A medicina da dor e a área dos cuidados paliativos em foco
17 February 2025

A medicina da dor e a área dos cuidados paliativos em foco

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Sob a égide da iniciativa portuguesa '3 M' que desde 2021 desenvolve acções de voluntariado nos PALOP, uma equipa de quatro especialistas portugueses vai dar formação sobre a dor e os cuidados paliativos a 200 profissionais de saúde em Luanda, a convite do Instituto Angolano do Controlo do Cancro e do Ministério da Saúde de Angola, entre os dias 22 de Fevereiro e 1 de Março.

Para além de uma formação básica na área da dor e dos cuidados paliativos, nomeadamente com pacientes que sofrem de cancro, o grupo vai procurar fortalecer as pontes entre as academias de Coimbra, Porto e Angola, como já aconteceu em formações anteriores ministradas em Cabo Verde e Moçambique.

Hugo Ribeiro, médico paliativista e professor das faculdades de Medicina da Universidade de Coimbra e do Porto, é quem coordena esta equipa de especialistas. A pretexto desta formação, a RFI focou com ele os cuidados paliativos, o tratamento da dor e, para começar, o que se entende por dor.

De acordo com dados oficiais, pelo menos uma em cinco pessoas no mundo vive com dores crónicas moderadas a fortes, estas últimas sendo frequentemente o primeiro sintoma da presença de uma doença.

RFI: O que se entende por dor?

Hugo Ribeiro: Nós temos dois tipos de dor aguda e crónica. Eu julgo que aquilo que nós vamos tentar passar mais será uma formação na área da dor crónica. Portanto, nós temos dor crónica do foro oncológico e não oncológico. É a dor crónica. É uma dor que ocorre há mais de três meses. É isso que está descrito, embora o tempo, na minha opinião, possa não ser tão significativo. O que é mais significativo é que uma dor durante um determinado período de tempo ou com uma intensidade tal justifica que a multidimensão de uma pessoa começa a ficar afectada. Ou seja, "eu já não tenho só dor. Eu já me sinto irritado. Eu já não consigo dormir. Eu já tenho o meu foro sócio familiar afectado. Eu já não consigo ser produtivo no trabalho". E, portanto, isto gera um sofrimento global. E é por isso que nós vamos abordar, sobretudo este contexto da dor total. Dor associada a doenças graves. Mas uma dor que, sendo mal controlada, acaba por afectar o indivíduo como um todo e, portanto, o nosso objetivo é controlar a dor, mas também controlar as consequências que a dor crónica traz para a pessoa e para a sua família.

RFI: Como é que um médico consegue medir a dor de um paciente?

Hugo Ribeiro: Nós, neste momento, estamos totalmente dependentes do auto relato. Na grande maioria dos doentes, nós temos que confiar na intensidade da dor relatada pelo próprio doente. Também temos formas de avaliar, através da heteroavaliação, com escalas que estão validadas para as diferentes populações. Em Portugal, temos escalas validadas, em França terão outras validadas aí, e enfim, em todos os países nós temos escalas de hetero-avaliação que nos permitem olhar para uma pessoa e através da sua face, uma face de sofrimento, através de uma posição antialérgica, através da respiração, através de uma série de factores que nos podem indiciar a existência ou não da dor. Portanto, é parte da avaliação. É muito importante. "A sua dor, de zero a 10 quanto é que é? Zero? E inexistência de dor é dez. É uma dor máxima? Quanto é que classificaria neste momento da sua dor?" Esta é uma pergunta bastante simples, mas que nos permite fazer depois um follow-up daquilo que é a intervenção terapêutica e se tem ou não tem o resultado pretendido. É apenas numa única dimensão, neste caso, a intensidade. Mas temos outras dimensões. Temos, no fundo, os sintomas associados. Nós caracterizamos bem a dor e por isso é fundamental formarmos os profissionais para estarem alerta para esta importância, porque só assim é que depois vamos conseguir, do ponto de vista terapêutico, ser mais incisivos, mais rápidos e mais eficazes e também mais seguros no tratamento da dor.

RFI: Como é que se trata a dor?

Hugo Ribeiro: Trata-se também de uma perspectiva multidisciplinar. Particularmente a dor crónica. A dor aguda terá um tratamento sobretudo mais farmacológico. A dor crónica tem uma importância muito grande. Os tratamentos farmacológicos, sem dúvida. Nós vamos efectuar treino durante esta semana naquilo que é o tratamento ou a abordagem terapêutica multimodal. Portanto, com a utilização de vários fármacos que possam ser sinérgicos entre si. E o objectivo é que o doente não tenha efeitos adversos, ou atenuar ao máximo a possibilidade de termos um efeito secundário associado a um fármaco. Mas, por outro lado, também termos uma perspectiva de tratamento multidisciplinar a várias terapêuticas não farmacológicas, com evidência científica robusta da sua utilização, também com sinergias com terapêuticas farmacológicas e que nós temos que estar com muita atenção e tentar reforçar o seu papel no âmbito de todos os sistemas de saúde, particularmente a psicoterapia, a terapia cognitiva comportamental, a fisioterapia, as massagens de relaxamento, as terapêuticas, a eletroestimulação. Portanto, temos uma série de terapêuticas que vamos abordar um pouco mais ao de leve, porque numa semana não vai ser possível abordar todas estas questões de uma forma pormenorizada. Mas vamos, pelo menos do ponto de vista terapêutico farmacológico, dar uma série de ferramentas, de conhecimentos para que uma gestão eficaz de terapêuticas básicas e intermédias seja efectuada por todos os profissionais que estejam presentes.

