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De segunda a sexta-feira (ou, quando a actualidade o justifica, mesmo ao fim de semana), sob forma de entrevista, analisamos um dos temas em destaque na actualidade.

"Israel emerge como um parceiro privilegiado na administração Trump"
04 February 2025
"Israel emerge como um parceiro privilegiado na administração Trump"

O Presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, e o primeiro-ministro israelita, Benjamin Netanyahu, reúnem-se esta terça-feira, 4 de Fevereiro, em Washington. Em causa está a segunda fase do acordo de cessar-fogo na Faixa de Gaza e a sobrevivência do actual executivo de Israel. Sónia Sénica, investigadora integrada do Instituto Português de Relações Internacionais da Universidade Nova de Lisboa, fala da importância desta visita, sublinhando que Israel emerge como um parceiro privilegiado na administração de Donald Trump.

O primeiro-ministro israelita, Benjamin Netanyahu, é o primeiro líder estrangeiro a ser recebido na Casa Branca desde a tomada de posse de Donald Trump. Que mensagem se pretende enviar com este encontro?

Demonstra uma mensagem muito clara, em termos de política externa, com Israel a emergir como um parceiro muito relevante e privilegiado para a administração de Donald Trump. Estão em curso dinâmicas de conflitualidade, quer na Europa, quer no Médio Oriente, e Trump já deixou muito claro que em qualquer uma das duas, terá de haver uma resolução — nomeadamente no Médio Oriente — reiterando o apoio a Israel.

Obviamente, isso passará por criar uma nova arquitectura de segurança regional, mantendo o reforço da posição de Israel, tentando, com isso, dissuadir e conter aquilo que é a influência, sobretudo, de Teerão. E, nesse sentido, fica aqui muito vincada nesta primeira deslocação de um líder estrangeiro a Washington para se encontrar com Trump. No fundo, essa linha permanente de política externa norte-americana que- comTrump- privilegia muito mais a dimensão bilateral do que propriamente o multilateralismo.

Esta cimeira Trump-Netanyahu marca o arranque das conversações com vista à concretização da segunda fase da trégua entre Israel e o Hamas. Esta segunda fase começa bem? Quando se sabe que Israel continua com a operação militar na Cisjordânia…

Começar por dizer que este é um cessar-fogo que foi alcançado ao longo de muitos meses de intensas negociações sob mediação internacional, também norte-americana, e com muita dificuldade de se conseguir concertar a posição das duas partes. Ainda assim, foi importante que o efeito Trump conseguisse, no fundo, pressionar [as partes]. Eu creio que, sobretudo para Israel, aceitar as condições do Hamas - relativamente àquilo que são os objectivos e a dificuldade de se avançar com a implementação deste acordo - mostra claramente essa fragilidade.

Por outro lado, também mostra, do meu ponto de vista, que é Washington quem está a ditar a cadência dos eventos da parte de Israel. Eu relembro que este acordo — proposta de acordo — foi avançada pelo então Presidente Joe Biden e, obviamente, foi dada a entender que seria um acordo de proposta da liderança de Netanyahu. Rapidamente se percebeu que havia aqui uma estreita articulação entre Israel e Washington para, no fundo, se conseguir esta paragem das hostilidades militares, sobretudo por causa de uma crítica muito grande em termos internacionais.

Neste momento, claramente, Netanyahu desloca-se, do meu ponto de vista, a Washington para mostrar que é um país que conta com o apoio dos Estados Unidos. É absolutamente vital para alavancar a credibilidade e o prestígio internacional de Israel - quer na região, quer em termos internacionais - que estava a ser minimizada.

Depois, de alguma forma, não há credibilidade da parte de Israel face ao Hamas, no cumprimento do acordo, nem dos seus procedimentos, e por isso é preciso articular novamente com o parceiro norte-americano. Acrescenta-se a contínua pressão, sobretudo interna - das famílias dos reféns - para se alcançar a libertação dos mesmos ou a restituição, entendamos, dos presídios às suas famílias, para encerrar aqui, digamos, um ciclo de trauma colectivo da sociedade israelita.

Esta segunda fase prevê a libertação dos restantes reféns, a declaração de uma calma sustentável no território e a retirada total das tropas israelitas da Faixa de Gaza do corredor de Filadélfia, na fronteira com o Egipto. Esta questão do corredor de Filadélfia é uma questão muito sensível para Israel, que já veio dizer que não vai querer abrir mão dela…

É sensível e muito ambiciosa. Naturalmente, é exigível pelo Hamas, mas não vai ao encontro daquilo que são as garantias de segurança exigidas por Israel. E, portanto, a dificuldade de conseguir cumprir com as exigências de parte a parte remete, desde logo, para a falta de confiança mútua que várias vezes tem posto em causa a implementação deste acordo. Remete, igualmente, para a necessidade de que os mediadores internacionais, sobretudo os Estados Unidos, se empenhem para que os restantes parceiros - mediadores -consigam obrigar as partes a cumprirem com o estipulado.

Todavia, não é garantido, do meu ponto de vista, que se consiga essa segurança de parte a parte para alavancar o cumprimento total deste cessar-fogo. São várias fases, indiciando claramente uma grande fragilidade, sendo que a fase seguinte remete para a necessária implementação da fase anterior. Tudo isto exige aqui um grande traquejo, na dimensão das diligências político-diplomáticas, mas creio que Netanyahu, com esta visita a Washington, quer mostrar força, algo que nesta fase não estava a conseguir projectar. Nomeadamente, para o próprio Hamas. 

Benjamin Netanyahu, que tinha prometido erradicar o Hamas, mas não o conseguiu fazer, está também muito fragilizado, mesmo no seio da própria coligação. Quais são os interesses de Netanyahu com esta visita?

Temos aqui várias questões com esta conflitualidade que têm minado aquilo que é a legitimidade política da liderança de Netanyahu, com dificuldades na própria gestão. Mas há uma coisa que me parece vincada: Netanyahu, ao ceder às exigências de Trump com este cessar-fogo, acabou por, em certa medida, colocar em causa ou perigar a própria preservação na governação de Israel. E, aliás, notou-se pelas diversas fragilidades dentro da coligação governamental e por aquilo que foram algumas saídas de ministros importantes que apoiavam Netanyahu. Obviamente que, nesta fase, só poderá tentar alavancar a dimensão externa para se reforçar também internamente, porque a maneira de afastar as críticas e a falta de legitimidade internamente é, no fundo, projectar essa ideia de força enquanto liderança, conseguindo gerir um difícil dossier, que é, por exemplo, a restituição e a libertação dos reféns que ainda estão nas mãos do Hamas.

Relativamente às ambições de Netanyahu, desde o princípio, eu creio que, de alguma forma, a preservação da sua liderança. A desresponsabilização pelo ataque perpetrado pelo Hamas no dia 7 de Outubro, o não conseguir que Israel seja um Estado que garante segurança aos seus cidadãos, é, obviamente, o que está a ser julgado ao longo destes vários meses de conflitualidade e de liderança política de Netanyahu.

O que é que procura Donald Trump? No plano diplomático, a normalização das relações, por exemplo, de Israel com a Arábia Saudita?

Sim, em certa medida, será também essa normalização que, aliás, já estava em curso. Donald Trump quer muito emergir, foi dito pelo próprio na tomada de posse, com uma liderança pacificadora em termos internacionais. Um Estado com grande poder em termos internacionais, sob a sua liderança, que consegue, por um lado, a protecção do interesse nacional norte-americano, mas, por outro, projectar essa imagem de pacificador em termos internacionais. Ou seja, terminando com as dinâmicas de conflitualidade que põem em causa os próprios interesses norte-americanos e as exigências, em termos do fornecimento de equipamento militar ou o financiamento, de alguns países aliados, até agora, que têm necessitado desse mesmo apoio.

Há também uma ambição de Donald Trump querer ser nomeado, por exemplo, para o Prémio Nobel da Paz, com este alcançar da pacificação, quer no Médio Oriente, quer até na própria Ucrânia.

Donald Trump, que, de resto, cometeu uma gafe quando falou na transferência de palestinianos de Gaza para o Egipto e para a Jordânia. Na semana passada, o Egipto, Jordânia, Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos e o Qatar divulgaram uma posição conjunta, rejeitando quaisquer planos para transferir populações palestinianas.

Eu creio que terá sido uma comunicação pouco cautelosa da parte do Presidente norte-americano que podia pôr em causa a continuidade do cessar-fogo, a eventual retoma de negociações para a criação de dois Estados e o reconhecimento do próprio Estado palestiniano por Israel e em termos internacionais. Este tipo de declaração mina, obviamente, o chamado processo de pacificação - a estabilidade do Médio Oriente - e não é abonatório para a posição de Israel. Porém, também não é abonatório para a posição de Washington, que quer emergir como um pacificador.

Obviamente, foi completamente descartada essa possibilidade, sobretudo pelos países de acolhimento - a Jordânia e o Egipto - que não querem continuar a ser países receptores de fluxos migratórios. E, neste caso, até seria uma deslocação forçada por parte dos palestinianos. Esta declaração não vai ao encontro da necessidade da causa palestiniana, nem daquilo que são os países da região que, de alguma forma, acalentam uma nova arquitetura de segurança no Médio Oriente. Uma arquitectura que seja estável e abonatória para qualquer um dos lados.

