Ciência
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Uma vez por semana, os temas que marcam a actualidade científica são aqui descodificados.

A medicina da dor e a área dos cuidados paliativos em foco
17 February 2025
A medicina da dor e a área dos cuidados paliativos em foco

Sob a égide da iniciativa portuguesa '3 M' que desde 2021 desenvolve acções de voluntariado nos PALOP, uma equipa de quatro especialistas portugueses vai dar formação sobre a dor e os cuidados paliativos a 200 profissionais de saúde em Luanda, a convite do Instituto Angolano do Controlo do Cancro e do Ministério da Saúde de Angola, entre os dias 22 de Fevereiro e 1 de Março.

Para além de uma formação básica na área da dor e dos cuidados paliativos, nomeadamente com pacientes que sofrem de cancro, o grupo vai procurar fortalecer as pontes entre as academias de Coimbra, Porto e Angola, como já aconteceu em formações anteriores ministradas em Cabo Verde e Moçambique.

Hugo Ribeiro, médico paliativista e professor das faculdades de Medicina da Universidade de Coimbra e do Porto, é quem coordena esta equipa de especialistas. A pretexto desta formação, a RFI focou com ele os cuidados paliativos, o tratamento da dor e, para começar, o que se entende por dor.

De acordo com dados oficiais, pelo menos uma em cinco pessoas no mundo vive com dores crónicas moderadas a fortes, estas últimas sendo frequentemente o primeiro sintoma da presença de uma doença.

RFI: O que se entende por dor?

Hugo Ribeiro: Nós temos dois tipos de dor aguda e crónica. Eu julgo que aquilo que nós vamos tentar passar mais será uma formação na área da dor crónica. Portanto, nós temos dor crónica do foro oncológico e não oncológico. É a dor crónica. É uma dor que ocorre há mais de três meses. É isso que está descrito, embora o tempo, na minha opinião, possa não ser tão significativo. O que é mais significativo é que uma dor durante um determinado período de tempo ou com uma intensidade tal justifica que a multidimensão de uma pessoa começa a ficar afectada. Ou seja, "eu já não tenho só dor. Eu já me sinto irritado. Eu já não consigo dormir. Eu já tenho o meu foro sócio familiar afectado. Eu já não consigo ser produtivo no trabalho". E, portanto, isto gera um sofrimento global. E é por isso que nós vamos abordar, sobretudo este contexto da dor total. Dor associada a doenças graves. Mas uma dor que, sendo mal controlada, acaba por afectar o indivíduo como um todo e, portanto, o nosso objetivo é controlar a dor, mas também controlar as consequências que a dor crónica traz para a pessoa e para a sua família.

RFI: Como é que um médico consegue medir a dor de um paciente?

Hugo Ribeiro: Nós, neste momento, estamos totalmente dependentes do auto relato. Na grande maioria dos doentes, nós temos que confiar na intensidade da dor relatada pelo próprio doente. Também temos formas de avaliar, através da heteroavaliação, com escalas que estão validadas para as diferentes populações. Em Portugal, temos escalas validadas, em França terão outras validadas aí, e enfim, em todos os países nós temos escalas de hetero-avaliação que nos permitem olhar para uma pessoa e através da sua face, uma face de sofrimento, através de uma posição antialérgica, através da respiração, através de uma série de factores que nos podem indiciar a existência ou não da dor. Portanto, é parte da avaliação. É muito importante. "A sua dor, de zero a 10 quanto é que é? Zero? E inexistência de dor é dez. É uma dor máxima? Quanto é que classificaria neste momento da sua dor?" Esta é uma pergunta bastante simples, mas que nos permite fazer depois um follow-up daquilo que é a intervenção terapêutica e se tem ou não tem o resultado pretendido. É apenas numa única dimensão, neste caso, a intensidade. Mas temos outras dimensões. Temos, no fundo, os sintomas associados. Nós caracterizamos bem a dor e por isso é fundamental formarmos os profissionais para estarem alerta para esta importância, porque só assim é que depois vamos conseguir, do ponto de vista terapêutico, ser mais incisivos, mais rápidos e mais eficazes e também mais seguros no tratamento da dor.

RFI: Como é que se trata a dor?

Hugo Ribeiro: Trata-se também de uma perspectiva multidisciplinar. Particularmente a dor crónica. A dor aguda terá um tratamento sobretudo mais farmacológico. A dor crónica tem uma importância muito grande. Os tratamentos farmacológicos, sem dúvida. Nós vamos efectuar treino durante esta semana naquilo que é o tratamento ou a abordagem terapêutica multimodal. Portanto, com a utilização de vários fármacos que possam ser sinérgicos entre si. E o objectivo é que o doente não tenha efeitos adversos, ou atenuar ao máximo a possibilidade de termos um efeito secundário associado a um fármaco. Mas, por outro lado, também termos uma perspectiva de tratamento multidisciplinar a várias terapêuticas não farmacológicas, com evidência científica robusta da sua utilização, também com sinergias com terapêuticas farmacológicas e que nós temos que estar com muita atenção e tentar reforçar o seu papel no âmbito de todos os sistemas de saúde, particularmente a psicoterapia, a terapia cognitiva comportamental, a fisioterapia, as massagens de relaxamento, as terapêuticas, a eletroestimulação. Portanto, temos uma série de terapêuticas que vamos abordar um pouco mais ao de leve, porque numa semana não vai ser possível abordar todas estas questões de uma forma pormenorizada. Mas vamos, pelo menos do ponto de vista terapêutico farmacológico, dar uma série de ferramentas, de conhecimentos para que uma gestão eficaz de terapêuticas básicas e intermédias seja efectuada por todos os profissionais que estejam presentes.

RFI: A seu ver, o que é que poderia ainda ser melhorado nessa área da gestão da dor e dos cuidados paliativos?

Hugo Ribeiro: Nós consideramos que é absolutamente fundamental que tenhamos em todas as faculdades de medicina, de enfermagem, de psicologia, pelo menos nestas profissões, formação pré-graduada, acentuada na área da dor e dos cuidados paliativos. Acreditamos que é só assim será possível que toda a gente tenha formação básica em cuidados paliativos e que, portanto, tenha estas ferramentas bem sedimentadas na comunicação até às terapêuticas farmacológicas básicas para o controlo destes sintomas e para depois também estarem mais preparados para identificarem doentes com alta complexidade clínica que precisem, aí sim, de equipas especializadas, em cuidados paliativos. No fundo, estamos focados em doentes com sofrimento, mas um sofrimento mais complexo, que não está a responder a terapêuticas de primeira linha. E então precisamos de uma equipa focada e diferenciada, que utilize várias estratégias farmacológicas e não farmacológicas para tentar atenuar esse sofrimento, quer seja ele relacionado com dor ou quer seja ele relacionado com outro tipo de sintoma, seja ele existencial, seja ele cultural, seja ele laboral, social, familiar. Portanto, há uma série de sofrimentos associados a uma perda de autonomia ou uma perda relacionada com a evolução de uma doença crónica que progride e que, em muitas situações de doença avançada, acaba por afectar a nossa esfera pessoal.

RFI: Vão dar a essa formação relativa à dor e aos cuidados paliativos em Angola. Já deram essa formação em Moçambique, em 2021, e também em Cabo Verde, em 2023 e no ano passado. Globalmente, qual foi o feedback depois dessas formações?

Hugo Ribeiro: Nós continuamos com uma ligação forte tanto a Moçambique como a Cabo Verde. O nosso objectivo é desenvolver condições para que haja formação básica. Continuamos com uma ligação. Praticamente todos os colegas que estiveram connosco a formação, continuam a partilhar connosco experiências, casos clínicos, tirar dúvidas ou pedir segundas opiniões. E, portanto, esse é um crescimento que acreditamos que é frutífero para ambos os lados. Acabamos também nós por ser confrontados com situações, com desafios, com obstáculos que não temos no nosso contexto e com outras situações, porventura, que podemos aprender também nos nossos próprios locais de trabalho, a lidar melhor do que se não tivéssemos esta ligação com os colegas de Moçambique e Cabo Verde. Por outro lado, temos um objectivo secundário que eu julgo que poderá vir a ser possível já no ano lectivo de 2025 / 2026, que é a abertura de uma pós-graduação em Cuidados Paliativos em Cabo Verde, com a colaboração da Universidade de Cabo Verde e a Universidade de Coimbra, promovida precisamente pelas nossas intervenções em que, no fundo, tornemos Cabo Verde e espero que também todos os PALOPs autossustentáveis no sentido da formação diferenciada. Portanto, nós estamos aqui focados em formação básica, mas também queremos que os colegas tenham a possibilidade de ter acesso à formação avançada, tenham as suas próprias equipas especializadas e que depois também promovam mais e melhor medicina da dor e cuidados paliativos nestes países.