RFI: A seu ver, o que é que poderia ainda ser melhorado nessa área da gestão da dor e dos cuidados paliativos?

Hugo Ribeiro: Nós consideramos que é absolutamente fundamental que tenhamos em todas as faculdades de medicina, de enfermagem, de psicologia, pelo menos nestas profissões, formação pré-graduada, acentuada na área da dor e dos cuidados paliativos. Acreditamos que é só assim será possível que toda a gente tenha formação básica em cuidados paliativos e que, portanto, tenha estas ferramentas bem sedimentadas na comunicação até às terapêuticas farmacológicas básicas para o controlo destes sintomas e para depois também estarem mais preparados para identificarem doentes com alta complexidade clínica que precisem, aí sim, de equipas especializadas, em cuidados paliativos. No fundo, estamos focados em doentes com sofrimento, mas um sofrimento mais complexo, que não está a responder a terapêuticas de primeira linha. E então precisamos de uma equipa focada e diferenciada, que utilize várias estratégias farmacológicas e não farmacológicas para tentar atenuar esse sofrimento, quer seja ele relacionado com dor ou quer seja ele relacionado com outro tipo de sintoma, seja ele existencial, seja ele cultural, seja ele laboral, social, familiar. Portanto, há uma série de sofrimentos associados a uma perda de autonomia ou uma perda relacionada com a evolução de uma doença crónica que progride e que, em muitas situações de doença avançada, acaba por afectar a nossa esfera pessoal.

RFI: Vão dar a essa formação relativa à dor e aos cuidados paliativos em Angola. Já deram essa formação em Moçambique, em 2021, e também em Cabo Verde, em 2023 e no ano passado. Globalmente, qual foi o feedback depois dessas formações?

Hugo Ribeiro: Nós continuamos com uma ligação forte tanto a Moçambique como a Cabo Verde. O nosso objectivo é desenvolver condições para que haja formação básica. Continuamos com uma ligação. Praticamente todos os colegas que estiveram connosco a formação, continuam a partilhar connosco experiências, casos clínicos, tirar dúvidas ou pedir segundas opiniões. E, portanto, esse é um crescimento que acreditamos que é frutífero para ambos os lados. Acabamos também nós por ser confrontados com situações, com desafios, com obstáculos que não temos no nosso contexto e com outras situações, porventura, que podemos aprender também nos nossos próprios locais de trabalho, a lidar melhor do que se não tivéssemos esta ligação com os colegas de Moçambique e Cabo Verde. Por outro lado, temos um objectivo secundário que eu julgo que poderá vir a ser possível já no ano lectivo de 2025 / 2026, que é a abertura de uma pós-graduação em Cuidados Paliativos em Cabo Verde, com a colaboração da Universidade de Cabo Verde e a Universidade de Coimbra, promovida precisamente pelas nossas intervenções em que, no fundo, tornemos Cabo Verde e espero que também todos os PALOPs autossustentáveis no sentido da formação diferenciada. Portanto, nós estamos aqui focados em formação básica, mas também queremos que os colegas tenham a possibilidade de ter acesso à formação avançada, tenham as suas próprias equipas especializadas e que depois também promovam mais e melhor medicina da dor e cuidados paliativos nestes países.

RFI: Quais são as vossas expectativas relativamente à formação que vão dar em Angola daqui a uns dias?

Hugo Ribeiro: A nossa expectativa é que, no fundo, possamos ser mais uma parte da solução, que sejamos uma centelha de esperança para tantas pessoas que, já em Angola e Luanda, particularmente, tentam desenvolver os cuidados paliativos. Tentaremos reforçar a importância destas áreas da medicina da dor e dos cuidados paliativos junto dos outros colegas. E, portanto, temos a esperança de que, sendo essa centelha de esperança, acabemos por estimular que mais colegas procurem a formação mais diferenciada para estas áreas, para que haja um novo impulso, sobretudo dos cuidados paliativos em Angola. Isso seria o fundamental. Haver mais colegas, mais pessoas disponíveis para se especializarem nos cuidados paliativos e poderem dar um novo rumo também para esta área em Angola.