"Guerra comercial dos EUA não é apenas económica, mas também política"
03 February 2025
"Guerra comercial dos EUA não é apenas económica, mas também política"

O Presidente norte-americano anunciou taxas de 25% sobre produtos do Canadá e México e 10% sobre importações da China. O investigador do IPRI-Instituto Português de Relações Internacionais e professor do ISCET-Instituto Superior de Ciências Empresariais e do Turismo, José Pedro Teixeira Fernandes, afirma que a guerra comercial dos EUA "não é apenas económica, mas também política", já que Donald Trump acredita que a globalização prejudicou a economia norte-americana, especialmente com acordos como o NAFTA, entre os Estados Unidos, o Canadá e o México.

RFI: Estamos perante uma guerra comercial? Quais os impactos económicos que estas novas medidas anunciadas por Donald Trump podem ter?

José Pedro Teixeira Fernandes: Estas medidas que estão a ser anunciadas irão ser aplicadas proximamente pelo governo americano. Em primeiro lugar, importa notar que já eram de alguma forma antecipadas por tudo o que Donald Trump tinha dito na campanha eleitoral. Naturalmente, isto não invalida o seu impacto real, que veremos muito provavelmente nos próximos meses ou até anos. Esta guerra comercial, termo que acaba por captar um pouco o conflito, mesmo sendo uma metáfora, dá-nos a ideia de que estamos perante um conflito que não é só comercial, não é só económico. Este é talvez o aspecto mais importante para entendermos o que está em jogo. Temos tendência, o que é compreensível, para analisar as coisas de forma compartimentada: política é política, economia é economia, e assim por diante. Mas a realidade, a este nível, é que estamos a falar de um cruzamento de medidas com impacto económico e empresarial, o que é indiscutível, e no bem-estar, naturalmente, mas também com importantes ramificações políticas. Isso torna a avaliação do que vamos assistir nos próximos tempos particularmente difícil. Donald Trump tem um quadro mental, uma visão do mundo na qual parece mesmo acreditar genuinamente, de que o modelo de economia mais liberalizada e globalizada que se instalou nos últimos 25, 30 anos (ou até mais) é largamente prejudicial à economia americana.

Muitos sectores de actividade deslocaram-se para outros países, não apenas pela globalização, mas também por acordos comerciais de integração regional. É o caso do NAFTA, substituído pelo acordo que Donald Trump negociou para lhe suceder (o Acordo Estados Unidos-Canadá-México). Na prática, isso leva, na óptica do governo americano e em particular do seu Presidente actual, a um desequilíbrio comercial injusto para os Estados Unidos. A balança comercial norte-americana, quando comparada com o Canadá, o México, que são os dois parceiros na América do Norte, a China e alguns Estados europeus, está desequilibrada. Em alguns casos, muito desequilibrada. E Donald Trump propõe-se a ajustar isso a favor dos Estados Unidos, não recorrendo a meios mais convencionais, como iniciar um longo processo de negociações comerciais feitas de forma discreta, como seria mais tradicional, eventualmente no quadro da Organização Mundial do Comércio (OMC), que ele ignora na totalidade. Prossegue, antes, com um conjunto de medidas bilaterais como as que irão entrar em vigor no caso do Canadá e do México. Assume, também, que isso está directamente relacionado com os problemas migratórios e com entrada das drogas nos Estados Unidos, que vêm ambos largamente pela pela fronteira sul.

No fundo, estamos a falar de uma guerra comercial com muitas ramificações políticas ou geopolíticas, o que implica, ou implicará, negociações bastante difíceis em áreas que vão, em alguns casos, muito além do comércio.

As reacções foram rápidas. O Canadá considera o impacto económico negativo dessas taxas. O México afirma que os Estados Unidos fazem "acusações infundadas". A China, com um grande défice comercial com os Estados Unidos, anunciou que tomará medidas para defender os seus interesses, incluindo a possibilidade de recorrer à Organização Mundial do Comércio. Donald Trump sugeriu que a União Europeia possa ser o próximo alvo dessas mesmas taxas alfandegárias. A retaliação desses países pode criar um isolamento dos Estados Unidos no comércio internacional?

Um isolamento dos Estados Unidos no comércio internacional é difícil, dada a centralidade dos EUA na economia mundial. É verdade que, quando analisamos a questão do ponto de vista da transação internacional de mercadorias, a China já ultrapassou os Estados Unidos. A China é o número um mundo nessa área, enquanto os Estados Unidos ocupam o segundo lugar, mas estes mantêm um papel central cimeiro no comércio de serviços e de serviços financeiros. Portanto, se a ideia de um isolamento dos Estados Unidos parece praticamente impossível de funcionar, o que isso provocará serão ondas de choque no sistema comercial internacional. A maneira como as relações comerciais funcionavam até agora, com uma razoável estabilidade, assentando em regras negociadas, multilateralmente, especialmente na Organização Mundial do Comércio, ou em acordos de integração, como o NAFTA (hoje Acordo USMCA), por exemplo, vai estar em causa. Provavelmente, o mundo irá transformar-se seguindo um modelo menos aberto, bastante mais protecionista. E isso parece ser um objectivo de Donald Trump.

Quanto às reações dos países afectados ninguém parece querer mostrar-se fraco nesta guerra comercial. O que percebemos agora é que o Canadá, o México e a China – embora sejam países muito diferentes e com relações diversas com os Estados Unidos – não se querem mostrar vulneráveis. Querem mostrar que também têm capacidade de retaliar. Certamente também têm a capacidade de retaliar sobre os produtos que os Estados Unidos exportam para esses países e que atingem valores importantes. Todavia, basta olhar para a dimensão das economias americana, canadiana e mexicana, para perceber que existe um poder desproporcional dos Estados Unidos. Isso cria nesta disputa uma espécie de braço de ferro para ver quem vai ceder primeiro, e onde inevitavelmente haverá custos, mas na qual os Estados Unidos têm mais poder. Se pensarmos, por exemplo, nos consumidores, não há dúvida de que, em alguns produtos, terão que pagar mais caro. Mas o Presidente norte-americano parece determinado a assumir esse custo. Tem um mandato de quatro anos que agora se iniciou e como não se pode candidatar novamente isso dá-lhe mais à vontade político. E tem, sobretudo, esta visão de deixar um legado que transforme a forma como o comércio internacional funciona até agora.

Quanto à Organização Mundial do Comércio, o seu papel é muito limitado neste caso. A China poderá formalmente apresentar uma queixa na Organização Mundial do Comércio, mas isso não resolverá o problema. A resolução de conflitos comerciais na OMC está bloqueada porque o órgão de resolução de conflitos tem um painel de primeira avaliação e mas também um órgão de apelação (de recurso). Todavia, este último não tem juízes/árbitros para poder emitir um veredicto. Portanto, os Estados Unidos e a China sabem que a solução não virá pela OMC. A solução será uma negociação bilateral entre os dois países, e é isso que Donald Trump pretende, fazendo prevalecer o seu peso desproporcional nas relações com os parceiros comerciais. Acha que, mais tarde ou mais cedo, acabarão por fazer o que este considera conveniente, ou aceitável, para os interesses norte-americanos. Esse é o curso dos acontecimentos a que provavelmente vamos assistir.

O Presidente francês, Emmanuel Macron, reagiu esta manhã em Bruxelas à ameaça de Donald Trump. O Presidente francês garantiu que a Europa está pronta para responder e agir em conformidade. Esta manhã já vimos os primeiros sinais do anúncio dessas medidas, que afectam o sector automóvel. Os mercados, por exemplo, abriram esta segunda-feira em baixa...

Sim. Naturalmente que tudo o que estamos a falar tem várias ramificações. Estamos a falar de direitos aduaneiros sobre produtos principalmente industriais, mas isso afecta também os índices bolsistas, as taxas de câmbio e os próprios mercados financeiros. São todas as complexas interligações da economia nas suas diferentes áreas de funcionamento. No caso da Europa, vemos o problema que referi anteriormente. Donald Trump vai, certamente, também usar o instrumento comercial (ou, seja, aplicar direitos aduaneiros) quando o entender fazer, e acredito que isso vai ocorrer em breve. Vai usá-lo, por exemplo, para pressionar os europeus sobre a questão da despesa militar. Provavelmente sugerirá que os europeus aumentem as compras de equipamentos militares americanos, de gás natural liquefeito e de outros produtos, reequilibrando a balança de pagamentos com os Estados Unidos. Muito provavelmente, será esse o tipo de pressões e negociação que veremos.

Quanto à União Europeia, isso vai afectá-la de uma maneira heterogénea, pois as relações comerciais entre os diferentes países da UE e os Estados Unidos não são as mesmas. Por exemplo, a França tem menos trocas comerciais com os EUA do que a Alemanha ou até a Itália ou os Países Baixos. Assim, as empresas francesas não estão muito expostas directamente, pelo menos, à primeira vista, a este conflito comercial. Mas o que veremos, como mencionei, é um entrelaçamento de questões – comércio, balança comercial, despesa militar, recursos energéticos, exportações dos Estados Unidos, etc, – numa grande negociação. É pelo menos isso que Donald Trump quer.  Veremos se depois as tensões se irão acalmar com negociações que irãocertamente bastante além das lógicas usuais do comércio internacional, ou se teremos anos de turbulência permanente. É uma incógnita.