RFI: Quais são as vossas expectativas relativamente à formação que vão dar em Angola daqui a uns dias?

Hugo Ribeiro: A nossa expectativa é que, no fundo, possamos ser mais uma parte da solução, que sejamos uma centelha de esperança para tantas pessoas que, já em Angola e Luanda, particularmente, tentam desenvolver os cuidados paliativos. Tentaremos reforçar a importância destas áreas da medicina da dor e dos cuidados paliativos junto dos outros colegas. E, portanto, temos a esperança de que, sendo essa centelha de esperança, acabemos por estimular que mais colegas procurem a formação mais diferenciada para estas áreas, para que haja um novo impulso, sobretudo dos cuidados paliativos em Angola. Isso seria o fundamental. Haver mais colegas, mais pessoas disponíveis para se especializarem nos cuidados paliativos e poderem dar um novo rumo também para esta área em Angola.

"IA pode ser grande aliado no desenvolvimento dos países africanos"
11 February 2025
"IA pode ser grande aliado no desenvolvimento dos países africanos"

Em Cabo Verde são já muitas as áreas que procuram a inteligência artificial, nomeadamente a agricultura. Todavia, os ganhos da inteligência artificial podem sentir-se também no sector da medicina, na educação e na promoção do crioulo. O professor na Universidade de Cabo Verde e especialista em inteligência artificial, Arlindo Veiga, acredita que a inteligência artificial pode ser um motor de desenvolvimento em África.

A inteligência artificial pode ser um motor de desenvolvimento em África? 

Sinceramente, sim. Basta ver o potencial que é reconhecido através da utilização da inteligência artificial. No entanto, não podemos esquecer o perigo de se criar um fosso, ainda maior, entre os países ricos e os países pobres. Uma forma de combater essa realidade é garantir que o benefício da inteligência artificial seja efectivamente distribuído por todos. Se assim for, será um grande aliado no desenvolvimento dos países africanos.

Qual é a utilização da inteligência artificial em Cabo Verde?

Neste momento, estamos a fazer ainda uma utilização exploratória, mas reconhecemos também um potencial enorme, principalmente na agricultura e na questão das regas inteligentes. Em Cabo Verde temos um problema de escassez de água e se arranjarmos sistemas inteligentes que controlem a irrigação, por exemplo, e fazer a gestão inteligente da água, distribuindo-a entre os vários reservatórios que existem cá, seria uma grande ajuda. 

Cabo Verde é um país arquipélagico e é muito difícil termos infra-estruturas em todas as ilhas. Estou a falar, por exemplo, na área da medicina, é difícil termos hospitais em todas as ilhas habitadas, talvez seja possível num futuro muito distante. Porém, se utilizamos as tecnologias de inteligência artificial, podemos levar certos serviços a zonas onde, sem essas tecnologias, seria impossível.

Ou seja, onde muitas vezes não pode estar um médico, poderá estar uma máquina que fará um diagnóstico ao paciente que não se pode deslocar a um hospital?

Sim. Ou em vez de ter o médico, ter apenas um especialista em recolha de imagens e análise, Ou então, ter um médico, mas todo o processo de exames ser auxiliado pela inteligência artificial.

A inteligência artificial pode ainda ter um impacto na educação, uma vez que não temos universidades em todas as ilhas e fica dispendioso para os alunos deslocarem-se, auxiliando na difusão do conhecimento de forma equitativa entre todas as pessoas deste país. A língua materna, que é o crioulo e que não tem muitos recursos, pode muito bem ser desenvolvida,  difundida a nível mundial e na nossa diáspora espalhada pelo mundo.

A seu ver, as autoridades têm criado infra-estruturas e têm providenciado, por exemplo, formação para que todos os cabo-verdianos possam beneficiar da inteligência artificial?

Ainda estamos um pouco atrasados, porque já temos países na região que já têm uma estratégia de inteligência artificial. Felizmente, em Janeiro, tivemos a semana da República que comemora datas importantes [34.º aniversário do Dia da Liberdade e da Democracia] a inteligência artificial esteve no centro do debate [o Presidente da República, José Maria Neves, afirmou que o país não pode ficar à margem das oportunidades oferecidas pela inteligência artificial para promover a dignidade da pessoa humana]. 

Entretanto, o meu receio é que este discurso vá mais no sentido de regulamentar. Eu tenho alguma prudência quanto a isso. Não se pode regulamentar o que não se conhece.

A desinformação está muitas vezes associada à inteligência artificial. Quais são os riscos da desinformação?

Tivemos uma campanha autárquica e vimos várias publicações - imagens e vídeos - com vozes adulteradas e figuras de relevo a fazerem afirmações que exigem muita atenção para perceber que não é real. Ou seja, é algo que já está a acontecer na nossa sociedade.

Acredita que há uma ameaça à boa governação, à democracia e aos direitos humanos?

A inteligência artificial em si não é uma ameaça, mas é preciso ter mecanismos que controlem a sua utilização. Como todas as outras tecnologias, podemos usá-la para o bem e podemos usá-la para o mal.

Qual é o papel da regulamentação? O que tem sido feito em Cabo Verde?

A regulamentação é importante, sem dúvida, mas eu ponho o foco na educação, mostrando o potencial que a inteligência artificial pode ter. Todas as pessoas que hoje em dia falam em regulamentação, normalmente, falam em regulamentação no sentido de controlar, o que a meu ver terá um impacto na criatividade. Eu teria alguma cautela neste ponto. É claro que existem directivas da UNESCO sobre a ética na inteligência artificial, que são reconhecidas quase por todos os países. A União Europeia já tem regulamentação que se pode aplicar aqui também ou fazer a sua adaptação interna.

O que realmente precisamos é que os políticos definam quais são as áreas prioritárias e definam uma estratégia. Depois, haverá um financiamento, políticas e terão de se criar infra-estruturas. Nós não podemos regulamentar antes de fazermos este percurso.

Considera que Cabo Verde se aproxima mais da Europa, que muitas vezes é acusada de ter uma regulamentação pesada, ou dos Estados Unidos ou da China, onde muitas vezes a regulação não existe e até se está mais a desregulamentar?

Em termos tecnológicos, temos a tendência de seguir a regulamentação da Europa. No entanto, neste ponto da inteligência artificial, deveríamos seguir o bloco da nossa região. Na nossa região africana, o Senegal, o Gana e outros países que também estão a tentar ter uma visão africana da inteligência.

Ou a Nigéria?

Exactamente. A Nigéria que é o grande player. No entanto, nestas questões é preciso que haja equilíbrio e Cabo Verde, nesta região, não tem muita expressão. Somos um país de meio milhão de habitantes, falamos português e na nossa região há um grande lobby francês e inglês. Porém, o facto de sermos um arquipélago, com todas as particularidades, faz com que faça todo o sentido englobar Cabo Verde neste bloco, se se quiser fazer uma implementação responsável de inteligência artificial. Ou seja, sem deixar ninguém para trás e contemplando toda a diversidade.

Nesse sentido, devemos criar uma estratégia específica para a nossa região e, quiçá, ser o exemplo para a África. Para que o continente tenha a sua voz no mundo e não apenas fazer um "copy-paste" do que existe nas outras regiões em termos regulamentares. Também acho que deveríamos ter um regulamento adaptado à nossa realidade. Um regulamento que não seja tão pesado como na Europa, mas que não seja tão desregulado, como nos outros exemplos que citou.

O DeepSeek, lançado por uma startup chinesa, ganhou grande destaque ao superar o ChatGPT. No entanto, vários países se mostraram preocupados com a segurança, e alguns até proibiram a utilização do DeepSeek. Qual é a posição de Cabo Verde relativamente ao DeepSeek?

Não posso falar em nome de Cabo Verde, mas posso dizer que foi recebido com um sentido crítico junto da comunidade académica. Todavia, há um facto que todos reconhecem, conseguiu-se fazer algo com muito menos recursos e com grandes restrições. Trata-se de um sinal de que, se for usada não apenas a força bruta do processamento, mas também a eficiência com poucos recursos, pode-se chegar longe.

