Romain de l'Ecotais e Damien Miloch realizaram há seis anos o filme "O Canto das Roças" e ficaram marcados pelas paisagens naturais, mas sobretudo pela resiliência dos são-tomenses e as suas histórias ligadas a um pesado passado colonial que esta população tenta ultrapassar. Estes dois realizadores franceses querem agora voltar ao arquipélago para mostrar o seu filme.
Em 2013, Romain de l'Ecotais e Damien Miloch, uma equipa de documentaristas franceses, chegou pela primeira vez a São Tomé e Príncipe. O arquipélago nunca mais lhes saiu do espírito e em 2017 voltaram para filmar o documentário o “Canto das Roças” que fala sobre o passado colonial destas ilhas, mas também o que aconteceu no pós-independência a estas estruturas que representam, por um lado, a brutalidade de um sistema de escravatura e, por outro, a riqueza da terra.
Em entrevista à RFI, Romain de l'Ecotais começa por nos explicar de como surgiu este encantamento por São Tomé e Príncipe.
"Fomos a São Tomé em 2013 para um filme que nos tinha sido encomendado sobre a produção de pimenta, que nessa altura estava em processo de revitalização. Ficámos logo assim que chegámos impressionados com as roças, como realizadores, com o potencial cinematográfico, tanto visualmente como em termos de história. E acabámos essa primeira viagem com a firme intenção de fazer um filme sobre as roças. Ficámos ainda algum tempo a procurar locais para filmar, encontrar as personagens que aparecem no filme final e concordámos na ideia de contar a história das roças através da vida das pessoas de hoje que ainda vivem nessas estruturas e tentam conservá-las. Escrevemos o filme e, cinco anos depois, pudemos voltar então a São Tomé para o realizar", disse Romain de l'Ecotais.
Os dois documentaristas foram a várias roças, muitas delas agora transformadas em comunidades onde vivem dezenas de famílias e o documentário é guiado por várias personagens desde líderes comunitários, a músicos, a agricultores que tentam organizar-se para melhorar as condições de vida da população. Damien Miloch detalhou o que encontrou no terreno.
"Cada roça é diferente, cada roça tem a sua própria comunidade. Cada Roça tinha a sua própria actividade, o seu próprio produto. Todas elas estavam ligadas entre si para fazer de São Tomé o maior produtor de cacau do mundo, no início do século XX. Pode até ser um termo um pouco duro, mas muitas delas assemelhavam-se a campo de trabalho forçado e outras eram lugares fantásticos de produção. Em todo o caso, há um enorme potencial cinematográfico e depois há também o potencial em termos de história de vida, história da colonização, da escravatura e foram todos esses destinos que quisemos destacar neste filme. Em todo o caso, as roças abrangem muitos temas históricos e contemporâneos extremamente interessantes. Foi isso que nos interessou enquanto realizadores: o conteúdo e a forma. Tínhamos o cenário quando vimos as roças, e quando se mergulha neste país, surgem histórias de vida que nos falam a nós e a toda a gente", indicou.
Em muitas das entrevistas com vários são-tomenses o sistema das roças é lembrado com algum saudosismo. No entanto, os realizadores dizem que se trata de uma nostalgia face a uma realidade actual onde os cuidados de saúde são precárias, onde há falta de emprego e onde a pobreza se tornou a regra.
"Acho que a primeira coisa que nos impressionou foi o facto de não haver um verdadeiro ódio pelo passado, pelos portugueses que ainda hoje em dia lá podem ir. E, de facto, o que obviamente nos chocou no início foi uma certa nostalgia e a total liberdade de expressão para dizer que, naquele tempo, havia coisas que funcionavam e que, de facto, gostaríamos que fosse assim hoje. Portanto, é verdade que tivemos de nos perguntar, intelectualmente falando, até que ponto podíamos transmitir essa mensagem, mas, na realidade, era o que as pessoas diziam e não quer dizer que quisessem trocar a sua liberdade para voltar a um sistema como o de antigamente, mas conseguiam perceber o que não tinham desde a independência", considerou Romain.
"O problema que ao qual muitas pessoas se vêm confrontadas é que se dizem: antes não éramos livres, mas tínhamos trabalho, tínhamos uma identidade, tínhamos sistemas de produção, tínhamos um hospital a funcionar e as crianças iam à escola. Não éramos livres, mas as coisas funcionavam. Agora somos livres mas somos pobres. Este tipo de pensamento deixa a população de São Tomé e Príncipe nostálgica. Mas isso não quer dizer que os são-tomenses queiram trocar a liberdade pelas condições que tinham antes, trata-se da tal nostalgia, de uma certa saudade, se quisermos chamar assim, em relação a esse período", acrescentou Damien.