Segundo Donald Trump, este é um esforço para combater questões como o tráfico de fentanil e imigração ilegal. Pergunto-lhe qual é a correlação entre a aplicação dessas taxas alfandegárias e o combate ao tráfico de fentanil, por exemplo?

Mais uma vez, estamos a falar de assuntos que não têm uma conexão directa. Todavia, Donald Trump faz essa ligação de forma estratégica. Liga comércio, imigração e o tráfico de substâncias proibidas como forma para para obter concessões em outras áreas. Embora não exista uma conexão directa entre essas questões,o problema é, por isso, que Donald Trump usa isso como uma estratégia negocial. E tem poder para o fazer. Usa  instrumentos comerciais para obter concessões no que ele entende serem problemas noutras áreas. Neste contexto, a relação entre a China, o México e os Estados Unidos é curiosa.

Qual é a relação entre a China, o México e os Estados Unidos? 

Essas ligações são interessantes porque o México se tornou, nos últimos anos, o principal parceiro comercial dos Estados Unidos. Isso é extraordinário, tendo em conta o perfil tradicional da economia mexicana. Por quê? Porque, com o conflito comercial que Donald Trump desencadeou no seu primeiro mandato, houve um ajustamento gradual da China às novas realidades comerciais e às barreiras que os Estados Unidos foram impondo. O México, por sua vez, beneficiou disso. Tornou-se uma porta de entrada de produtos chineses que, se exportados directamente para os Estados Unidos, seriam sujeitos a barreiras comerciais mais altas. Isso explica, em grande parte, o salto que o México deu nos últimos anos, tornando-se o principal parceiro comercial dos Estados Unidos. Mas, se esta linha de guerra comercial agora iniciada por Donald Trump continuar, o México será desta vez um dos grandes perdedores.

Esta segunda-feira, o Presidente sul-africano, Cyril Ramaphosa, rejeitou as acusações de Donald Trump, que alegava que a África do Sul estaria a "confiscar terras com a aprovação de uma lei de expropriação". O Presidente norte-americano afirmou que "cortaria todo o financiamento da África do Sul enquanto não fosse feita uma investigação completa sobre a nova lei, que visa corrigir desigualdades herdadas do tempo do Apartheid". Essa questão vai afectar as relações entre os dois países?

Pode afectar, naturalmente. Este litígio entre os Estados Unidos e a África do Sul parece também estar relacionado com a  política mais geral do actual Governo dos EUA de cortar drasticamente na assistência ao desenvolvimento e no financiamento a ONG’s, considerando que não promovem os interesses dos Estados Unidos no mundo. Outro aspecto interessante que pode explicar a conflitualidade remete para o papel de Elon Musk no Governo dos Estados Unidos, pois este é originário da África do Sul. Tudo isto pode reflectir-se nas relações políticas entre os dois países. Mas, muitas vezes, é difícil perceber se  é apenas ruído político ou algo mais substancial. Donald Trump tem lançado tantas medidas em áreas tão diferentes — e faz tantas declarações polémicas — que é complicado identificar o que realmente terá um impacto mais sério nas relações internacionais.

Músico cabo-verdiano Mário Lúcio lança novo álbum "Independance" em concerto em Paris
31 January 2025
Músico cabo-verdiano Mário Lúcio lança novo álbum "Independance" em concerto em Paris

O músico, autor, compositor e antigo Ministro da cultura de Cabo Verde, Mário Lúcio deslocou-se esta semana aos estúdios da RFI antes de participar no festival musical "Au fil des voix", na sala de concerto 360 aqui em Paris, onde vai tocar e cantar neste sábado 1 de Fevereiro a partir das 20H00.

Por ocasião deste certame que homenageia este ano alguns países de África Lusófona pelos 50 anos das suas respectivas independências, Mário Lúcio representa Cabo Verde, com o seu novo álbum lançado oficialmente neste 31 de Janeiro.

Este novo trabalho que é o seu sétimo álbum em nome próprio, intitula-se "Independance", com "A" para evocar a palavra "dança". Nele, o músico recorda e retoma alguns dos êxitos do pós-independência. Com 10 anos de idade na altura em que o seu país conquistou a liberdade, Mário Lúcio lembra-se nomeadamente do fervilhar musical daquela época e diz que a sua vida mudou completamente com a independência.

RFI: Quais são as sonoridades deste novo álbum?

Mário Lúcio: Quando nós falamos de independência ou de qualquer acontecimento, nós temos a parte analítica e depois temos uma memória escondida. E é engraçado que isto só me aconteceu há pouco tempo. Qual é a minha memória da independência? Eu tinha dez anos. Para além de analisar, é bom lembrar-me das festas. Mas qual é a memória? É a música. Portanto, há pessoas que têm memória de lugares através dos cheiros e a música, porque em 1975 chegaram a Cabo Verde músicas desconhecidas para nós. Nós somos um arquipélago de uma música muito particular no contexto africano e mundial. Uma mistura de música, de reminiscências de música africana com música europeia. E de repente, chega-nos a música do continente africano. Até lá, eu ia sempre a uma mercearia muito pequenita, lá no Tarrafal. O senhor tinha um gira-discos. O que é que nós ouvíamos? Era Roberto Carlos, Luiz Gonzaga e também ouvíamos muita música norte-americana, James Brown, Otis Redding, Percy Sledge. Era o que nós ouvíamos. É como se nos negassem o acesso à música do continente. África estava efervescente havia algumas décadas. Vários países foram independentes nos anos 60 e digamos que esconder isso evitava o contágio. Mas, de repente, chega a música da Guiné-Bissau -que nós não conhecíamos- na mesma língua. A música da Guiné-Conacri, aquelas guitarras, a música de Angola e a música do Congo, mais a música do Senegal, Gana, Camarões e Nigéria, mas também a música das Antilhas, Martinica, Guadalupe, Haiti. Então, é como se nós tivéssemos também achado a nossa própria identidade. E por casualidade, nós começamos a tocar essas músicas, aprender no violão os primeiros acordes que eu aprendi de uma música de um cantor chamado Prince Nico Mbarga. E a música chamava-se "Aki". Eram dois acordes. E depois fui tocar no grupo Abel Djassi, na cidade da Praia, quando fui lá estudar. E já tocávamos nos bailes nocturnos. Os bailes duravam das 20h00 às 05h00. Tínhamos repertório com 100 músicas. Fazíamos quatro intervalos e basicamente eram essas músicas. Então, depois que eu tomei a minha profissão do músico, depois de exercer outras profissões, sempre com a música, tinha o sonho de um dia recuperar essas memórias. Eu não sabia como é que haviam de vir e eu lembrei-me que era o som ligado à dança. Essas músicas chegaram com as danças. Eu lembrava no Tarrafal, as casas, umas casas muito velhas, cheias de gente, rapazes e meninas, cada um no seu canto, a dançar essas músicas, a tentar descobrir uma forma de dançar. As nossas danças são sempre muito coladas, o homem e a mulher. E esses ritmos não exigiam muito malabarismo. Então, a palavra "independance" reflecte a minha memória da independência. São músicas ligadas à dança. E esse disco é um disco para dançar. Felizmente, toquei muitos anos em baile. É uma coisa que eu gosto de fazer, então é um testemunho, digamos assim, uma homenagem a essa época.

RFI: Como é que foi todo esse trabalho de recolher as músicas do seu baú pessoal e reformulá-las?

Mário Lúcio: As coisas têm os seus mistérios, não é? Normalmente, todos os meus discos, eu vou ao baú e lá selecciono às vezes 60, 80 músicas. Depois passa para 40, 20. Levo para o estúdio 20 músicas. E de repente gravo 12. Ou saem as 12, ou saem oito ou dez. Este processo não. Eu compus todas as músicas de uma assentada. Passei duas noites, compus todas as músicas, excepto a música "Independance", que eu compus no estúdio. Mas, como havia ali alguma coisa para dizer, há muito tempo que nós estávamos à espera que venha esse tipo de música, esse tipo de ritmo. Então, foi muito rápido. E eu sabia o que que as músicas estavam a dizer. E vieram já com o seu ritmo, seu balanço. As letras todas desceram rapidamente e a única música que eu gravei é um tema que eu fiz que se chama "Minha Bio", que é exactamente a minha biografia, que é uma música muito icónica na minha vida. Eu nunca tinha feito uma música sobre mim ou para mim. Esta sim conta a história do meu nascimento e também é uma música acústica. É mesmo uma pausa dentro do disco.

RFI: é também uma espécie de balanço pessoal de uma longa carreira que começou quase praticamente depois da independência.