Em Cabo Verde podemos muito bem aproveitar o código aberto, aliás não é assim tão aberto, mas oferece mais detalhes dos sistemas, que outros escondem, devido à questão da propriedade intelectual como segredo de negócio, para não revelar como os modelos foram feitos. Aqui podemos aprender com os vários movimentos, focando-nos não só num único ponto, mas vendo tudo o que está a acontecer nos vários blocos e adaptando, criando a nossa própria abordagem. Num  país com recursos limitados como o nosso, eu sugeriria que fosse melhor fazer a adaptação de modelos ou "transfer learning", que é um termo muito utilizado, com modelos que já deram provas, mas para os quais não temos capacidade para desenvolver do zero. Podemos injectar os nossos dados e adaptá-los para reflectir a nossa realidade.

Aumenta a visibilidade do "burn-out" no trabalho em Angola e em Cabo Verde
03 February 2025
Aumenta a visibilidade do "burn-out" no trabalho em Angola e em Cabo Verde

Desde 2019, o "burn-out ", ou seja o esgotamento, o cansaço extremo gerado pela forte pressão, o stress ou o excesso de carga em termos de horário ou tarefas no emprego tem sido reconhecido pela Organização Mundial da Saúde como um problema com consequências sobre a saúde pública, muito embora os seus contornos e dimensões sejam ainda difíceis de estabelecer em termos estatísticos.

De acordo com dados da OMS datando de 2023, pelo menos 35% dos trabalhadores na Europa, dizem ter estado perto do esgotamento ou sofreram um "burn-out" no trabalho.

Neste quadro, África não é excepção. Nos casos de Angola e Cabo Verde tem havido alguns alertas sobre o aumento do número de "burn-outs".

Sofrimento psicológico no trabalho faz parte da realidade angolana

Dados oficiais apontam que no ano passado em Angola foram registadas mais de 300 mil pessoas com transtornos mentais, sendo que as autoridades referem ainda que 25% dos trabalhadores enfrentaram problemas desta natureza devido ao trabalho.

No passado mês de Janeiro, o psicopedagogo angolano Ngangula de Sousa lançou um livro precisamente sobre esta matéria intitulado "Doenças mentais decorrentes da pressão no trabalho".

Em entrevista concedida à RFI, ele dá conta de algumas das suas conclusões baseadas nomeadamente em entrevistas efectuadas junto de mais de 270 funcionários. "O que tem se verificado aqui em Angola, e não é só em Angola, embora eu fale muito da realidade de Angola, é que os trabalhadores da função pública, sobretudo eles, têm tido muitas doenças do foro mental decorrente desta pressão. Ou seja, não há uma certa valorização pelo trabalhador. Porque, afinal, quem produz, quem faz a máquina funcionar, é o trabalhador, é o técnico. O chefe ou gestor está ali apenas para gerir e para orientar. Mas a cultura angolana, ela mostra-se muito diferente disso. Ou seja, o chefe sente-se dono das instituições na qual foram nomeados para gerir. Então tem gerado aí um conflito que, na verdade, tem causado muitas doenças do foro mental. Este é o tema principal deste livro. A Directora Nacional de Saúde Mental de Angola, Massoxi Vigário, no final do ano passado, deu uma entrevista aos órgãos de comunicação pública, onde ela aponta que o índice de doenças mentais decorrentes desta pressão do trabalho aqui em Angola tem crescido de forma assustadora. O número de licenças de trabalhadores da função pública, não só por causa dessas mesmas doenças, também tem crescido. Isto só veio dar uma ratificação naquilo que é a minha pesquisa", diz o investigador.

"Os dados que eu tenho, os mais recentes, apontam entre 55 a 60% de trabalhadores da função pública e não só, têm algum tipo de doença mental decorrente desta profissão de trabalho. Têm trabalhadores com ansiedade, têm trabalhadores com síndrome do pânico, têm trabalhadores com a síndrome de "burn-out". E têm trabalhadores com depressão. (...) Eu entrevistei aí perto de 270 trabalhadores da função pública e alguns poucos de instituições privadas. E aí, com isto, não há produtividade, porque normalmente isto acontece muito aqui em Angola, os trabalhadores são ensinados a produzir, dão formações para aprender, a elaborar um parecer, para aprender a dominar o Microsoft ou para aprender a dominar uma língua em inglês ou francês. Dão formações para ter um relacionamento inter e intrapessoal, tudo isso, mas não dão formações para os trabalhadores aprenderem a gerir as suas emoções. Não dão formações para que os trabalhadores aprendam a fazer a higiene mental. E eu faço uma citação do Professor Doutor Augusto Cury, que é uma autoridade nesta matéria no Brasil e mundo afora, que diz que para que haja produtividade é importante que se tenha uma saúde mental boa. E repare que eu depois trago também aqui uma uma citação da OMS que diz que quase 1 milhão de pessoas morrem por suicídio a cada ano no mundo. Veja a seriedade disto. E depois ele diz que é a terceira causa de morte na faixa etária economicamente mais produtiva de 15 a 44 anos e é a terceira causa, na verdade, de insatisfação de trabalhadores de instituições públicas e isto no mundo. Tudo isso para dizer que não há uma valorização como se deveria ter nas questões de saúde mental do trabalhador", considera o psicopedagogo.

Funcionários de Cabo Verde também são expostos ao "burn-out"

Em Cabo Verde, a questão do sofrimento no meio profissional tem igualmente gerado algum debate. Jacob Vicente, director do único Centro de Atendimento Psicológico na cidade da Praia, chamou recentemente a atenção das autoridades sobre o aumento do fenómeno do "burn-out" em Cabo Verde, especialmente na função pública.

"No nosso centro e durante estes dois últimos anos temos estado a fazer estatística dos nossos atendimentos e o que nós percebemos dos funcionários públicos é que de facto sentem-se esgotados, com muito cansaço, procrastinação, necessidade de estarem sozinhos, mas também fazendo muito esforço depois da época do covid para mostrar trabalho e destacar-se. São todos sintomas que derivam do "burn-out". Temos várias tentativas de suicídio de funcionários públicos cada vez mais com diagnóstico de depressão. Então são estes indícios que nós temos e fizemos um estudo, observações que nós fizemos na administração pública e encontros com os gestores de recursos humanos, em que percebemos que os funcionários estão com uma baixa tolerância, principalmente no "front office". Então, temos indícios muito fortes de que o "burn-out" é a nova pandemia nas empresas e nos serviços públicos em Cabo Verde", refere o terapeuta.

"Nos quase 4.000 casos que nós atendemos no ano passado, cerca de 1.500 a 1.700 casos têm todos o perfil de "burn-out". Nós também atendemos os cabo-verdianos que estão fora do país e muitos deles também apresentam estes casos. Nós fazemos atendimento online para países como Estados Unidos e a Europa e percebemos isso também", detalha Jacob Vicente que ao descrever as consequências deste fenómeno em termos de saúde pública, dá conta de duas consequências "bastante graves".

Para além de o "burn-out" ter "estado a dar prejuízo em milhões de dólares às empresas com o absentismo", o estudioso menciona o fenómeno do presenteísmo "em que as pessoas estão no trabalho mas não produzem absolutamente nada, não conseguem fazer absolutamente nada. É um indivíduo que entra na sua sala e, ao invés de ir falar com o colega ao lado, prefere mandar mensagem ou por e-mail, ou uma mensagem qualquer ou telefonar, mas evita o contacto físico. O sujeito que se encontra neste estado do presenteísmo, vai ao trabalho de facto, mas não consegue ver nada".

Este quadro é agravado segundo o psicólogo pelo facto de "a providência social não contribuir para que os funcionários públicos e as empresas tenham uma comparticipação nas psicoterapias. Isto torna a situação muito mais grave em Cabo Verde. Então as pessoas ficam completamente desamparadas e esse desamparo faz com que surja também o sentimento de desespero. O sentimento de desespero muitas vezes agrava o quadro de depressão".

Jacob Vicente refere por outro lado que apesar de existir "uma lei que defende o trabalhador no seu posto de trabalho, não há uma lei que cuida da saúde mental do trabalhador no seu posto de trabalho", este caso sendo "mais gritantes" quando se trata de classes profissionais como os professores ou os médicos.

