Aumenta a visibilidade do "burn-out" no trabalho em Angola e em Cabo Verde
03 February 2025

Aumenta a visibilidade do "burn-out" no trabalho em Angola e em Cabo Verde

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Desde 2019, o "burn-out ", ou seja o esgotamento, o cansaço extremo gerado pela forte pressão, o stress ou o excesso de carga em termos de horário ou tarefas no emprego tem sido reconhecido pela Organização Mundial da Saúde como um problema com consequências sobre a saúde pública, muito embora os seus contornos e dimensões sejam ainda difíceis de estabelecer em termos estatísticos.

De acordo com dados da OMS datando de 2023, pelo menos 35% dos trabalhadores na Europa, dizem ter estado perto do esgotamento ou sofreram um "burn-out" no trabalho.

Neste quadro, África não é excepção. Nos casos de Angola e Cabo Verde tem havido alguns alertas sobre o aumento do número de "burn-outs".

Sofrimento psicológico no trabalho faz parte da realidade angolana

Dados oficiais apontam que no ano passado em Angola foram registadas mais de 300 mil pessoas com transtornos mentais, sendo que as autoridades referem ainda que 25% dos trabalhadores enfrentaram problemas desta natureza devido ao trabalho.

No passado mês de Janeiro, o psicopedagogo angolano Ngangula de Sousa lançou um livro precisamente sobre esta matéria intitulado "Doenças mentais decorrentes da pressão no trabalho".

Em entrevista concedida à RFI, ele dá conta de algumas das suas conclusões baseadas nomeadamente em entrevistas efectuadas junto de mais de 270 funcionários. "O que tem se verificado aqui em Angola, e não é só em Angola, embora eu fale muito da realidade de Angola, é que os trabalhadores da função pública, sobretudo eles, têm tido muitas doenças do foro mental decorrente desta pressão. Ou seja, não há uma certa valorização pelo trabalhador. Porque, afinal, quem produz, quem faz a máquina funcionar, é o trabalhador, é o técnico. O chefe ou gestor está ali apenas para gerir e para orientar. Mas a cultura angolana, ela mostra-se muito diferente disso. Ou seja, o chefe sente-se dono das instituições na qual foram nomeados para gerir. Então tem gerado aí um conflito que, na verdade, tem causado muitas doenças do foro mental. Este é o tema principal deste livro. A Directora Nacional de Saúde Mental de Angola, Massoxi Vigário, no final do ano passado, deu uma entrevista aos órgãos de comunicação pública, onde ela aponta que o índice de doenças mentais decorrentes desta pressão do trabalho aqui em Angola tem crescido de forma assustadora. O número de licenças de trabalhadores da função pública, não só por causa dessas mesmas doenças, também tem crescido. Isto só veio dar uma ratificação naquilo que é a minha pesquisa", diz o investigador.

"Os dados que eu tenho, os mais recentes, apontam entre 55 a 60% de trabalhadores da função pública e não só, têm algum tipo de doença mental decorrente desta profissão de trabalho. Têm trabalhadores com ansiedade, têm trabalhadores com síndrome do pânico, têm trabalhadores com a síndrome de "burn-out". E têm trabalhadores com depressão. (...) Eu entrevistei aí perto de 270 trabalhadores da função pública e alguns poucos de instituições privadas. E aí, com isto, não há produtividade, porque normalmente isto acontece muito aqui em Angola, os trabalhadores são ensinados a produzir, dão formações para aprender, a elaborar um parecer, para aprender a dominar o Microsoft ou para aprender a dominar uma língua em inglês ou francês. Dão formações para ter um relacionamento inter e intrapessoal, tudo isso, mas não dão formações para os trabalhadores aprenderem a gerir as suas emoções. Não dão formações para que os trabalhadores aprendam a fazer a higiene mental. E eu faço uma citação do Professor Doutor Augusto Cury, que é uma autoridade nesta matéria no Brasil e mundo afora, que diz que para que haja produtividade é importante que se tenha uma saúde mental boa. E repare que eu depois trago também aqui uma uma citação da OMS que diz que quase 1 milhão de pessoas morrem por suicídio a cada ano no mundo. Veja a seriedade disto. E depois ele diz que é a terceira causa de morte na faixa etária economicamente mais produtiva de 15 a 44 anos e é a terceira causa, na verdade, de insatisfação de trabalhadores de instituições públicas e isto no mundo. Tudo isso para dizer que não há uma valorização como se deveria ter nas questões de saúde mental do trabalhador", considera o psicopedagogo.