Mário Lúcio: Obrigado por essa pergunta, porque eu não tinha sentido isso ainda. E é verdade. Acho que sim. A minha vida está muito ligada à independência, isto é, até os nove anos de idade não se sabia na minha aldeia, o que era um menino precoce. Então eu sofri muita protecção, sobretudo das mulheres mais velhas. A minha avó e a minha tia-avó. A minha mãe não ligava muito. Ela estava sempre a parir. Então a minha avó tomava conta. E aos dez anos, de repente, eu encontrei um poema no bolso das calças do meu irmão, um poema sobre Amílcar Cabral. Isto mudou a minha vida. E isso me levou à música, porque detectaram-me na rua a recitar poemas. Tinha uma memória fabulosa. E o Estado adoptou-me: "temos que lhe dar uma educação especial, porque isso ainda vai ser gente, não é?" Ainda há poucos dias encontrei o antigo Primeiro-Ministro Pedro Pires e ele ria muito. Ele foi lá à minha casa ao Tarrafal e dizia "realmente somos amigos há 51 anos, não é?" Ele está com 95, mais ou menos isso. E olhamos para trás, disse "Olha aquele encontro". Parece que ele se sente satisfeito e muito orgulhoso disso. Então, na verdade, estes 50 anos de dependência são 50 anos de um percurso da noite para o dia. Nada do que eu estava a fazer, do que estava previsto, depois eu vim a fazer, que era ser um pescador ou um pedreiro lá da zona, com muito poucas condições, como não tiveram o resto dos meus irmãos ou dos meus vizinhos. A independência trouxe isso. Estudei e tive acesso às artes. Tive acesso à universidade, tive acesso, depois, às condições que foram criadas depois da independência para as crianças, para os adolescentes. E também fui recebendo. Fui reciclando e dando também. Hoje, quando olho para trás, do alto dos meus 60 anos, tenho 50 anos de dádiva e de gratidão. Porque, na verdade, logo que eu comecei, com dez anos, eu já era músico na minha aldeia e também no grupo Abel Djassi, lá no Tarrafal, com instrumentos e dávamos concertos. E já aos 15, eu era profissional, a meio termo porque eu era estudante, mas tocava também nos bailes. De modo que isto também, essa pergunta é uma prenda para mim. Vou agora pensar nisso nos próximos dias. Como é que, na verdade, é um balanço junto com a história do meu país.

RFI: E relativamente à História do seu país? Quando olha para esses 50 anos de percurso livre para Cabo Verde, como é que olha para todo este caminho já atravessado?

Mário Lúcio: Tem dois lados, a independência, como a descolonização, esses reveses do domínio e também do aprisionamento e do cerceamento da liberdade. Esses reveses são sempre positivos, porque o homem nasceu para ser livre e feliz e dentro disso tem as matizes que é ser amado, amar, ser generoso, ter ética. Várias coisas. Mas, na verdade, tem o outro lado. Muitos países africanos pioraram as suas condições para as suas populações depois da independência. Isso é inaceitável. Um povo livre, um povo autónomo e países com muita riqueza, não é aceitável que passem a viver igual ou pior do que antes da independência. Cabo Verde é uma belíssima excepção. Eu não sei as razões. Evidentemente, podemos analisá-las. A formação desse povo é uma formação diferente, a escolaridade. Cabo Verde, em 1975, tinha uma taxa de analfabetismo de 75%. Hoje tem (uma taxa de alfabetização) acima de 98%. E então isso faz com que seja um país que progride todos os dias. Em Cabo Verde, é o progresso, o desenvolvimento humano. O desenvolvimento económico é apenas um índice. Mas o desenvolvimento humano passa por ter escolas. A escolaridade obrigatória e gratuita é boa, como existe em Cabo Verde, ter saúde, nós temos uma saúde básica boa. Em Cabo Verde, ter liberdade, liberdade de expressão e outras liberdades identitárias, respeita-se isso. Em Cabo Verde, os Direitos Humanos são respeitados e é um país onde todo o mundo trabalha. Não está infestado de corrupção e de ditaduras. Eu tenho uma sorte. Hoje a minha bandeira é as últimas eleições autárquicas em Cabo Verde. Portanto, as eleições foram no domingo e na segunda-feira todo mundo foi trabalhar. Nas minhas palestras falo da democracia de Cabo Verde, mas desta vez falo com mais felicidade porque houve uma região da ilha de Santiago, acho que era São Lourenço dos Órgãos, onde o vencedor saiu por um voto. Está a ver em África ou no mundo, ou nos Estados Unidos, algum candidato que vence o outro por um voto e não houve briga, não houve manifestações? Muito bem. Vamos recontar, contar, recontar. E se alguém tiver dúvidas, existem as instâncias próprias. Isso é saudável, de modo que quando se sente a maturidade para um povo ser livre e cuidar dos seus destinos, os resultados são como os resultados que existem em Cabo Verde e vários outros países. Vale a pena. E esse processo de Cabo Verde valeu a pena.

RFI: Algum ponto talvez menos positivo, que também mereça a sua atenção? Alguma coisa que talvez possa melhorar em Cabo Verde, a seu ver?

Mário Lúcio: O mundo todo! Eu acho que neste momento há uma desumanização da política, há uma desumanização da economia, há uma desumanização do próprio ser humano. E isso tem a ver com várias situações sociais. Quando o ser humano não tem acesso à cultura, é uma parte de si, principalmente a parte invisível, que é a alma da pessoa, que está a ser menosprezada, desvalorizada. Quando a pessoa não tem acesso à educação, está a ser-lhe negada uma das vias do progresso e do desenvolvimento humano. Em relação ao meu país, o que eu acho é que, também por fazermos parte do mundo, julgo que temos correcções a fazer. Essas correcções têm a ver exactamente com colocar a felicidade e a liberdade e o acesso ao progresso humano no centro das políticas e não ir, digamos assim, na moda e com o vento das várias possibilidades que estão a existir, de tornar o ser humano secundário, em que se dá demasiada importância às máquinas e à ganância. Então, acho que o Cabo Verde também está a sofrer disso nesse momento.

RFI: Cabo Verde faz parte dos países que são homenageados pelos 50 anos das suas respectivas independências no festival "Au fil des voix" aqui em Paris. Como se sente por representar o seu país neste festival?

Mário Lúcio: Eu nunca pensei ser um "representante oficial". Mesmo quando eu estava no governo. Mas na verdade, no outro dia, na minha aldeia, na minha vila, um historiador parou-me na rua para me cumprimentar e disse "que orgulho! Mas saiba uma coisa tu és património do Tarrafal." E eu disse "olha, eu que nasci com espírito livre e nunca quis pertencer a nenhuma agremiação e não ser nada para nada". Mas eu disse "para a minha pequena vila, eu aceito, então sou património". E quando me dizem que eu represento o meu país, tomo como uma leveza. Isto é o meu país. Representas ou sentes-te representado nas minhas acções. Por isso, também faço as minhas acções com a maior qualidade possível. E faço-as num contexto internacional, mundial, para que a sua representação não seja menos do que a sua realidade. Tenho trabalhado para isso.

RFI: Está a lançar neste momento o seu novo disco. Como é que vai ser a sua actualidade nos próximos meses?

Mário Lúcio: Bom, esse disco vai-me fazer tocar bastante. Como já não tocava em bailes, festivais, quero fazer bailes mesmo. Vai ser uma descoberta para as novas gerações, porque é um disco para se ouvir de pé. É um disco para libertar energias. Então, vamos fazer muitas turnês. Muitos concertos e já começamos. Agora vou a Cabo Verde descansar. Em Março, retomo e por aí adiante. Em Abril, Maio, Junho, Julho, Agosto. Setembro, Outubro, Novembro, já está tudo encaminhado. Hoje, vivo no Tarrafal, onde eu nasci, na minha cabana, e é onde quero estar mais tempo. Então começo a fazer as turnês de forma diferente. Não longas turnês, mas muito compactas, a vir à Europa, ir a outras partes do mundo, trabalhar e logo regressar para o meu mar, o meu sol, o meu povo, a minha terra.

RFI: O que é que gosta de ouvir neste momento?

Mário Lúcio: Eu sou muito eclético. Mas eu diria que se me dessem para escolher cinco músicas para ouvir permanentemente, escolheria, "Gracias à La Vida" de Violeta Parra, se possível interpretada por Mercedes Sosa. Ouviria também "Imagine" de John Lennon. Ouviria "What a Wonderful World" do Louis Armstrong e ouviria uma das "chaconnes" e "partidas" de Johann Sebastian Bach para violino e para violoncelo. E também ouviria "Sodade" na voz de Cesária Évora.

Eis a programação do festival "Au fil des voix": https://www.aufildesvoix.com/

Leste da RDC: "O M23 está numa posição de força e quererá ter também um lugar à mesa de negociações"
30 January 2025
Leste da RDC: "O M23 está numa posição de força e quererá ter também um lugar à mesa de negociações"

Desde domingo, os rebeldes do M23 apoiados por militares ruandeses entraram em Goma, no leste da RDC, na sequência de uma ofensiva "relâmpago" de apenas alguns dias contra as localidades em torno daquela que é a capital do Norte Kivu. De acordo com fontes diplomáticas do Ruanda, os M23, que se estimam ser apenas 3 mil homens, estão agora a progredir mais a sul e também a leste de Goma, havendo inclusivamente veleidades de chegarem até Kinshasa.

Perante esta situação, na sua primeira comunicação em dias, o Presidente congolês disse nesta quarta-feira à noite que quer "tranquilizar" a população do seu país e garantiu que actualmente está em curso uma "riposta vigorosa".

Felix Tshisekedi também criticou a falta de reacção da comunidade internacional e teceu advertências sobre o risco de escalada "com consequências imprevisíveis" na região.