Questionado sobre o balanço que faz do ano de 2024 que foi declarado pelo governo cabo-verdiano como ano da saúde mental, o especialista mostra-se crítico. "O decreto-lei trouxe uma intenção extraordinária do governo, que é cuidar da saúde mental dos cabo-verdianos, mas não passou disso. E não temos acções concretas que depois vão permitir ao governo fazer uma seleção de medidas implementadas para dizer 'olha, nós tivemos este resultado'. Sim, Por um lado, foi um ano em que se falou mais da saúde mental em Cabo Verde, mas não houve nada em concreto", considera Jacob Vicente que, no entanto, dá conta de uma forte consciencialização da população do arquipélago.

"Nós percebemos é que, cada vez mais, as pessoas querem ir ao psicólogo, querem ir ao psiquiatra. As pessoas estão a pedir ajuda nas rádios. Em Cabo Verde, as pessoas ligam e falam com especialistas. Nós fizemos alguns programas nas universidades em que as empresas vão lá e participam, pedem apoio, pedem sinais, o que que devem fazer, o que podem deixar de fazer. Há uma abertura muito grande da parte das pessoas que estão na administração pública, nas empresas, sobre o acesso aos profissionais de saúde mental", observa o terapeuta.

Espaço: "Mudança na política americana traz Marte para a ordem do dia"
28 January 2025
Espaço: "Mudança na política americana traz Marte para a ordem do dia"

Se a chegada do Ser Humano à lua já constituiu “um pequeno passo para o Homem, um grande passo para a Humanidade”, a chegada ao Planeta vermelho seria um passo gigantesco. Esta ambição, há muito que é manifestada pelo bilionário americano Elon Musk. Este tema sobre a "conquista" do Planeta Marte voltou à ribalta com a eleição de Donald Trump, que defendeu, no dia em que chegou à Casa Branca, que querer enviar astronautas a Marte e colocar a bandeira dos EUA no planeta.

Foi precisamente sobre este tema que conversámos com Vasco Guerra, investigador e professor no Instituto Superior Técnico, da Universidade de Lisboa. 

RFI: Porque é que existe este lapso temporal tão grande entre a ida do Homem à Lua e só agora se estar a projectar a ida a Marte?

Vasco Guerra: É uma pergunta bastante complicada. A exploração espacial, mesmo o voltar à Lua, tornou-se uma missão ou um desafio, se calhar, maior do que a maior parte das pessoas estaria à espera, uma vez que já tinha havido homens na Lua. Mas, até agora, ainda não se regressou à lua.

[Em causa, poderão estar aqui] questões estratégicas do fim da Guerra Fria, dos desafios tecnológicos... Na altura, havia riscos que estavam dispostos a tomar e agora deixou-se de estar. A pergunta é mais complicada do que pode parecer porque não é só passar da Lua a Marte. É quase que passar da Lua a voltarmos a ter capacidade de ir à Lua para depois pensar em Marte. E tem a ver com todo o contexto geopolítico, de financiamento e também com as estratégias das potências mundiais, mais concretamente, onde é que está o seu foco e a importância da corrida espacial nesta geopolítica.

RFI: Mas a nível técnico, quais são as principais dificuldades até ao momento que fizeram com que isso ainda não tenha sido possível? Eu li muito, por exemplo, sobre a questão da dificuldade ao nível do combustível. Há aqui vários factores que podem interferir nesta questão, não é?

Vasco Guerra: Sim, claro. Esta é uma missão muitíssimo mais complicada do que ir à Lua. Desde logo, pelo tempo que dura. São missões muito longas, que envolvem depois toda a logística de alimentação, o combustível para ir e voltar, mas essencialmente depois para voltar. São escalas de tempo incomparáveis. Meses... Meio ano, pelo menos. E eventualmente, se for para ficar, pode ser que tenha que se ficar quase dois anos, ficar bastante tempo antes de voltar. É uma operação que tem uma logística muito diferente de ir à Lua. Essencialmente, devido às questões da água, comida e combustível. Depois existe a parte da radiação, que é muito complicada também. Portanto, a exposição à radiação, do ponto de vista dos efeitos para a saúde, são coisas muito diferentes de ir à Lua. 

RFI: E até que o Homem possa pisar Marte, existirão também nos próximos meses, nos próximos anos, várias missões anteriores de preparação, muitas delas incluirão apenas o envio de equipamentos para se estudar, por exemplo, o solo e outras características também do planeta. Sabe dizer-me o que é que farão exatamente nessas missões anteriores? 

Vasco Guerra: Há várias componentes. Há missões só de estudo científico, mas para enviar humanos há uma componente que é aquela onde eu trabalho mais directamente, que é a de como utilizar os recursos naturais do planeta para evitar ter que transportar coisas da Terra.

Tudo o que seja produzir localmente, recursos que sejam úteis para a missão, que se possa produzir no local, obviamente que simplifica a logística, pois permite reduzir os custos e usar esse espaço para levar outras coisas nas naves espaciais que vão fazer a missão.

Já existe uma máquina da NASA que faz uma prova de conceito da produção de oxigénio em Marte, a partir da atmosfera do planeta. Portanto, a atmosfera marciana é dióxido de carbono. Essencialmente, 96% é dióxido de carbono. Isto é algo que não deixa de ter alguma graça. Nós aqui na Terra, lutamos agora com com o excesso de dióxido de carbono e temos que perceber como controlar e talvez o utilizar.

Em Marte, a atmosfera já é dióxido de carbono e, portanto, é necessário fazer o contrário: retirar o oxigénio da molécula de dióxido de carbono. Já há uma máquina que está a fazer isso, mas é um primeiro passo. Oxigénio é o passo zero ou o passo um para conseguirmos alguma coisa. Portanto, há essa missão.

Depois aparecerão, de certeza, as questões da água. Há gelo debaixo da superfície de Marte, depois temos também a questão dos combustíveis. O mesmo oxigénio que usamos para respirar vai, se calhar, ser mais importante como uma componente da mistura depois do combustível para regressar. O monóxido de carbono, que é também resultado da decomposição do dióxido de carbono, também pode ser usado como um elemento do combustível. Portanto, combustível, será mais importante, a produção local, do que propriamente o oxigénio em si para respirar. 

RFI: Há pouco falávamos desta questão do oxigénio. Eu sei que grande parte do seu trabalho passa por tentar arranjar uma forma de produzir oxigénio depois de se aterrar em Marte. Em que ponto é que está a sua investigação neste sentido? 

Vasco Guerra: A ideia está relacionada com o que eu estava a descrever há bocadinho, de usar o dióxido de carbono da atmosfera marciana como matéria prima para produzir o oxigénio. Portanto, a NASA tem essa experiência, que é baseada em tecnologia que existe na Terra. Portanto, é uma experiência muito espetacular, mas em que a ideia é chegar a Marte, recriar localmente um bocadinho as condições que existem na Terra, ter uma atmosfera um bocadinho mais densa e quente.

Portanto, é preciso comprimir a atmosfera marciana, aquecer e depois usar a tecnologia que existe na Terra. Nós estamos a tentar fazer o contrário, que é usar uma tecnologia que seja aplicável logo nas condições da atmosfera marciana. Portanto, a pressões e temperaturas mais baixas do que na Terra. Estamos entusiasmados e contentes. Estamos na primeira parte do processo, que é a da molécula de dióxido de carbono, como a decompor nos seus elementos, oxigénio e monóxido de carbono. Mas ainda estamos a tentar perceber e optimizar a parte a seguir, que é uma vez produzido o oxigénio, como  separá-lo? Ele vai estar numa mistura e não queremos respirar monóxido de carbono, de certeza, não é?

RFI: Em termos gerais, o que é que já se sabe sobre sobre este planeta que desperta tanta curiosidade? 

Vasco Guerra: Há, de facto, essa questão de que poderá ter tido condições para o aparecimento de vida nas formas mais primitivas, semelhantes às da Terra. Há pessoas que têm essa expectativa e que procuram evidências disso poder ou não ter acontecido. É também um planeta que nos permite tentar perceber como é que a Terra terá evoluído. Não está assim muito longe e tem algumas características parecidas.

RFI: Até porque a Terra e Marte surgiram mais ou menos, ao mesmo tempo, não é? 

Vasco Guerra: Sim. E há esta questão: quais são os recursos naturais que existem em Marte? Portanto, há os mais básicos que vêm da atmosfera que são o carbono e o oxigénio. Depois, a uma profundidade que não é muito grande,a poucos metros, poderá haver a água, que traz o hidrogénio. Há poucos átomos ou poucos elementos que são omnipresentes em tudo o que se queira fazer.

