher é tudo. Eu acho que somos a metade do céu e Cabral tinha na sua mente a verdadeira noção do valor da mulher a nível global”, acrescenta Josefina Chantre.
“Nós até hoje ainda estamos a lutar. A mulher foi duplamente explorada durante o regime colonial português, explorada pelo regime colonial e pelo próprio homem. Nós ainda temos resquícios da nossa origem escravocrata, portanto, ainda temos muito machismo na nossa sociedade. Eu penso que na nossa luta já atingimos várias vitórias, mas os nossos desafios ainda são maiores. Nestes 50 anos, o balanço que eu faço é que a mulher ganhou tudo com a independência, mas ainda temos a tal história do machismo. Temos que trabalhar bastante a mentalidade e a mentalidade das coisas é muito difícil de se mudar”, comenta.
Com Amílcar Cabral, o PAIGC foi considerado como um movimento político que fez um esforço de promoção da mulher, mas elas estavam, sobretudo, na retaguarda. Marline Barbosa Almeida é outra resistente que combateu duplamente na sombra, por lutar na clandestinidade em Cabo Verde e por ser mulher.
“Eu, como mulher, embora estivéssemos a lutar pela independência, tinha noção de que não valia tanto como os homens naquela altura. Havia sempre aquele recuo em relação às nossas opiniões, principalmente quando metia a igualdade, não nos levavam muito a sério nesse aspecto, mas noutro aspecto procuravam o nosso esforço, o nosso trabalho para que a luta continuasse”, afirma Marline Barbosa Almeida. Ela acrescenta que, aquando do regresso dos cabo-verdianos da Guiné-Bissau, “em conversa com alguns militantes que vieram da luta armada, eles disseram: ‘Nós queremos uma mulher que não nos canse a cabeça’”.
No livro “Os Dirigentes do PAIGC, da Fundação à Ruptura [1956-1980]”, Ângela Benoliel Coutinho fala na quase ausência de mulheres na direcção do partido e em “esposas na sombra”. Também no artigo “Militantes Invisíveis: as cabo-verdianas e o movimento independentista (1956-1974)”, ela recorda que, em várias ocasiões, em discursos proferidos para militantes e dirigentes do movimento, Amílcar Cabral mencionou situações em que os homens resistiam à participação activa por parte das mulheres e essa oposição tornava-se ainda mais intensa, apesar de silenciada, quando às mulheres eram atribuídos cargos de responsabilidade.
“À medida que se vão fazendo investigações, que têm sido poucas até à data, vai-se descobrindo que as mulheres cabo-verdianas (e aqui abro um parênteses para especificar que me refiro àquelas nascidas em Cabo Verde e que foram educadas lá, mas também a filhas de cabo-verdianos que nasceram noutros territórios, nomeadamente noutros territórios africanos e que se assumiram como cabo-verdianas), vamos descobrindo que estiveram presentes desde a primeira hora e que actuaram desde o início nas diversas frentes. Antes de o PAIGC ter iniciado a frente da guerrilha, actuou a nível diplomático e houve mulheres cabo-verdianas que tiveram uma presença forte nesse âmbito”, explica a investigadora à RFI.
Ângela Benoliel Coutinho acrescenta que as mulheres cabo-verdianas também estiveram presentes no sistema de saúde e de educação criado por Amílcar Cabral nas zonas ditas libertadas e que houve comissárias políticas que tinham treino para guerrilha. A historiadora diz, ainda, que tanto as autoridades portuguesas quanto o PAIGC “foram grandemente omitindo a presença e a actuação destas mulheres” e que “essa invisibilização ocorreu já durante o próprio processo”.
Ana Maria Cabral cresceu num ambiente familiar de resistência e o seu combate começou bem antes de conhecer Amílcar Cabral, com quem viria a casar. Nascida na Guiné-Bissau, emigra para Angola muito nova porque o pai, médico, tinha sido deslocado para essa ex-colónia. Em Luanda, frequenta a escola portuguesa, onde eram raros os alunos africanos. Depois, foi para Portugal fazer o liceu, foi activista, frequentou a Casa dos Estudantes do Império. Foge de Portugal, foi estudar para a então Checoslováquia, foi vice-presidente da secção daquele país da União Geral dos Estudantes da África Negra. Conacri foi o destino seguinte, onde integrou as fileiras do PAIGC e foi professora na Escola-Piloto, criada para receber os filhos dos combatentes e os órfãos de guerra.
Questionada sobre como foi ser companheira de Amílcar Cabral, Ana Maria responde que “não foi fácil” e que hesitou “por causa da diferença de idade e pela responsabilidade de ser companheira de um líder como ele”.
Talvez tenham sido resistentes na sombra, mas as mulheres tiveram um papel activo na luta de libertação de Cabo Verde. De notar que nenhuma delas foi ministra durante o regime de partido único do PAIGC, entre 1975 e 1991. Mulheres e homens estiveram na mesma frente de batalha, no entanto, a emancipação da mulher é um combate que persiste até hoje.