Para além de novos apelos ao fim desta ofensiva emitidos pela ONU, a União Europeia, os Estados Unidos e a China, há novas iniciativas internacionais: a Comunidade de Desenvolvimento da África Austral (SADC), que no final de 2023 enviou uma força de paz para o leste da RDC (SAMIRDC) para apoiar as forças congolesas contra os M23, anunciou esta manhã que organiza uma cimeira extraordinária nesta sexta-feira na capital do Zimbábue sobre esta situação que qualificou de "preocupante".

Também visivelmente alarmado, o chefe da diplomacia francesa chegou hoje a Kinshasa para abordar esta crise com as autoridades locais.

Até agora, apesar dos esforços da mediação angolana, nenhuma das partes tem mostrado uma real intenção de inflectir a sua posição. A RDC recusa sentar-se à mesa das conversações com os M23 e pretende apenas discutir directamente com o Ruanda. Kigali, por sua vez, diz que se considera em perigo existencial enquanto o leste da RDC albergar grupos considerados hostis como as FDLR, um grupo rebelde formado por antigos genocidiários hutus.

Ao constatar uma escalada no conflito, Sérgio Calundunga, coordenador do Observatório Político e Social de Angola, diz que as acusações do Ruanda são antigas mas recorda que o potencial económico do leste da RDC, rico e recursos minerais, também não é alheio a esta situação.

RFI: Como vê a situação actualmente vigente no leste da RDC?

Sérgio Calundungo:Estamos a falar de uma região onde um enorme potencial económico convive com muitos interesses e grandes forças de bloqueio do potencial económico dos povos e, portanto, este tipo de acusações não são novas. Elas sempre existiram. Elas estiveram sempre presentes na tensão entre os dois países. Simplesmente, agora no terreno há um novo desenrolar. Estas incursões, sobretudo para pontos estratégicos importantes do M23, que criou novos focos de tensões, é uma situação muito grave. Anteriormente era um conflito latente ou até podemos considerar patente naquela região, mas nota-se claramente que há um aumento da escalada do conflito no terreno e também tensões entre os países na região: primeiramente, entre a RDC e o Ruanda, mas também começam a estalar os alarmes à volta de outros países da região que vão sofrer as consequências directas ou indirectas deste conflito.

RFI: O presidente do Congo Democrático esteve em conversações com a mediação angolana. O que é que julga que será a direcção a tomar agora perante este conflito?

Sérgio Calundungo: Do ponto de vista das autoridades angolanas e também um pouco de alguns países da região, a ideia é ter que fazer esforços ou redobrar esforços no sentido de desbloquear os canais de diálogo. Ou seja, a ideia é que cada vez mais a possibilidade de que a paz naquela região provirá de uma mesa de negociações envolvendo os principais actores, que é o Ruanda e também as autoridades da RDC. Entretanto, claramente que o M23 está numa posição de força e, contrariamente ao que tinha sido inicialmente previsto, quererá ter também um lugar à mesa de negociações e quererá ter alguma palavra.

RFI: Até agora, os M23 foram excluídos das negociações. A própria RDC tem recusado conversar directamente com esse grupo rebelde. Julga que com esta situação, os M23 vão acabar por se impor por si próprios na mesa das negociações?

Sérgio Calundungo: Eu acredito que uma das suas maiores motivações é sobretudo os investimentos que eles fizeram nos últimos tempos para obter vantagens sobre o terreno. E é exatamente por isto, é para ganharem um lugar de destaque na mesa das negociações. Eu acho que é bem evidente. Querem tirar partido da nova posição de força, com a tomada de um ponto estratégico como a cidade de Goma.

RFI: O presidente Tshisekedi disse à população que quer tranquilizá-la e que inclusivamente há neste momento uma "contra-ofensiva vigorosa". Até que ponto é que, de facto, se pode acreditar nessa "contra-ofensiva vigorosa", uma vez que em anos de conflito, as tropas congolesas não têm conseguido estancar essa situação?

Sérgio Calundungo: Há um ditado muito claro dessa região que diz que "nunca se mente tanto em tempos de guerra como também durante as eleições". Portanto, é muito incerto. E a pergunta que se põe é se havia esta capacidade militar, porque é que não a evidenciaram antes? Agora, compreendo a posição do Presidente congolês. Sei que ele precisa dar uma réstia de esperança para o seu povo e também de ir para uma mesa negocial demonstrando que ainda tem força. Então, nestas situações é típico as posições extremas e as pessoas darem a entender aos seus pares e também aos seus potenciais inimigos que têm força e capacidade suficiente para irem numa posição de vantagem.

RFI: Há dias, a Turquia propôs a sua mediação neste conflito. Angola ainda tem alguma coisa a dizer relativamente a esta questão?

Sérgio Calundungo: A mediação da Angola é respaldada pela União Africana. Ou seja, é claro que tendem a surgir novas partes interessadas em mediar, mesmo a nível de África. Eu acredito que Angola tem a vantagem de ter um mandato da União Africana. Portanto, Angola não está aí por sua única e livre iniciativa. É claro que há um mandato da União Africana que encoraja Angola. Eu acho que todos os esforços, não importa quem, tendentes a aproximar as partes, são sempre bem-vindos.

RFI: Vai haver uma cimeira extraordinária amanhã, a nível regional, da SADC. O que é que se pode esperar dessa cimeira?

Sérgio Calundungo: Acho que as partes vão procurar encontrar uma coordenada, uma solução para o conflito. Agora, é prematuro antecipar resultados bem evidentes.

RFI: O chefe da diplomacia francesa desloca-se à Kinshasa para contactos com as autoridades congolesas. O que é que se pode esperar relativamente ao posicionamento da França no meio deste conflito?

Sérgio Calundungo: Não penso que a França terá um posicionamento diferente daquele que já tem vindo a ter. Não tenho grandes esperanças que venha a mudar aquele que tem sido o seu posicionamento. Agora resta saber qual é o peso do seu posicionamento. Não há nada concreto. Isto é claramente uma incógnita.

RFI: Pensa que a França tem possibilidade de pressionar o Ruanda para também se sentar à mesa das negociações?

Sérgio Calundungo: Eu acho que é importante deixar o leme da condução destes processos aos próprios Estados africanos. Agora, todos os países que puderem influenciar positivamente para o fim desse conflito serão bem-vindos.

Saída de Mali, Níger e Burkina Faso da CEDEAO, "organização deve evitar que se repita"
29 January 2025
Saída de Mali, Níger e Burkina Faso da CEDEAO, "organização deve evitar que se repita"

O Mali, Níger e Burkina Faso, liderados por regimes militares no poder após golpes de Estado, saíram esta quarta-feira, 29 de Janeiro, oficialmente da CEDEAO. Os três países, unidos na Aliança dos Estados do Sahel, desde Julho de 2023, acusam a CEDEAO de impor sanções injustas e de não oferecer apoio eficaz na luta contra o jihadismo. O investigador e antigo comissário da CEDEAO, Mamadú Jao, afirma que a decisão reflecte "o apoio popular, mas alerta que só o tempo dirá se foi a melhor escolha".

RFI: A insatisfação popular com a CEDEAO ficou evidente nas manifestações que celebraram a saída dos três países da organização, reforçando a ideia de que não se trata apenas de uma decisão política, mas também amplamente apoiada pela população?

Mamadú Jao: Termina hoje o período de reflexão de seis meses concedido a estes três países, e certamente, a partir de hoje, já estarão formalmente fora da Comunidade Económica dos Estados da África Ocidental. Podemos entender isso como uma decisão amplamente apoiada pelas populações, conforme demonstrado nas manifestações. O problema é que, na minha opinião, o tempo é o melhor juiz. Vamos ver se a decisão realmente reflecte a soberania desses Estados. Não é a primeira vez que isso acontece; a Mauritânia fez parte da CEDEAO, mas decidiu sair em 2000 para se aproximar dos países do Magrebe, mantendo, no entanto, relações cordiais com a comunidade. Em 2017, assinaram formalmente um acordo de aproximação, o que serve também como uma lição para a CEDEAO.

A CEDEAO e a Aliança dos Estados do Sahel mantêm a livre circulação de bens e pessoas. Que impacto tem a saída destes três países da CEDEAO?

De momento, ao passar de 15 para 12 países, já é um sinal negativo. A circulação de pessoas e bens é uma das cláusulas fundamentais da criação da CEDEAO. Se isso continuar, as relações certamente irão persistir de alguma forma. No entanto, o impacto já é sentido, pois são países populosos e podem afectar a economia regional. Ainda não sabemos o efeito exacto, mas essas relações continuarão, provavelmente. A preocupação é com os três países, pois são nações sem acesso directo ao mar. Acredito que eles terão a necessidade vital de manter essas relações para suavizar as suas trocas comerciais com o exterior.

Afirmou que "esta é uma lição para a CEDEAO". De que forma a comunidade pode recuperar sua influência? Ou será que esta crise representa um declínio irreversível?

Depende de como a situação for gerida. Penso que a CEDEAO tentou dialogar, mas talvez não tenha havido um diálogo suficientemente profundo para analisar a situação e encontrar soluções. A CEDEAO, para continuar a ser uma organização sub-regional relevante, deverá reflectir profundamente e traçar estratégias para que situações semelhantes não se repitam. Caso contrário, haverá desmoronação. Espero que a organização possa sentar-se e reflectir sobre a situação, encontrando formas de trabalhar com os países membros para que as questões que afectam individualmente cada país possam ser discutidas de maneira colectiva. A CEDEAO deve concentrar-se em como contribuir para a solução dos problemas.