O carbono, o oxigénio e o azoto existem na atmosfera de Marte, portanto estão logo acessíveis. Não estou a dizer que sejam fáceis de extrair, não é? Mas estão acessíveis. E o hidrogénio também está relativamente acessível, a profundidades que não são muito grandes, e isso permite que se comece a pensar em muitos processos e na fabricação de dimensores compostos mais complicados, que são mais ricos, que são necessários para todas as tecnologias. Depois, há os minerais do solo, que é aquilo que também se está a aprender um bocadinho com a exploração da lua. Há vários metais no solo que depois poderão ser utilizados e aproveitados para outras coisas. 

RFI: Na sua óptica, quando é que acha que será real ou, viável que o homem possa pisar o planeta Marte? 

Vasco Guerra: Acho que vai levar tempo, creio que o fim da década é capaz de ser um bocadinho optimista. Talvez no final da década a seguir. E vai depender do empenho e da capacidade dos governos que têm essa ideia em mente. Agora com Donald Trump e Elon Musk, o tema aparece outra vez. Até há um mês atrás, qualquer projecto científico que se apresentasse aqui na Europa para exploração de Marte, era recebido com interesse, mas sempre com o comentário de "ah, mas isso acontecer, ainda falta muito tempo. Agora ainda estamos focados na Lua".

Esta mudança na política americana traz Marte para a ordem do dia e é possível que haja grandes avanços. É um bocadinho difícil de se fazer essa futurologia, mas talvez no final da década 30, talvez. No final  desta década que estamos a viver, vejo muito difícil. 

RFI: Termino com uma pequena questão se se nós considerávamos que a ida a lua era um pequeno passo para o homem, um grande passo para a humanidade. Considera que a ida à Marte constituiria um passo gigantesco. O que é que este passo representaria em termos concretos para a ciência? 

Vasco Guerra: Sim, acho que é um passo gigantesco, na perspectiva de ser preciso, no fundo, estabelecer... Podemos usar a expressão "colónia", usada por Elon Musk. Marte é demasiado longe para que as coisas possam funcionar dependendo apenas da Terra.

Na Lua, apesar de tudo, não vou dizer que é fácil, claro que não é fácil, mas no caso de uma emergência à partida, há tempo para uma resposta relativamente curta de ajuda ou de auxílio a uma população ou a uma colónia, ou até simplesmente a missões que estejam a decorrer na Lua.

Em Marte, isso é completamente diferente, não é? São pelo 3 meses para lá chegar, por isso seria o tal passo de gigante que estava a perguntar, que envolveria pensar em toda uma nova forma de imaginar a humanidade, digamos assim, com todos os desafios associados, inclusivamente coisas que não nos lembramos logo quando pensamos na exploração espacial. Falamos, por exemplo, do ponto de vista legal, quais é que seriam as leis que se aplicariam? Portanto, pensar não só o desafio científico, como o sociológico são duas componentes interessantes nessa aventura. 

"O deficiente saneamento básico" contribuiu para o surto de cólera em Angola
21 January 2025
"O deficiente saneamento básico" contribuiu para o surto de cólera em Angola

Quatro províncias angolanas, Luanda, Bengo, Icolo e Bengo, e Malanje estão afectadas pelo surto de cólera, declarado no passado dia 7 de Janeiro, em Luanda, no município do Cacuaco. De acordo com o Ministério angolano da Saúde, mais de 600 casos foram registados, com 29 óbitos. O médico especialista em saúde pública, Jeremias Agostinho, admite que a debilidade do saneamento básico de Luanda terá contribuído para o surto de cólera. 

Em menos de duas semanas, o surto de cólera - que começou no bairro do paraíso - já se alastrou por quatro províncias angolanas. Foram registados mais de 600 infectados e 29 óbitos. Como se explica este cenário?

Na verdade, este surto não nos apanhou de surpresa. Em finais de 2023, início de 2024, o Ministério angolano da Saúde e a Organização Mundial da Saúde - OMS- notaram um aumento do número de casos de doenças diarreicas, a nível da nossa população, e em função do deficiente saneamento básico que termos, associado à agudização da pobreza, do acesso à economia e da alimentação - 90% da economia é informal - o risco de cólera era muito grande.

Sem esquecer que países vizinhos, como a Zâmbia, Zimbabwe e Moçambique - cujo trânsito aéreo é muito frequente - já estavam a registar casos [ de cólera]. Em 2024, a Organização Mundial da Saúde e o Ministério da Saúde definiram um plano de contingência para casos de cólera, com a formação de profissionais de saúde, a partir de Abril e, infelizmente, em 2025 confirmou-se e começou o surto de cólera em Angola.

Se já havia um plano de contingência, profissionais preparados, este alastramento não poderia ter sido evitado?

Os últimos dados governamentais apontam que em cada dez angolanos, cinco não têm acesso a água potável. É um número bastante elevado e depois também temos que referir que em cada dez angolanos, cinco fazem defecação ao ar livre, uma vez que o acesso ao sistema de saneamento, principalmente a nível da capital, é muito restrito.

As pessoas não têm acesso aos sistemas de drenagem comuns para as águas residuais ou as águas dos quartos de banho. Neste período, na capital e nas províncias, estamos a ter chuvas muito intensas e tudo isso levou a que o surto se instalasse.

Por exemplo, no bairro do Paraíso, município de Cacuaco, onde tivemos os primeiros casos, essa zona que possui outros factores agravantes. As habitações são muito precárias e habitualmente por metro quadrado, residem cerca de 4 a 7 pessoas.

São residências precárias, onde não há latrinas. Já falou aqui da época de chuvas, todos estes factores prepararam o terreno para este surto?

Exactamente, com as chuvas que se vão abatendo pela cidade, o sistema de drenagem não está a funcionar e há muitas inundações. Então, quando juntamos aglomerados populacionais, enchentes, defecação ao ar livre, falta de acesso à água potável, cria-se um cenário propício para o alastramento da doença.

Há ainda a questão do tratamento do lixo que é feito na capital…

O tratamento do lixo aqui na capital é um problema crónico. Há bastante atraso na recolha do lixo e o lixo que é depositado no aterro sanitário, próximo dessa zona afectada pela cólera, não é um aterro sanitário, porque não se faz tratamento de lixo. A única coisa que se faz no aterro é a incineração de alguma parte do lixo. Depois a outra é invadida pela população que aproveita esse lixo para se alimentar.

Por norma, por causa da falta de contentores para depositar o lixo, depositam o lixo nas valas de drenagem. A água das chuvas enche as valas e acaba por arrastar todo o lixo para as praias. Isto faz com que o risco de contaminação pela doença aumente ainda mais. Todo esse conjunto de situações faz com que a doença cresça rapidamente.

Acabando por ter um impacto, também, nos alimentos que são consumidos?

Na urbanização Nova Vida, que é mais ou menos uma urbanização para a classe média, o sistema de fossas está sempre a abarrotar e a verter água repleta de fezes. Essa água vai desaguar no rio Camba. Na zona ribeirinha desse rio é praticada a agricultura familiar, cuja rega é feita com a água composta por restos de fezes e lixo dos moradores da urbanização. Nas zonas afetadas pela cólera, é justamente a mesma coisa que acontece.

A Empresa Pública de Águas de Luanda- EPAL- já veio afirmar que está com dificuldade em distribuir água para a população….

Dizer que está com dificuldade de distribuir água seria minimizar o problema. Na verdade, nunca houve uma adequada distribuição de água para a população. A água que chega até aos cidadãos é uma água que, infelizmente, tem cloro, tem sabor e não cumpre os requisitos da chamada água potável. Agora que está a chover bastante e as populações precisam de água, por causa do surto de cólera, não há distribuição adequada, nem produtos para fazer a desinfecção da água.

Quais são os sintomas de cólera? E quando é que os pacientes se devem dirigir a uma unidade hospitalar?

São quadros de diarreia aguda bastante abundante, cãimbras, vómitos, fraqueza, muita sede e fome. São os sinais e sintomas que estão a ser apresentados pelos utentes.

É neste quadro que os pacientes se devem dirigir ao hospital?

Nós temos estado a aconselhar a todas as pessoas que possuem quadros de diarreia e vómito, abundante ou não, a se dirigirem às unidades de saúde. No caso da cólera, 80% das pessoas que serão infectadas não terão sinais e sintomas, mas transmitem a doença, uma vez que a bactéria se encontra nas fezes.

