Português Valério Romão com novas obras no mercado francês

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Valério Romão, embora nascido em França, vive desde criança em Portugal.

Tem-se ilustrado na literatura com uma série de obras que têm vindo a singrar também no mercado francês.

O lançamento da tradução francesa de "Dez razões para aspirar a ser gato", publicado em Portugal em 2015 pela editora Mariposa azual, e que agora chega ao mercado francês através da editora Chandeigne, foi um dos pretextos para voltarmos a falar com o autor.

Valério Romão aqui em "Dix raisons de vouloir être chat" volta a ser traduzido por João Viegas, uma colaboração à qual o autor começa por se referir.

Valério Romão: É sempre um prazer trabalhar com o João, porque ele é um tradutor exímio, muito interessado naquilo que faz e em perceber o que é que está diante dele. Não só em termos de linguagem, ou de semântica, ou gramatical, mas também em termos de estilo. Ele dá muita atenção à musicalidade e ao ritmo dos textos. E depois isso é muito fácil, porque há duas ou três dúvidas que surgem e rapidamente são dirimidas. E pronto, é um prazer !

Que relação é que você tem ou teve com os felinos para optar pela escrita desta obra, nomeadamente ?

Sou grande fã de gatos e tudo o que tenha a ver com gatos e achei que era uma forma engraçada e interessante de homenageá los literariamente, como tantos escritores já o fizeram.

Pedir lhe ia para ter a amabilidade de nos ler um excerto. Você evoca dez razões, não é? Para efectivamente aspirarmos a ser gatos !

Com prazer. Vou ler a primeira razão do primeiro conto deste livro:

A gata passeia a sua indiferença elegante por entre as pernas dos convivas. A gata abre e fecha a bocarra de sono, recosta-se na almofada e avia, em silêncio, mais 06h00 de merecido repouso. Às vezes gostava de ser aquela gata distraída. Às vezes gostava que o meu único sobressalto ocasional adviesse de um cio incontrolável, um cio que me fizesse miar noites a fio, um desassossego de bicho, um cio que devolvesse aos donos a vontade secreta de um espancamento nocturno.

Muito obrigado. Então nós evocamos aqui dez razões para aspirarmos a ser gato. Quer sintetizar-nos algumas delas ? Há uma razão oftalmológica, psicológica...

Sim, basicamente o livro, embora, embora seja centrado nos gatos, o gato não está sempre em primeiro plano. O gato é um ponto de aplicação do desejo ou da frustração, ou da vontade de o humano de aspirar a uma vida mais simples ou com mais sentido. É uma espécie de espelho no qual o humano se vê e percebe que, embora seja aparentemente o ser mais completo ou mais avançado neste planeta, essa completude ou essa evolução não lhe traz a tranquilidade que os gatos têm, por exemplo.

Nota-se, de facto, aqui a sua postura ligado à filosofia. Você é formado em Filosofia, tornou-se informático, chegou à escrita e dedica-se à escrita a tempo inteiro, enntão, desde 2017, como é que foi o encadeamento de circunstâncias para se chegar a este patamar da sua trajectória?

Fui-me ajeitando com aquilo com que me deparando, não é? Eu tiro filosofia sabendo que não vou propriamente trabalhar em filosofia, acabo por ir parar ao mundo da informática por ter algumas competências de sistemas e tendo sempre no horizonte a vontade e a possibilidade de um dia dedicar-me só àquilo que gostava mesmo de fazer, que é a escrita. E quando isso aconteceu, embora tenha perdido alguma segurança e conforto financeiro, não posso dizer que esteja arrependido, porque fiz a única escolha que me pareceu possível.

Não nos esgotamos neste livro "Dix raisons de vouloir être chat", a tradução para francês pela Chandeigne de "Dez razões para aspirar a ser gato" porque ao mercado francês chegou agora uma obra já traduzida do francês para português no passado. Refiro-me ao "Autismo", que estreou em 2012 em Portugal, mas em 2016 em França e que chegou agora ao formato de bolso, não é ?

Em relação ao "Autismo", porque, eu sei, este livro tem muito de autobiográfico. É também, de alguma forma, o retrato da implosão de uma família. Um casal, o Rogério, a Marta, mas também várias gerações, inclusive a dos avós, em torno de uma criança autista que é o Henrique. Como é que foi escrever "Autismo" ? A primeira da sua trilogia das Paternidades Falhadas, da qual já falámos aqui sobre os dois livros que se lhe seguiram.

Foi um livro relativamente inesperado porque eu ainda estava a trabalhar em informática e senti que já não escrevia há bastante tempo. Senti que precisava de voltar a escrever qualquer coisa, pelo que comecei a escrever aquilo que eu imaginava ser um conto que, depois, se transformou muito rapidamente num romance precisamente com elementos autobiográficos sobre o qual eu estive sempre preocupado porque não queria que fosse um registo de um diário.