Outra questão que a CEDEAO precisa resolver é a autonomia, especialmente a autonomia financeira. Uma organização que depende de 60% a 70% de financiamento externo enfrenta dificuldades para intervir de maneira efectiva e encontrar soluções. Essas limitações financeiras representam um bloqueio, e organizações continentais como a CEDEAO e a União Africana devem reflectir sobre isso. Só assim podem vir a ter uma intervenção mais robusta em termos de soberania e autonomia. Caso contrário, estarão sempre dependentes de apoios externos, o que enfraquece as suas acções.

Refere-se a essa dependência de financiamento externo. De que forma a aproximação do Mali, Burkina Faso e Níger a países como a Rússia, Turquia e Irão pode influenciar o equilíbrio geopolítico da região?

Inicialmente, não vejo como solução abandonar um parceiro e simplesmente se voltar para outro, sem saber quais são as bases dessa nova aliança. Contudo, tanto os países da CEDEAO quanto esses novos parceiros, como a Rússia e a Turquia, continuam a colaborar entre si. A questão é: se a CEDEAO, com o apoio dessas potências, não conseguiu resolver os problemas até agora, a fragmentação pode apenas agravar a situação. Tenho receio de que os problemas persistam, especialmente no que diz respeito à luta contra o terrorismo. Não estou muito optimista.

Há riscos, a seu ver, de que outros países sigam o mesmo caminho e também saiam da CEDEAO?

Depende de como a situação for gerida. Por isso, a CEDEAO deve reflectir profundamente e encontrar maneiras de evitar que situações como essa se repitam. Já temos o exemplo da Mauritânia, e isso não é um bom sinal para a CEDEAO. O importante agora é que a organização trabalhe para evitar que outros países sigam o mesmo caminho, por meio de um diálogo interno sério. Assim, a CEDEAO poderá continuar a existir, atendendo às questões globais da subregião, mas também aos problemas específicos de cada país, para que todos encontrem soluções colectivas.

RDC: "A comunidade internacional já deveria ter condenado o Ruanda"
28 January 2025
RDC: "A comunidade internacional já deveria ter condenado o Ruanda"

O leste da República Democrática do Congo está a ser palco de violentos combates entre os rebeldes do M23, apoiados pelo Ruanda, e o exército regular congolês. Há relatos que dão conta de que partes da cidade de Goma, capital da província do Norte Kivu, estão agora nas mãos deste grupo rebelde. Até ao momento, pelo menos 17 pessoas morreram e quase 400 ficaram feridas. 

Em entrevista à RFI, Osvaldo Mboco, analista político angolano começa por relatar-nos aquilo que se sabe até ao momento sobre a situação no terreno, defendendo que a comunidade internacional já deveria ter condenado o Ruanda.

RFI: O que se sabe até ao momento sobre a situação no terreno?

Osvaldo Mboco: O que se sabe é que o M23 tomou de assalto Goma, que é uma das cidades importantes no leste da RDC. Também se sabe que muitos soldados ou militares do exército regular foram capturados pelo M23 e há algumas imagens que ainda são um pouco confusas, que têm a ver com alguns soldados da República Democrática do Congo estarem a ser escoltados pela força regular do exército do Ruanda. Mas é uma imagem muito confusa do ponto de vista de análise e também dos factos. Agora, um outro elemento que é importante é que Angola, a República Democrática do Congo, e também a República do Congo, acabaram retirando desta região os militares que estavam no mecanismo de verificação da trégua que existia, também por segurança, penso eu.

Foi decisão de Angola que, segundo notas do país, foi uma acção concertada entre os serviços diplomáticos, quer do Estado angolano, quer com a RDC e quer também com o Ruanda. Está a viver-se um período de muita incerteza ao nível do Leste da República Democrática do Congo. E estas incertezas têm estado a criar um fluxo de refugiados bastante acentuado e também a dificultar a ajuda humanitária. Há uma demonstração clara de força do M23, do ponto de vista de maior capacidade combativa no terreno, comparativamente, ao exército regular, da República Democrática do Congo, e isto remete-nos a algumas reflexões: se o M23 vai simplesmente parar por goma ou se a intenção é também ocupar novas áreas, para além de Goma.

RFI: Concretamente, pergunto-lhe qual é o papel estratégico desta que é a principal cidade do Leste da RDC?

Osvaldo Mboco: Esta é uma das regiões que possui maior número de recursos minerais da República Democrática do Congo. Logo, se o M23 controla Goma, quer dizer que vai dar início ou vai intensificar as suas acções do contrabando de minérios e, por outro lado, isso dará ao M23 maior recurso financeiro para a aquisição de meios, equipamento bélico, etc. E há aqui uma outra perspetiva que não se fala muito, que talvez seja um pouco arriscada também. É mesmo a intenção do M23 querer controlar Goma e fazer de lá surgir um novo estado. Também pode ser aqui uma nova abordagem, que não é muito clara ainda. 

RFI: O que é que pode explicar o regresso do M23 a Goma, 12 anos depois de lá ter saído?

Osvaldo Mboco: O que pode explicar é que o M23 nunca viu os seus interesses salvaguardados porque eles pretendem negociar directamente com o governo congolês. Não querem que seja negociado do ponto de vista práctico, por uma terceira pessoa ou então por uma terceira entidade. Mas o grande objectivo do M23 é também ocupar um pedaço de terra e não está muito interessado na paz porque a paz acabaria por obrigar a reintegrar alguns militares no exército. Uns iam para a vida civil, outros seriam desmobilizados, etc. E não é este o cenário porque eles percebem que, pela via da guerra, eles conseguem pilhar recursos e também defender os seus interesses económicos.

Agora, o regresso está no facto de a comunidade internacional, a República Democrática do Congo, a SADC e a CIAC pensaram que depois do desaparecimento do M23, o M23 seria extinto e teria menos capacidade combativa. Penso que um elemento que nós temos que discutir é como é que o M23 se rearmou. Acho que deve ser o ponto de partida também do debate que nós temos que fazer.

O M23 reearmou-se em função de países de trânsito. Ou seja, tem de haver um país de trânsito para chegar o equipamento militar, para ser dado treino, formação, logística, inteligência. E tudo indica que este país de trânsito seja o Ruanda porque o M23, quando se sentiu pressionado pelas forças governamentais, acabou por recuar nas matas do Ruanda. É um sinal mais do que claro que o Ruanda olhou para este cenário porque não me parece que a inteligência do Ruanda não tenha detectado que existia um grupo insurgente nas matas do Ruanda e que este tinha que garantir a integridade territorial. 

RFI: Não haverá incómodo por parte da comunidade internacional relativamente ao Ruanda, já que o país foi alvo de genocídio, evitando as críticas a Kigali, não obstante as suas repetidas incursões na RDC e o apoio ao M23? Não haverá incómodo por parte da comunidade internacional em de condenar o Ruanda?

Osvaldo Mboco: Eu penso que a comunidade internacional já deveria ter dado esse passo, por uma razão muito simples: nós não podemos ter um estado ao nível da região, a nível do mundo, onde existem relatórios das Nações Unidas de peritos que deram conta que altas patentes a nível do Ruanda que apoiam o M23.

No ano passado, houve um relatório que dava nota de que 3000 a 4000 soldados do Ruanda estão nas fileiras do M23. É o momento mais do que esperado para que se comece com as sanções a nível do Ruanda. E aqui a comunidade internacional e as grandes potências têm uma responsabilidade acrescida neste momento.

O relatório das Nações Unidas é um relatório que não é completo. Não é verdadeiro porque o Ruanda não aceita. O Ruanda tem estado a desafiar uma organização de carácter mundial, que tem estado a fragilizar ainda mais a posição das Nações Unidas. E eu penso que, em função dos vários interesses instalados na República Democrática do Congo, dos franceses, americanos, russos e chineses, era fundamental perceber se esse cenário favorece muito mais esses países ou se este cenário prejudica os interesses dessas grandes potências.

Se favorece muito mais os interesses dessas grandes potências, então vamos assistir a um olhar impávido e sereno da comunidade internacional porque percebem que, com o cenário de conflitualidade, eles têm muito mais a ganhar do ponto de vista da exploração do minério, a não ser que seja esse o entendimento que esses estados tenham. 

RFI: E quem é que poderá ter aqui um papel a desempenhar neste conflito? A SADC, a África de Leste? Na sua opinião, quem é que poderá ter um papel preponderante?

Osvaldo Mboco: Ao nível do continente africano, nós temos que olhar para a Conferência Regional dos Grandes Lagos. É importante por uma razão muito simples porque grande parte dos países vizinhos da RDC estão na Conferência Regional dos Grandes Lagos. Logo, é aqui que se consegue traçar estratégias de segurança coletiva, onde se envolve todos os países vizinhos, os nove, porque uma política de boa vizinhança, uma política de segurança colectiva permitirá, até certo ponto, estratégias conjuntas e até, em alguns casos, algumas manobras militares conjuntas também.

Então, eu penso que o mecanismo da Região dos Grandes Lagos é um mecanismo extremamente importante para se encontrar a estabilidade na República Democrática do Congo. Mas é fundamental, que a SADC, a CIAC, a União Africana, e as Nações Unidas apoiem aquilo que pode ser as políticas, mecanismos e as estratégias engendradas pela Conferência Regional dos Grandes Lagos para poder fazer face ao que está a acontecer a nível da República Democrática do Congo. 