O Governo está a fazer um bom serviço. Na principal zona afectada, montou uma área para internamento dos doentes, uma área para distribuição de água e outra de distribuição de meios para desinfectar a água. Esse processo tem que ser só mais abrangente para ver se, pelo menos, antes de Abril conseguimos acabar com o surto de cólera.

Que recomendações deixa às autoridades e à população?

As autoridades têm estado a trabalhar bem no quesito da informação, nomeadamente sobre o estado do surto e as medidas preventivas para a população. Esse trabalho tem de continuar. Deu-se início agora à distribuição dos soros de água, também é um trabalho que deve continuar a ser feito.

Relativamente à população, o que recomendamos, nesta altura, são cuidados com a água que ingere, que usa para higiene pessoal e para a lavagem dos alimentos. A água deve ser tratada ou fervida. Também se deve ter cuidado com o lixo. Deve ser colocado em sacos para que as moscas, ou as baratas não tenham acesso. Estes animais também são transmissores da doença. E pelo menos durante esse período, devem ser construídas latrinas para não haver defecação ao ar livre.

Também se devem evitar as idas à praia. A chuva leva o lixo e as águas residuais para as principais praias da capital.

E os pequenos gestos como a lavagem das mãos e a lavagem dos alimentos…

Exactamente, com água tratada, principalmente os alimentos que não vão passar pelo fogo. Deve-se consumir alimentos, de preferência, que se tem garantia que foram bem preparados. Fora de casa, aconselho as pessoas a não consumirem alimentos que não passem pelo fogo, como por exemplo, a salada, entre outros, por causa desse risco de transmissão.

A lavagem das mãos, quando não é possível - nem sempre temos água - vamos passar álcool- gel. E isto fica sob responsabilidade das autoridadesque devem distribuírem esses meios para a população mais carente.

Alterações climáticas foram “factor de agravamento” nos incêndios de Los Angeles
13 January 2025
Alterações climáticas foram “factor de agravamento” nos incêndios de Los Angeles

Os incêndios de Los Angeles foram descritos como “os mais devastadores” da história da Califórnia pelo Presidente norte-americano Joe Biden. Até este domingo, as autoridades registaram, pelo menos, 24 vítimas mortais. As alterações climáticas foram “um factor de agravamento” dos incêndios, mas vêm aí "dias difíceis" na luta contra o aquecimento global, avisa Francisco Ferreira, presidente da ONG ambiental ZERO.

RFI: Por que razão estes incêndios na Califórnia estão a ser tao devastadores?

Francisco Ferreira, Presidente da “ZERO”: A situação da Califórnia e de Los Angeles reflecte, em primeiro lugar, uma extensa situação de seca nos últimos tempos, mas com uma enorme presença de vegetação por aquilo que aconteceu há um ano, que foi o inverno extremamente húmido. Ou seja, foram criadas as condições para ter uma enorme quantidade de biomassa, de mato, de floresta muito mais pronta para arder na sequência do inverno passado, que nas últimas semanas, nos últimos meses não teve a humidade suficiente para evitar uma propagação rápida de incêndios e que acaba por acontecer, na última semana, pela ocorrência de ignições. Para eu ter um incêndio, neste caso, a origem não é natural, há aqui claramente um decurso de uma qualquer actividade humana que ainda é preciso esclarecer e averiguar, em que o terreno estava realmente todo preparado para que, com ventos extremamente intensos e secos vindos do interior, ventos de leste a encaminharem a nuvem de fumo para o Oceano Pacífico, levassem a uma rapidíssima propagação.”

O que são os ventos de Santa Ana?

“Em Los Angeles, nós falamos de uma bacia porque se trata de uma zona que é relativamente baixa, mas toda ela rodeada de montanhas. Em determinadas ocasiões, eu tenho um posicionamento de um anticiclone e de uma baixa pressão que nos levam a ventos muito intensos de uma região nos arredores de Los Angeles, que é precisamente a zona de Santa Ana. E, portanto, quando eu tenho esses ventos, eles são bastante intensos porque eles atravessam as montanhas mais próximas de Los Angeles e levam a esta propagação.”

O jornal Washington Post compara este fenómeno meteorológico a um “secador gigante”. Porque esta imagem?

“Porque realmente o que se passa é que eu tenho uma região interior onde praticamente não tenho qualquer humidade do ar presente nessa área e que depois me é arrastada para o Oceano Pacífico. Portanto, eu tenho uma massa de ar a grande velocidade, mas sem humidade, a atravessar a zona de Los Angeles. Ao contrário daquilo que seria habitual e desejável, que era eu ter um ar húmido ou precipitação que contrariasse a ocorrência destes incêndios, o que eu tenho é um ar extremamente seco a grande velocidade que foi originado numa zona interior. Pior do ponto de vista meteorológico eu não conseguiria ter em termos de alimento para os incêndios que estiveram - e estão - a ter lugar.”

Qual é a ligação entre as alterações climáticas e estes incêndios que foram descritos como “os mais devastadores da história da Califórnia” pelo Presidente americano Joe Biden?

“Em primeiro lugar, nós devemos ter aqui alguma precaução porque se pode pensar que face àquilo que é um clima cada vez mais imprevisível e com comportamentos completamente diferentes do que seria o padrão normal - nós tivemos cheias significativas na Califórnia, tivemos um inverno muito húmido há um ano e agora estamos numa situação de enorme seca - estes extremos são realmente resultado das alterações climáticas, mas pode-nos dar a sensação de que é inevitável e eu não poderia fazer nada em relação a estes mega incêndios que estão a ter lugar.

As alterações climáticas são, sem dúvida, um factor de agravamento daquilo que são problemas também estruturais do ponto de vista do ordenamento do território daquela zona. Ou seja, eu começo a ter aqui fogos que são já quase urbanos, que vão aumentando rapidamente porque eu tenho projeções a grande distância daquilo que é o meu incêndio principal. Esta zona de Los Angeles tem, sem dúvida, uma zona de maior presença de vegetação, mas a propagação toda que se dá com maiores prejuízos é já numa zona que nós chamamos suburbana ou periurbana e urbana, portanto, nós já não temos uma distinção entre o rural e urbano em zonas como Los Angeles, na periferia da cidade.

É uma cidade que eu conheço relativamente bem. Ainda há poucos meses lá estive em trabalho relacionado com a área dos incêndios e da qualidade do ar e das emissões atmosféricas.

Temos aqui um conjunto de factores, onde as alterações climáticas, onde o agravar destes extremos de contrastes entre invernos mais húmidos que o normal, com invernos ou meses mais secos que o normal, e depois condições extremas também motivadas pelas alterações climáticas, como sejam grandes velocidades de vento, como as que ocorreram sistematicamente nos últimos dias, com a estrutura de ocupação do espaço daquela zona, levam à tempestade perfeita entre aspas, levam realmente a este cenário absolutamente dramático e desolador que nós encontramos em Los Angeles.

É aquilo, no fundo, que nós acabámos por ter também em Portugal em 2017. Foi o pior ano em termos de área ardida das últimas décadas e o que acontece tem muito a ver com estas circunstâncias. Nós tínhamos tido uma primavera bastante chuvosa, muita massa para arder no solo, nomeadamente na floresta. Depois, em cada um dos fins-de-semana, um em Junho e outro em Outubro, à custa de eu ter uma grande velocidade do vento, de eu ter um ar também muito seco e quente a percorrer as zonas que foram afectadas, nomeadamente em Outubro, foi realmente a mesma receita daquilo que se passou ou se está a passar ainda em Los Angeles.”

Qual seria então a forma para travar essa “receita” ou essa “tempestade perfeita”? Tanto mais que os serviços meteorológicos americanos avisam que haverá “um comportamento extremo dos incêndios” que culminarão com ventos a 110 quilómetros por hora já a partir desta terça-feira de manhã?

“Nesta altura, a única possibilidade de intervenção é usar os modelos que temos de previsão meteorológica e de propagação de incêndios para tratar da prevenção. É a única forma que é possível num incêndio que é um incêndio urbano, não é um incêndio florestal de grandes dimensões como nós temos tido nos Estados Unidos, no Canadá ou na Europa. Trata-se, neste momento, de um incêndio com características muito claras à escala urbana.

Agora, no médio e longo prazo, obviamente, nós queremos minimizar o impacto das alterações climáticas. É absolutamente crucial que percebamos que esta é uma das questões chave em termos de adaptação climática e que nós temos que realmente reduzir as emissões para que não tenhamos um clima com extremos desta natureza cada vez mais frequentes.”