Mas quando terminei, fiquei relativamente satisfeito com o processo e com o resultado. Porque de facto não é um diário. E não é lamechas ?

Acho que seria de facto fabuloso poder ouvir um curto excerto, então, da sua escrita no "Autismo".

Claro. Este é do terceiro capítulo.

O primeiro sítio a que Rogério acorreu foi ao balcão de informações do hospital, afogueado no pingo de uma corrida interminável que começara quando recebera da escola o telefonema em que lhe diziam, entre soluços e pedidos de desculpa, que o filho tinha sido atropelado e que seguira para o hospital de urgência numa ambulância que fazia gemer as sirenes para que se percebesse, nos cruzamentos e nos semáforos, a emergência vital da carga. No balcão de informações estava uma senhora de provecta idade a perguntar pela consulta de reumatologia. Rogério, inquieto, olhava por cima do ombro da mulher que, para além de ter problemas nas articulações do corpo, devia também já sofrer de alguma audição selectiva, pelo que obrigava a rapariga que padecia de uma espécie de olheiras de panda atrás do guichê, a repetir monocordicamente, mas cada vez mais alto que a reumatologia ficava no décimo piso, mesmo atrás do laboratório. E dizia isto de cada vez, como se lhe houvesse entrado um Sísifo na língua e a repetição fosse um karma impossível de ser interrompido no seu fluxo.

Obrigado. O que é que lhe evoca se alguém pensar em Eugène Ionesco, no Teatro do absurdo, em relação aos universos que você constrói, por exemplo, nomeadamente em relação a tudo o que vai ocorrer no banco de urgências daquele hospital ?

Sim, tenho uma dívida para com o absurdo e com o absurdo não só de Ionesco, mas de Kafka, de Gogol. Mas esta urgência é também uma espécie de Castelo de Kafka. Não é uma coisa de que se fala muito, mas não se chega lá, não se chega a entrar lá propriamente. E é um dispositivo que funciona bem no sentido de manter a tensão e deixar que o resto do romance vive de prolepse e de analepse se esprai à volta desta coluna vertebral que são as urgências e faça o resto do esqueleto do livro.

E, portanto, quando escreveu o "Autismo", porventura não tinha ainda noção de que escreveria posteriormente "O da Joana" e o "Cair para dentro"; o segundo e o terceiro tomo, por assim dizer, desta trilogia das paternidades falhadas ?

Eu sabia que queria escrever uma trilogia porque parecia me interessante explorar esse tema. Não sabia exactamente sobre o que é que seria.

Como é que é agora voltar a estes livros que, graças à tradução e adaptação para outros mercados que não o português, tanto tempo depois. Portanto, volto a recordar que dez razões para aspirar a ser Gato já saiu em 2015, , portanto praticamente nove anos, e o "Autismo" em 2012.

Sim, é engraçado porque algumas coisas envelheceram bem e outras nem por isso. Agora estava a ler e estava a ver o que é que estava ao mesmo tempo a pensar que havia coisas aqui que teriam de ser mudadas. Mas claro que não vão ser porque eu não vou reescrever um livro que está escrito. Mas. Mas na minha escrita, pronto, não será já exactamente assim.

E como é que olha então para esta "segunda vida", em França do "Autismo", que tinha integrado a selecção final do Prémio Femina Estrangeiro de 2016 e que teve tradução de Elisabeth Monteiro Rodrigues.

Acho muita piada porque, no fundo, somos todos muito semelhantes, não é? As pessoas vão fazendo perguntas. Quando tenho encontros com os meus leitores, acabam por ir fazendo perguntas que os leitores portugueses também fizeram. E acho muito interessante isso: haver essa comunidade de leitores, uns mais interessados no tema do autismo, outros mais interessados no tema da literatura, que acabam por partilhar perguntas muito semelhantes.

Nos livros que comentámos anteriormente, tínhamos falado muito das conversas que tive precisamente com pessoas, por exemplo, que aspiravam a ser mães. No caso de "O da Joana", que é o nascimento de um nado morto. O "Autismo" falámos que tinha muito de autobiográfico na sua família. Você tem um filho que é autista. Foi também um assunto que comentou sobejamente com pessoas que partilhem consigo este dia a dia ligado ao autismo?

Sim e não. Ou seja, acho que acabei por falar do livro e acabei por falar do tema, mas não partilhámos assim tanto.

Mas na última vez que nos vimos você disse-me que estava a germinar um livro sobre uma epidemia de lesbianismo em Lisboa. Perguntar-lhe-ia, dois anos depois, em que pé que está este projecto ou porventura outros projectos que terão surgido ?

Eu acabei por escrever uma centena de páginas de que não gostei. Portanto, estou à espera de ter algum tempo para mim, no sentido de ter dinheiro suficiente para estar uns meses sem precisar de trabalhar para voltar a ele, porque não o abandonei.