RFI: Até que ponto é que a mediação de Angola e também outras mediações, nomeadamente do Quénia, não ficaram comprometidas agora com estes últimos desenvolvimentos no leste da RDC? 

Osvaldo Mboco: Bem, os processos de mediação normalmente são processos complexos. E, dada a natureza da complexidade do que se vive na República Democrática do Congo, o que eu penso, enquanto angolano, é que Angola, por partilhar uma fronteira vasta com a República Democrática do Congo, deve continuar a mediar e também trazer instrumentos para se encontrar a estabilidade. Claramente que esses avanços do M23 demonstram que a mediação de Angola e do Quénia não têm estado a conhecer os melhores resultados. Tem estado a falhar, mas é importante que se diga também que muitos aspectos aqui discutidos não dependem da mediação.

A mediação procura encurtar as diferenças, apresentar propostas e os intervenientes são os principais actores. Esses sim, é que fazem a grande diferença. Mas Angola, por partilhar uma fronteira com a República Democrática do Congo dessa extensão, é importante que Angola esteja na mediação, até por uma questão de interesse do estado angolano.

Por uma razão muito simples: porque tudo o que acontece na República Democrática do Congo acaba tendo implicações com o Estado angolano. Daí que eu defenda que a RDC não é uma zona de influência do Estado angolano. Mais do que isso, é o espaço vital. 

80 anos da Libertação de Auschwitz: "Neste dia assinala-se a matança dos judeus”
27 January 2025
80 anos da Libertação de Auschwitz: "Neste dia assinala-se a matança dos judeus”

Assinala-se nesta segunda feira, 27 de Janeiro, os 80 anos da libertação de Auschwitz. Mais de 1,1 milhões de pessoas foram assassinadas neste campo de concentração e os historiadores afirmam que a maioria, cerca de 1 milhão, eram judeus. Miriam Assor, jornalista, autora e membro da comunidade judaica de Lisboa, afirma que neste dia se assinala a “matança dos judeus” e revela que "apesar da neutralidade portuguesa na II Guerra Mundial, houve portugueses que morreram nos campos de concentração".

Qual é a importância desta data para a comunidade judaica?

Neste dia 27 de Janeiro - dia em que tropas soviéticas entraram finalmente em Auschwitz - assinala-se uma matança, uma tentativa de genocídio direccionado ao povo judeu. Foram assassinadas 1,5 milhões de pessoas, em Auschwitz, sendo que a esmagadora maioria eram judeus.

Porquê os judeus? Porque o Holocausto e a Segunda Guerra Mundial foram direccionadas para o extermínio dos judeus. Depois houve as excepções. Refiro-me aos comunistas, homossexuais, testemunhas de Jeová, ciganos, excepções infelizes que o nazismo também encontrou como alvo de matança.

A matança, a Shoah é direccionada ao povo judeu. É uma coisa que é injustificável. Foi uma tentativa de acabar com os judeus.

Os sobreviventes de Auschwitz falam deste campo como um lugar de desumanização. Esta desumanização é um desafio transgeracional? Qual é que é o processo de cura?

A Desumanização de Auschwitz é algo que me perturba e no qual penso sempre que escrevo sobre esse tema. Não bastava matar, era preciso tirar, aliás tirar-nos – porque também me incluo - a alma das pessoas.

As pessoas chegavam a Auschwitz em comboios de animais e eram seleccionadas. Essas pessoas, seleccionadas para não viver, entravam num corredor de desumanização. Não sei que género de humano é capaz de fazer isso, mas como dizia Hannah Arendt [filósofa política alemã de origem judaica, uma das mais influentes do século XX] eram pessoas normais e apenas obedeciam a ordens.

Como se faz o processo de cura?

A minha cura é escrever livros.

Qual é o papel da literatura neste processo?

Cada vez que eu escrevo sobre a Segunda Guerra Mundial ponho em prática a expressão “nunca mais”. É através da escrita que luto para que nunca mais [a história se repita]. Escrever com factos, não faço romances, vou aos arquivos pesquisar e mostro a verdade.

Em Julho do ano passado, a Agência dos Direitos Fundamentais da União Europeia alertou para o facto de os casos de antissemitismo terem aumentado em todo o bloco europeu. Algumas organizações, em toda a União Europeia, relataram um aumento de 400% nos incidentes antissemitas, após a resposta militar israelita aos ataques do Hamas de 7 de Outubro de 2023. Numa sociedade cada vez mais polarizada, o combate é mais difícil?

O combate hoje é difícil, porque o antissemitismo é uma doença mental. Ninguém que tenha a massa encefálica acinzentada pode ser antissemita, xenófobo, o que quer que seja.

O antissemitismo é um mal ancestral que já existe há uns quantos anos, mesmo séculos e que acompanha a evolução dos tempos. Hoje em dia, parece-me que está muito mais intensivo porque os meios são mais intensivos e, portanto, o antissemitismo existe.

Porque é que não se gosta de judeus? Não lhe sei explicar. Não sei a razão, não faço ideia qual é. Mas sei que pode rimar um pouco com coisas que depois culminaram, por exemplo, na Inquisição [um tribunal formado pela Igreja Católica para condenar e punir as pessoas que tinham desvios nas normas de conduta].

A Inquisição foi um meio antissemita brutal que tínhamos que deixar ser judeus porque senão éramos queimados.

A história, a preservação da memória tem um papel importante na erradicação destes comportamentos?

Sim. Julgo que têm um papel importante.

Portugal foi um país neutro durante a Segunda Guerra Mundial. No entanto, na sua recente investigação que consta do livro “Portugueses na Lista Negra de Hitler” revela que essa neutralidade não foi assim tão óbvia e que teve efeitos colaterais. O que é que aconteceu a Portugal?

Portugal foi, julgo, um dos primeiros países, senão o primeiro, que apresentou a neutralidade. Julgo que foi logo em Setembro de 1939. Essa neutralidade foi um pouco coxa. Enquanto a guerra estava nas mãos dos nazis, Portugal teve uma política e a partir do dia D [dia do desembarque das tropas na Normandia] quando percebe que a guerra está perdida, o Salazar passa a ter um comportamento diferente com Aristides Sousa Mendes e a Sampaio Garrido [dois diplomatas portugueses].

Dois diplomatas que salvaram judeus durante a Segunda Guerra Mundial…

Salvaram quem quer que fosse. Nem um, nem outro foram perguntar, alguma vez: Olha, és judeu? Não, salvavam quem quer que fosse. Naturalmente que eram muitos mais judeus que procuravam ajuda. Estávamos na mira do gatilho.

No livro “Portugueses na Lista Negra de Hitler” escreve que portugueses foram parar a campos de concentração e outros foram mortos…

Sim. Dez anos antes da Guerra das Balcãs, o Governo português tinha autorizado, julgo que em Março de 1913, a inscrição provisória dos judeus descendentes de portugueses e essa inscrição foi feita ao abrigo do regulamento consular, em vigor na altura.

Embora se tratasse apenas de inscrição provisória consular, Alfredo Mesquita [diplomata português] deu a essas pessoas o benefício da protecção portuguesa. Estas pessoas ficaram com a documentação portuguesa que foram renovando até 1939 ou 1941. Quando rebentou a guerra ainda se deu algum benefício, mas depois as autoridades não renovaram a documentação. Tanto dessas pessoas, como dos outros.

Conta, ainda, que um grupo de portugueses ficou detido em Le Vernet, em França, durante cerca de quatro anos e que foi deportado para o campo de concentração...

Sim, portugueses que não eram judeus - eram pessoas ligadas à esquerda, ao anarquismo - por razões políticas - aliás, por razões nenhumas, foram depositadas e acabaram mortas em Dachau e Bergen-Belsen. Muitas delas pediram ajuda, mas essa ajuda nunca apareceu.

Há cartas onde as pessoas pedem ajuda. Há, por exemplo, o Sr. Nino Barzilai que tinha nascido em Salónica, Grécia, viveu em Barcelona, Espanha, e foi preso em Atenas com documentação portuguesa. Pediu ajuda, mas essa ajuda nunca chegou. Ele, a mulher, o filho e outras 17 pessoas estiveram presos em Bergen-Belsen.

Refere que não encontrou posições de antissemitismo por parte do Governo português, nomeadamente o então presidente do Conselho de Ministros e ministro dos Negócios Estrangeiros, António de Oliveira Salazar. Mas notou uma falta de responsabilidade, de tomada de decisão. Quais é que foram as consequências dessa falta de responsabilidade?

A agonia, a aflição de pessoas que eram inocentes, Pessoas que não fizeram crime nenhum, mas ou por serem judeus ou por serem contra o regime, acabaram em campos de concentração e algumas delas derreteram em Auschwitz e em campos de concentração ou de extermínio. Esta é a consequência do bailado triste entre a burocracia portuguesa e a vida das pessoas.

A ditadura portuguesa não tomou medidas para salvar a vida desses portugueses?

Foi muito lenta e não tomou decisões. Os carrascos nazis avisaram variadíssimas vezes [as autoridades portuguesas]: olhe que temos aqui os vossos conterrâneos e se vocês não tomarem qualquer posição, eles vão ser deportados. E foram [deportados).