Isto acontece numa altura em que Donald Trump vai chegar à Casa Branca, ele que é abertamente negacionista relativamente às alterações climáticas. A situação vai piorar?

“Por isso mesmo é que nós temos aqui um problema grande à escala dos próprios Estados Unidos e à escala global. Nós estamos numa linha de aumento da temperatura de 3,1 graus em relação à era pré-industrial. 2024 foi o ano recorde desde que há registos com uma ultrapassagem do limite de 1,6 graus. Ou seja, tivemos 1,6 graus acima da média do período pré-industrial, basicamente quando olhamos para a média entre 1850 e 1900, em 2024 tivemos 1,6 graus acima dessa média de valores.

Os Estados Unidos, em particular algumas zonas são, sem dúvida, exemplos daquilo que já são as consequências das alterações climáticas, quer na Califórnia em termos de incêndios, quer a intensidade e a destruição e a frequência de furacões na costa leste, nomeadamente na Flórida e ao longo de todo o Golfo do México.

Eu acho que nós, infelizmente, estamos num período em que, politicamente, as alterações climáticas vão ter dias difíceis do ponto de vista da concertação à escala mundial e dentro dos Estados Unidos em particular. Isso vai-nos sair, mais tarde, muito mais caro, por não estarmos a tomar as medidas de prevenção em termos de adaptação e, acima de tudo, em termos de redução de emissões, porque o clima é muito resiliente. O clima demora muito tempo a mudar, mesmo que nós agora tivéssemos políticas fortíssimas para reduzir o aquecimento global e procurar reduzir estas consequências, iríamos ainda assistir a uma escalada dos efeitos para depois começarmos a ver essa diminuição. Mas quanto mais tempo perdermos, pior será.”

Ultrapassámos o limite de aquecimento de 1,5 graus, como fixado pelo Acordo de Paris. O Observatório Europeu Copernicus também indicou que 2024 foi o ano mais quente de sempre desde que há registos. Até que ponto estamos num período crucial para a redução de emissão de gases responsáveis pelo aquecimento global para evitarmos esse ponto sem retorno na crise climática? Ou já chegámos a esse ponto sem volta a dar?

“Nós ainda não chegámos àquilo que o próprio Acordo de Paris aponta. Ou seja, a ultrapassagem de um grau e meio foi em um ano. Vamos ver o que é que acontece nos próximos anos, se esta ultrapassagem é permanente ou não. Mas realmente o que a ciência nos diz é que acima de um grau e meio, eu tenho um efeito de cascata e de consequências muito mais dramático do que se conseguisse que a temperatura ficasse abaixo deste aumento.

Eu diria que as notícias não são realmente boas e, infelizmente, este é um problema global. Significa que nós precisamos de respostas globais e a Europa tem aqui, sem dúvida, uma quota de responsabilidade grande do ponto de vista das suas emissões acima de tudo históricas. Mas é necessário continuar o diálogo, a concertação e a acção, mesmo que limitada, no quadro das Nações Unidas e da conferência que vamos ter este ano no Brasil, da Convenção das Alterações Climáticas. Realmente o clima está a avançar mais em termos daquilo que é a sua mudança do que os próprios cientistas previram que pudesse acontecer.”

Moçambique: Reposição das infraestruturas de abastecimento de água em situação de emergência
17 December 2024
Moçambique: Reposição das infraestruturas de abastecimento de água em situação de emergência

Moçambique é um dos países mais gravemente afectado pelas alterações climáticas no mundo, o primeiro em África. Neste momento, o país faz contas às vítimas e aos danos provocados pela passagem do ciclone tropical intenso Chido,que entrou no domingo passado, pelo distrito de Mecúfi “com ventos que rondaram os 260 quilómetros por hora” e chuvas fortes. Neste magazine ciência olhamos para a resposta das autoridades na reposição do abastecimento de água e saneamento em situação de emergência.

Moçambique é um dos países mais gravemente afectado pelas alterações climáticas no mundo, o primeiro em África. Ciclicamente, o país enfrenta cheias e ciclones tropicais durante a época chuvosa, que decorre entre os meses de Outubro e Abril.

Neste momento, Moçambique faz as contas às vítimas e aos danos provocados pela passagem do ciclone tropical intenso Chido, de escala 3 (1 a 5), que se formou a 05 de Dezembro no sudoeste do oceano Indício, entrou no domingo passado,  15 de Dezembro, pelo distrito de Mecúfi, na província de Cabo Delgado, no norte do país, “com ventos que rondaram os 260 quilómetros por hora” e chuvas fortes.

Na semana passada, na antevisão do Chido, as autoridades moçambicanas tinham admitido que cerca de 2,5 milhões de pessoas poderiam ser afectadas pelo ciclone nas províncias de Nampula, Cabo Delgado e Niassa, no norte, e na Zambézia e Tete, no centro.

Em Moçambique, o período chuvoso de 2018/2019 foi dos mais severos de que há memória: oficialmente 714 pessoas morreram, incluindo 648 vítimas dos ciclones Idai e Kenneth, dois dos maiores de sempre a atingir o país.

Já na primeira metade de 2023, as chuvas intensas e a passagem do ciclone Freddy provocaram 306 mortos, afectaram mais de 1,3 milhões de pessoas, destruíram 236 mil casas e 3.200 salas de aula. Os dados são das autoridades moçambicanas.

Precisamente sobre a resposta dada pelas autoridades moçambicanas, em situação de emergência, no abastecimento de água e saneamento, Moçambique levou a cabo uma sessão de esclarecimento, na COP 29, que decorreu de 11 a 22 de Novembro em Baku, no Azerbaijão. 

Alcino Nhacume, chefe do departamento de Estudos de Projectos da Direcção Nacional de Água e Saneamento do Ministério das Obras Públicas, de Habitação e Recursos Hídricos de Moçambique, explicou a resposta que foi dada pelo país, a nível de abastecimento de água e saneamento, após a passagem do ciclone Freddy. 

Foi activado o contingente de resposta de emergência inserido nos projectos financiados pelo Banco Mundial. Era necessário responder rapidamente às necessidades, não no sentido de reabilitação, mas de reposição daquilo que foi danificado pelo ciclone.

Reposição porque havia a necessidade de colocar novamente à disposição das populações afectadas infraestruturas de abastecimento de água e saneamento, por forma a que não se criassem outros efeitos secundários, como doenças de origem hídricas e outros problemas de saúde pública.

Projecto de ADN ambiental marinho assinala presença de 4.500 espécies em sítios protegidos
10 December 2024
Projecto de ADN ambiental marinho assinala presença de 4.500 espécies em sítios protegidos

O projecto de ADN ambiental marinho levado a cabo pela UNESCO em 21 sítios protegidos um pouco por todo o Mundo tira uma fotografia dos nossos mares que pode ser muito útil para perceber como os oceanos e a biodiversidade evoluem com os efeitos das alterações climáticas.

 

Com 500 amostras de um litro e meio de água do mar de diferentes partes do globo, os investigadores do projecto "Expedições de ADN ambiental" da UNESCO, foram identificadas cerca de 4.500 espécies desde peixes, a baleias, assim como tartarugas e tubarões. Esta técnica não envolve apanhar os animais e retirar amostras, apenas analisar os resíduos biológicos contidos nas amostras, um técnica ética, simples e com menos custos dos que as análises de ADN tradicionais como explicou Fanny Douvere, coordenadora do programa marinho do Centro de Património da UNESCO.

"O que é realmente interessante nesta técnica é que não estamos a retirar nada da água, excepto uma amostra de água, cerca de um litro meio. Portanto, não estamos a tocar em nenhuma espécie. É por isso que se trata de uma abordagem ética, porque estamos a deixar o ambiente em paz e estamos apenas a recolher a água e a filtrá-la para extrair o ADN. E para perceber o que lá está, que tipo de biodiversidade existe naquele lugar", disse a representante da UNESCO.

Esta técnica inovadora identifica então as diferentes espécies marinhas comparando-as aos registos de ADN já conhecidos, um processo que se assemelha a uma investigação policial como exemplificou Ward Appeltans, que gere o OBIS, o Sistema de Informação da Biodiversidade Marinha.