O filme mostra como as populações tentam encontrar soluções não só para melhorar as suas vidas, por exemplo, através do cultivo da pimenta ou do cacau de alta qualidade, bens valorizados para a exportação, mas também para conviverem com a natureza à sua volta. Uma perpectiva que valoriza as capacidades de adaptação dos são-tomenses face a um Mundo cada vez mais globalizado.
"O ângulo que tentámos escolher para o filme é não dar a mesma abordagem pessimista de África que podemos ver noutros documentários. Por isso, concentrámo-nos na história, mas também nos pontos positivos actuais. E um dos pontos positivos é a literacia e as crianças que vão muito à escola e que, por isso, na sua grande maioria são alfabetizadas. Quisemos mostrar isso e, de facto, entre os que sabem mais e viajam mais e aprendem mais e entre os que sabem menos há realmente uma entreajuda que se vê no filme, nomeadamente na produção de pimenta", declarou Damien.
"O que também é destacado nas histórias que escolhemos contar é o desejo de recuperar a terra através da agricultura, porque é isso que mostramos. Claro que há também a educação, tanto na escola ou através de iniciativas como a capoeira nas roças. Mas é claro que isso não se aplica a toda a ilha e sabemos que há uma alta taxa de natalidade. Tivemos a sorte de ter viajado para São Tomé pela primeira vez em 2013 e, nessa altura, quase ninguém tinha telemóvel com redes sociais. Hoje estamos em 2024 e a última vez que lá estivemos foi há cinco anos. Sabemos que agora toda a gente tem um telemóvel, por isso, também veem o que está a acontecer e o que se passa noutros locais. Dizer que o futuro da ilha passa necessariamente por recuperar os seus meios de produção e a sua riqueza natural, que é a terra, é algo óbvio para mim, mas acho que certamente muitos jovens vão querer sair de lá e experimentar a vida no estrangeiro. Sei que há muitos, muitos jovens que vão para Portugal e espero que neste contexto, de facto, tenham uma perspetiva real e que não vão à procura de uma miragem, como muita gente que faz este tipo de viagem", completou Romain.
O projecto agora para 2025 é mostrar o filme em São Tomé e Príncipe e Damien pensa que o quadro ideal seria projectá-lo nas roças onde ele foi filmado, para devolver às populações estes testemunhos.
"Algo que pensamos muito enquanto realizadores de documentários é como é que vamos devolver às nossas personagens o que nos deram durante as filmagens. Algo que ocupou o seu tempo, o seu conhecimento. Eles dão-nos a sua opinião, um pouco da sua intimidade e até momentos em que deveriam estar a trabalhar e acabaram por nos dedicar esse tempo. Uma das formas que temos de lhes pagar toda essa atenção é mostrar o filme, fazer um filme à altura daquilo que eles partilharam connosco. Conseguimos a muito custo que o filme passasse num canal de televisão em São Tomé. Mas o objetivo é fazer uma projeção pública nas roças. Isso seria óptimo, talvez através da Aliança Francesa. Seria uma ocasião bastante folclórica e sobretudo poderia ser extremamente animado ver as pessoas que filmámos, as suas famílias e outras pessoas a verem o documentário. É algo que gostaríamos muito de fazer e que estamos a tentar organizar há muito tempo. Mas é verdade que se trata de um território muito remoto e vamos ter de nos organizar para isso", explicou Damien.
Quase sete anos depois de ter filmado este documentário, a dupla de franceses continua a pensar em São Tomé, nas suas paisagens e nas suas gentes. Mas porquê?
"Essa é uma pergunta muito interessante, porque São Tomé ficou realmente inscrito em nós, ficou profundamente dentro de nós. Não há um momento em que esteja a ver o filme com o Romain e que não pensemos: " Queremos voltar lá”. Além disso, não é só uma coisa que dizemos, é mesmo algo que queremos. Talvez seja um pouco louco, mas queremos voltar por causa da beleza das paisagens, mas também da beleza dos sorrisos, da bondade da pessoas. Há qualquer coisa de estranho, de fantasmagórico, de fresco, de sincero e, ao mesmo tempo, de brutal. É uma enorme, concentração de adjectivos em termos de experiência de vida, e é algo que teve um efeito profundo em nós. Nós estivemos lá, passámos lá um mês três vezes e não me lembro de um único minuto em que nos tenhamos aborrecido. É realmente algo que ficou connosco. Então, como é que o podemos expressar? Um pouco de nostalgia, um pouco de saudade, um pouco, não sei, mas em todo o caso, acho que não há uma semana que passe que não pense, de uma forma ou de outra, e que eu não pense como arranjar uma maneira de volta a São Tomé", justificou Damien.
"Penso que sempre que saímos para filmar, voltamos enriquecidos e a nossa experiência é enriquecida. E, de facto, isso faz-nos mudar e evoluir muito. Acho que se há uma coisa que me faz pensar nas pessoas que conheci em são Tomé, seria a sua vontade, a sua resiliência e a abertura de espírito que foram capazes de manter e partilhar connosco", concluiu Romain.