Como espera que sejam as próximas celebrações da libertação do campo de Auschwitz?

Espero que a memória tenha mais força do a que tem tido. Nós, sem memória, não vamos a lado nenhum. A memória é um conjunto do passado com o presente. E há muita gente que diz: isso já foi há muitos anos. Não foi assim há muitos anos. É preciso que não haja outro holocausto, que não haja mais outras tragédias como as que infelizmente há. Espero que daqui a dez anos exista uma...

Uma maior consciência?

Uma consciência diferente. As pessoas, mesmo indo aos campos de concentração- que agora são verdes e lindíssimos - não imaginam que esses campos foram autênticos talhos.

Forúm de Davos: Adesão plena de Timor-Leste à ASEAN prevista para Maio
24 January 2025
Forúm de Davos: Adesão plena de Timor-Leste à ASEAN prevista para Maio

O Presidente de Timor-Leste, José Ramos Horta, participou no Fórum Económico Mundial de Davos, destacando a importância da digitalização para a juventude timorense e a adesão do país à ASEAN. A adesão plena de Timor-Leste à ASEAN é "uma prioridade" e deve ocorrer no mês de Maio, afirmou José Ramos Horta.

Esta é a sua segunda participação no Fórum de Davos. Qual é o interesse em se deslocar a este evento?

José Ramos Horta: Creio que esta é a minha quarta participação: participei no início da independência de Timor-Leste, enquanto ministro dos Negócios Estrangeiros. Depois, participei em 2014, quando era representante especial do secretário-geral da ONU para a Guiné-Bissau e depois, em 2023, já como Presidente e agora de novo. A evolução da situação mundial é óbvia, para melhor nalgumas áreas, como a digitalização e a inteligência artificial. Mas, noutras áreas, obviamente, em outra dimensão, muito grave. Começamos em 2020 com a pandemia, com grande impacto nas economias nacionais, um empobrecimento ainda maior dos já pobres, recursos catastróficos em relação aos progressos registados na luta contra a pobreza, e depois, como se isso não bastasse, têm havido grandes catástrofes naturais, inundações graves, incluindo no meu país, dois anos seguidos, inundações e incêndios graves que quase se tornaram um fenómeno anual.

Como se tudo isto não bastasse, a Rússia decidiu invadir a Ucrânia, e isso impactou não só a Ucrânia em si e a própria Rússia, mas também impactou a economia mundial, com a subida dramática dos preços de produtos de consumo de primeira necessidade, sobretudo nos países em vias de desenvolvimento. Temos agora a eleição do Presidente Donald Trump, o que oferece algumas perspectivas positivas, talvez, vamos ver, e outras que levantam profundas preocupações.

Donald Trump começou o seu discurso, de ontem, a convidar os empresários presentes em Davos a produzirem nos Estados Unidos. Esta é uma declaração que vem confirmar esta política proteccionista norte-americana.

Exacto, mas é natural, obviamente, convidar investidores a investir nos Estados Unidos. É óbvio que qualquer país faz isso, e os Estados Unidos oferecem condições que muitos outros não oferecem. É um mercado riquíssimo, que dá muitas facilidades aos investidores. A economia americana continua forte, o desemprego quase inexistente. Embora os Estados Unidos tenham graves problemas sociais, como milhões de pessoas sem casa, milhões de pessoas a viver em extrema pobreza e violência em muitas cidades americanas. Mas violência a sério, não é um mar de rosas.

Mencionou a importância da adaptação à tecnologia, à inteligência artificial para a população jovem de Timor-Leste nesta participação em Davos. De que forma o governo do seu país está a acompanhar esta transformação digital?

Estamos a acompanhar e, creio, este ano haverá grandes progressos. O cabo submarino que nos liga à Austrália e a outros países do mundo está em vias de conclusão e de entrar em funcionamento. Estamos ligados ao Starlink. As infraestruturas básicas estão a decorrer. Vamos dar um grande salto em frente neste domínio. Os jovens timorenses têm muita inclinação para a área de ciências, tecnologia e informática. Temos cada vez mais timorenses a viver no exterior, na Austrália, na Coreia do Sul, na China, claro, no Reino Unido, em Portugal.

Durante esta sua participação na sessão sobre a Associação das Nações do Sudoeste Asiático, saudou o trabalho da organização e perguntava-lhe sobre o roteiro implementado pela ASEAN para adesão plena de Timor-Leste vai acontecer em Maio?

É uma prioridade absoluta para nós. A adesão à integração plena na economia regional e na diplomacia regional deve acontecer em Maio e vai elevar a voz de Timor-Leste dentro de uma organização que tem cerca de 700 milhões de pessoas, muito maior que a União Europeia e quase todo o continente africano, que tem mais de mil milhões de pessoas. Só a ASEAN tem quase 700 milhões. Depois tem uma economia de trilhões de dólares, com uma população jovem, como a nossa, que é a mais jovem de todo o Sudeste Asiático, de toda a Ásia, com uma população cada vez mais educada. Nos próximos anos, Timor-Leste vai beneficiar muito da nossa integração regional.

A região da Ásia-Pacífico enfrenta várias tensões geopolíticas, mas o seu país continua a ser uma das excepções felizes.

Claro, obviamente os outros países da região têm 50, 60, 70 anos de existência. Timor-Leste tem 25 anos de existência. Nos últimos 20 anos, desde a independência, houve transformações dramáticas que muitos idiotas que escrevem ou falam sobre Timor não dão conta, porque não leem, não pesquisam dados simples. Em 2002, nós tínhamos um doutorado. Hoje temos centenas de doutorados das melhores universidades da região e do mundo. Em 2002, nós tínhamos 19 médicos. Hoje temos 1300 médicos. Em 2002, tínhamos praticamente electricidade só em Dili. Hoje, a electrificação atinge 97% do território nacional. Em 2002, a esperança de vida de um timorense era inferior a 60 anos. Hoje ronda os 70 anos. Esses são os grandes progressos feitos desde a independência.

Esteve esta semana em Davos, na Suíça. Qual é a visibilidade que teve a lusofonia e a Ásia neste encontro mundial?

Diria que Timor-Leste é o único país, ou um entre muito poucos países de dimensão demográfica semelhante à de Timor-Leste, com pouco mais de 1 milhão de habitantes e uma economia ainda muito pequena, que tem uma participação activa neste grande fórum. Como Prémio Nobel da Paz e como pessoa que tem uma rede de contactos mundiais, fui convidado pessoalmente pelo professor Klaus Schwab, que é amigo, e que conheço há mais de 20 anos. Eu nem sequer estava interessado em vir mais uma vez a Davos, mas foi o professor Schwab, o Presidente do Fórum, que insistiu para eu participar, para diversificar os debates, para não ser tudo sobre a Ucrânia, mas também sobre outros países do mundo, sobre outros problemas, mas também sobre outras possibilidades e oportunidades.

Timor-Leste é um país mais democrático. Hoje, na Ásia, com o ranking em liberdade de imprensa, é o melhor entre todos os países do Terceiro Mundo. Timor-Leste é o único país do Terceiro Mundo, dos países em vias de desenvolvimento, que está no ranking entre os primeiros 20. Em 2023, nós estávamos entre os primeiros dez. Portugal estava em 9º, Timor-Leste em 10º. Enquanto a França, Inglaterra em 27º,  Alemanha estavam depois, os Estados Unidos em 40º, Itália e Austrália. Timor é o único de todos os países em vias de desenvolvimento de mais de 100 que está nos primeiros dez. É a melhor democracia da Ásia. Portanto, isso chama a atenção.

Timor-Leste é um dos poucos países do mundo com uma dívida externa muito pequena. 13% do nosso PIB é investido no Tesouro americano. Daí que insistem para a nossa participação. Eu creio que Moçambique, Angola, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe, Guiné-Bissau não estiveram em Davos. Portugal esteve. Eu estive com o senhor ministro dos Estrangeiros. O Brasil, creio que não, nem da Guiné Equatorial. Portanto, eu creio que em Davos, apenas Portugal e eu próprio estivemos, e participei em inúmeros ateliers. Talvez tenha sido a pessoa que mais participou, em números, em alguns debates fechados.

O Presidente norte-americano pediu à Arábia Saudita e à OPEP para baixarem o preço do petróleo para acabar com a guerra na Rússia e na Ucrânia. Esta estratégia fará sentido, a seu ver?

Não me parece que a Arábia Saudita e os outros países da OPEP vão digerir essa proposta do Presidente Trump. Numa situação dessas, seria uma punição em relação à Rússia. Isto é, forçar artificialmente a baixa do preço do petróleo para punir a Rússia é, obviamente, algo complicado.

A Rússia é um dos maiores produtores mundiais e depende muito do petróleo. Tem relações excelentes com os outros países e a Arábia Saudita está numa fase de grande desenvolvimento, industrialização e investimento. Internamente, não pode dar-se ao luxo de baixar artificialmente o preço do petróleo, porque há um excesso de produção mundial. Obviamente, não há outra forma. Mas forçar artificialmente a baixa do preço do petróleo... Eu creio que a Arábia Saudita e os outros não vão fazer isso. Seria muito difícil para esses países, numa situação actual, com grandes dificuldades na economia mundial.