"Penso que podemos ver isto como um género de projecto de polícia de investigação global dos mares, já que apenas com base no ADN, podemos saber se a espécie esteve nestes locais que estudámos ou não. Sabemos que o ADN, em média, sobrevive entre 24 a 48 horas na água antes de se fragmentar e ser destruído. Portanto, se conseguirmos apanhar uma sequência de ADN, sabemos que a espécie passou por aqui muito recentemente", indicou Appeltans.

"É realmente uma imagem instantânea. Portanto, sabemos os seres vivos que estavam lá naquele momento específico no tempo. E é por isso que também é muito importante repeti-lo ao longo do tempo. Porque se formos duas vezes por ano ao mesmo local, podemos começar a ver tendências", acrescentou Fanny Douvere. 

Para conseguir as amostras em 21 locais marinhos protegidos pela UNESCO, foram recrutados 250 mini-cientistas. A UNESCO trabalhou de perto com escolas desde o Banglhadesh, passando pela Austrália ou pelos Estados Unidos, incluindo também o Brasil de forma a incluir crianças a partir dos seis anos na recolha de amostras no mar, despertando o interesse sobre a biodiversidade marinha, mas também incluindo-as na luta contra as alterações climáticas.

"Uma das grandes vantagens desta iniciativa foi, de facto, trabalhar com crianças em idade escolar e com os professores. Por isso, contactámos as equipas de gestão locais responsáveis por estas áreas marinhas protegidas na Lista do Património Mundial da Unesco, que estabeleceram contacto com os seus professores dessas regiões. Assim, em muitos destes locais diferentes, os professores começaram por explicar às crianças porque é que íamos fazer aquilo. Também compreenderam que era um projecto não só naquele local, mas que acontecia em simultaneo em outros locais em todo o mundo. E o mais importante de tudo isto é que, sim, há uma grande ansiedade climática entre os jovens e nós estamos aqui para lhes transmitir uma mensagem de esperança. E não se trata apenas de uma história. Não se trata apenas de explicar coisas, mas de sair, ir para o terreno, ir para a água, fazer algo significativo com uma técnica que tem um método científico por detrás, mas é suficientemente simples para ser feita por uma criança de seis anos. No Brasil, por exemplo, quando fomos a Fernando de Noronha, a Área do Património Mundial e tínhamos crianças de seis anos e adoraram. Adoraram sair. Adoraram ser supervisionados pelos cientistas. Perceberam que não podia haver contaminação nas amostras, usaram luvas e puseram os óculos e compreenderam o que estávamos a fazer. Falámos com vários dos miúdos depois e eles sentiram-se muito ligados ao projecto, que o que estavam a fazer era algo significativo e não apenas conversa. Por isso, ainda estamos nesse processo, agora que temos estes resultados científicos e estamos a desenvolver folhas de informação que sejam adaptadas às crianças e que os professores possam utilizar para discutir o assunto na sala de aula"; explicou Fanny Douvere.

Mas os mares ainda nos reservam muitas suprpresas. Estas amostras só permitiram identificar entre 10 a 20% das criaturas presentes nestes ecossitemas e algumas sequências de ADN encontradas ainda não foram identificadas, mostrando que ainda temos muito a aprender com os oceanos.

"Há provavelmente um milhão de espécies nos oceanos, e talvez um quarto seja descrito actualmente pela ciência. Por isso, ainda há muitas incógnitas e nem todas as especies já têm o seu ADN numa biblioteca de referência. É como uma lista telefónica. Nós recolhemos os números, mas com os números, temos de tentar saber a quem pertence esse número. E quanto mais a nossa lista telefónica for actualizada e melhorada, mais seremos capazes de referenciar esse número, ou seja, a sequência de ADN, a uma espécie. E isto levará alguns anos a ser melhorado. Mas tenho a certeza de que, no futuro, isto vai ser rapidamente melhorado. Portanto, dentro de alguns anos, espero que consigamos identificar todas as espécies", exemplificou Ward Appeltans.

A ideia agora é expandir este programa a mais sítios protegidos da UNESCO, nomeadamente onde as técnicas cinentíficas possma ser melhoradas e mais cientistas treinados para conseguir levar a cabo estas análises. Nesta primeira fase, todas as amostras foram enviadas para um laboratório central na Bélgica, mas no futuro, a UNESCO quer que as análises sejam realizadas onde as colheitas são levadas a cabo, melhorando as capacidade de todos os países de cuidarem da sua biodiversidade.

"Qualquer material genético que seja enviado para o estrangeiro está sujeito a um protocolo internacional. Assim, há uma série de países, por exemplo, que não aderiram a esta iniciativa porque não era possível enviar o seu material genético para um laboratório central. Nós trabalhámos com o laboratório central porque queríamos ter um controlo de qualidade significativo. Queríamos também aprender sobre o assunto. Foi uma fase de teste piloto, mas é extremamente importante desenvolver essa capacidade, especialmente em países que não têm ainda acesso a esta tecnologia. Também existem técnicas que lhes permitem avançar para uma análise de dados potencialmente muito mais rápida do que a que conseguimos fazer actualmente, talvez mesmo no local. Por isso, como organização das Nações Unidas, é extremamente importante que formemos cientistas locais em todo o mundo nos laboratórios da eADN que possam aplicar o mesmo tipo de padrões de qualidade que conseguimos desenvolver nesta iniciativa. Assim, na próxima fase do projecto recolheremos amostras, caso o projecto prossiga, a ideia seria recolher material marinho dos locais Património Mundial em África e analisá-los lá", concluiu Fanny Douvere.

Os resultados desta experiência estão disponíveis num site acessível a todos, fazendo com que seja possível através da ciência aberta partilhar o conhecimento adquirido nestes últimos três anos um pouco por todo o Mundo.

Produtores de petróleo bloqueiam tratado contra poluição de plásticos
02 December 2024
Produtores de petróleo bloqueiam tratado contra poluição de plásticos

Os mais de 170 países presentes na quinta reunião do Comité Intergovernamental de Negociação das Nações Unidas, em Busan, na Coreia do Sul, não conseguiram chegar a acordo para implementar um tratado global de luta contra a poluição de plásticos. O biólogo cabo-verdiano, Tommy Melo, explica o que falhou nestas negociações, sublinhado que mais uma vez o lobbying do petróleo se impõe às questões ambientais.

Após uma semana de negociações em Busan, na Coreia do Sul, os mais de 170 países presentes não foram capazes de alcançar qualquer acordo sobre um tratado global contra a poluição plástica. As divergências entre os países que integram a “Coligação de Altas Ambições” e os países produtores de petróleo- Rússia, Arabia Saudita e Irão quanto ao âmbito do tratado -conduziram à suspensão dos trabalhos que deverão retomar no primeiro semestre do próximo ano.

Em entrevista à RFI, o biólogo cabo-verdiano, Tommy Melo, explica o que falhou nestas negociações, sublinhado que mais uma vez o lobbying do petróleo se impõe às questões ambientais.

“Falhou o que falha sempre. Tivemos mais de 100 países juntos, num esforço de tentar conseguir chegar a um acordo e um mero punhado de países produtores de petróleo, mais uma vez fizeram o seu lobby funcionar”, denunciou.

A delegada das ilhas Fiji, Sivendra Michael- à qual se juntou representantes do México, Ruanda e Panamá- acusou “uma pequena minoria” de Estados está a “bloquear o processo”, defendendo que se esses países não se alinharem “para obter um tratado ambicioso (...) então que se vão embora”.

Tommy de Melo alerta para o facto deste impasse ter impacto nos países que não produzem plástico, como é o caso de Cabo Verde, mas que recebem “anualmente centenas de toneladas de plástico através das correntes marítimas”.

“[Cabo Verde] sofre muito pelo pacto de não haver uma regulação muito mais forte na produção de produtos de plástico”, explica.

Na abertura da cimeira foram mostradas imagens de uma ilha de plástico que se formou, nas últimas décadas, no oceano pacífico, um território marinho descontínuo que já tem a dimensão de três vezes o território da França.

A ministra francesa da Energia, Olga Givernet, que representou o país nas negociações, afirmou que cada ser humano ingere semanalmente 5 gramas de plástico, ou seja, o equivalente a um cartão de crédito.

O biólogo cabo-verdiano reconhece que são imagens “assustadoras, acrescentando que a presença de micro-plásticos é uma realidade e “todos os seres humanos já começam a sentir [os efeitos] na própria saúde”.

De acordo com a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico-OCDE- se nadafor feito, a poluição plástica poderá triplicar em todo o mundo até 2060.