Funcionários de Cabo Verde também são expostos ao "burn-out"

Em Cabo Verde, a questão do sofrimento no meio profissional tem igualmente gerado algum debate. Jacob Vicente, director do único Centro de Atendimento Psicológico na cidade da Praia, chamou recentemente a atenção das autoridades sobre o aumento do fenómeno do "burn-out" em Cabo Verde, especialmente na função pública.

"No nosso centro e durante estes dois últimos anos temos estado a fazer estatística dos nossos atendimentos e o que nós percebemos dos funcionários públicos é que de facto sentem-se esgotados, com muito cansaço, procrastinação, necessidade de estarem sozinhos, mas também fazendo muito esforço depois da época do covid para mostrar trabalho e destacar-se. São todos sintomas que derivam do "burn-out". Temos várias tentativas de suicídio de funcionários públicos cada vez mais com diagnóstico de depressão. Então são estes indícios que nós temos e fizemos um estudo, observações que nós fizemos na administração pública e encontros com os gestores de recursos humanos, em que percebemos que os funcionários estão com uma baixa tolerância, principalmente no "front office". Então, temos indícios muito fortes de que o "burn-out" é a nova pandemia nas empresas e nos serviços públicos em Cabo Verde", refere o terapeuta.

"Nos quase 4.000 casos que nós atendemos no ano passado, cerca de 1.500 a 1.700 casos têm todos o perfil de "burn-out". Nós também atendemos os cabo-verdianos que estão fora do país e muitos deles também apresentam estes casos. Nós fazemos atendimento online para países como Estados Unidos e a Europa e percebemos isso também", detalha Jacob Vicente que ao descrever as consequências deste fenómeno em termos de saúde pública, dá conta de duas consequências "bastante graves".

Para além de o "burn-out" ter "estado a dar prejuízo em milhões de dólares às empresas com o absentismo", o estudioso menciona o fenómeno do presenteísmo "em que as pessoas estão no trabalho mas não produzem absolutamente nada, não conseguem fazer absolutamente nada. É um indivíduo que entra na sua sala e, ao invés de ir falar com o colega ao lado, prefere mandar mensagem ou por e-mail, ou uma mensagem qualquer ou telefonar, mas evita o contacto físico. O sujeito que se encontra neste estado do presenteísmo, vai ao trabalho de facto, mas não consegue ver nada".

Este quadro é agravado segundo o psicólogo pelo facto de "a providência social não contribuir para que os funcionários públicos e as empresas tenham uma comparticipação nas psicoterapias. Isto torna a situação muito mais grave em Cabo Verde. Então as pessoas ficam completamente desamparadas e esse desamparo faz com que surja também o sentimento de desespero. O sentimento de desespero muitas vezes agrava o quadro de depressão".

Jacob Vicente refere por outro lado que apesar de existir "uma lei que defende o trabalhador no seu posto de trabalho, não há uma lei que cuida da saúde mental do trabalhador no seu posto de trabalho", este caso sendo "mais gritantes" quando se trata de classes profissionais como os professores ou os médicos.

Questionado sobre o balanço que faz do ano de 2024 que foi declarado pelo governo cabo-verdiano como ano da saúde mental, o especialista mostra-se crítico. "O decreto-lei trouxe uma intenção extraordinária do governo, que é cuidar da saúde mental dos cabo-verdianos, mas não passou disso. E não temos acções concretas que depois vão permitir ao governo fazer uma seleção de medidas implementadas para dizer 'olha, nós tivemos este resultado'. Sim, Por um lado, foi um ano em que se falou mais da saúde mental em Cabo Verde, mas não houve nada em concreto", considera Jacob Vicente que, no entanto, dá conta de uma forte consciencialização da população do arquipélago.

"Nós percebemos é que, cada vez mais, as pessoas querem ir ao psicólogo, querem ir ao psiquiatra. As pessoas estão a pedir ajuda nas rádios. Em Cabo Verde, as pessoas ligam e falam com especialistas. Nós fizemos alguns programas nas universidades em que as empresas vão lá e participam, pedem apoio, pedem sinais, o que que devem fazer, o que podem deixar de fazer. Há uma abertura muito grande da parte das pessoas que estão na administração pública, nas empresas, sobre o acesso aos profissionais de saúde mental", observa o terapeuta.