"Paris Noir" mostra o lugar de proa dos artistas negros nos grandes movimentos do século XX
19 March 2025

"Paris Noir" mostra o lugar de proa dos artistas negros nos grandes movimentos do século XX

Artes

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Durante a segunda metade do século XX, Paris serviu primeiro de escola de arte e depois como cidade agregadora do pensamento africano, com os maiores vultos culturais senegaleses, americanos, cubanos ou angolanos a passarem pela Cidade da Luz. A exposição "Paris Noir", no Centro Pompidou, conta este período e quer projectar estes artistas pioneiros no futuro.

No pós-Segunda Guerra Mundial, numa altura os movimentos das independências estavam em pleno andamento em África, muitos pintores, escultores, mas também filósofos, escritores, poetas e pedagogos africanos ou vindos das Américas instalam-se a Paris, participando nas grandes correntes artísticas como o surrealismo ou o abstracionismo a partir dos anos 40. No entanto, esta passagem não tinha qualquer reflexo nas retrospectivas organizadas até hoje no Centro Pompidou, um museu parisiense dedicado à arte contemporânea.

Esta reflexão, levou os curadores do museu a idealizarem a exposição "Paris Noir", aproveitando a ocasião para mostrar 40 obras adquiridas nos últimos anos pelo fundo dedicado ao continente africano no seio desta instituição francesa. Em entrevista à RFI, Eva Barois de Caevel, comissária associada desta exposição, explicou que a palavra noir, ou preto, vai muito para além da definição de uma raça ou de uma geografia, mas que a exposição agrega diferentes artistas que devido às suas origens foram vítimas de racismo ou subvalorizados no mundo da arte.

"Nesta exposição temos também, por exemplos afro-colombianos e afro-brasileiros, assim como cubanos ou dominicanos. É muito importante porque esta não é uma exposição sobre geografia ou raça. É uma exposição que trata de uma experiência comum compartilhada e estes artistas fazem parte da História. Para encontrarmos estes artistas, muitas vezes é levada a cabo uma investigação aprofundada sobre cada um e, a partir de um, descobrimos um outro e um militante pela resistência, muitas vezes leva-nos a outro militante. E descobrir estes artistas e fazê-los descobrir ao público foi o nosso mote e posso mesmo dizer que descobrimos muitos mais, mas não conseguimos mostrar todos. Às vezes o público até pode achar estranho já que a nível geográfica não ficamos só em África, mas não tem só a ver com ser negro e africano. Por exemplo, estamos a expor aqui um artista indiano, Krishna Reddy, que viveu em Paris vários anos e estava na cidade durante o Maio de 68 e foi vítima de racismo porque era constantemente confundido com um argelino. E as suas obras reflectem isso. E, assim, claro que nesta exposição não nos cingimos só a artistas de países francófonos, mas temos também lusófonos e artista vindos de outras regiões", explicou

A história desta exposição começa a ser contada em 1947 quando é fundada a editora Presença Africana, pelo senegalês Alioune Diop, com a consciência negra a sedimentar-se à volta de pensadores como Leópold Sédar Senghor com a participação de Aimé Césaire, político, poeta e escritor da Martinica, e da sua mulher, Suzanne, a participarem na revista Tropiques. Juntam-se a esta efervescência artistas afro-americanos como o escritor James Baldwin ou o pintor Beauford Delaney.

É neste clima que se realiza o primeiro congresso de artistas e escritores negros na Sorbonne em 1956. Ao mesmo tempo, Sarah Maldoror, uma jovem francesa com origens na Guadalupe, cria em Paris a primeira companhia de teatro para negros depois de constatar, ainda como actriz, que só lhe davam papéis de empregada de quarto tanto no teatro como no cinema. Foi exactamente no círculo da editora Presença Africana que Sarah Maldoror conheceu Mario de Andrade, escritor e fundador do Movimento Popular de Libertação de Angola, que viria a ser seu marido.

Este encontro levou-a a interessar-se pelos diferentes movimentos de libertação nos países lusófonos em África, com Maldoror a realizar algumas das obras cinematográficas mais emblemáticas destes movimentos como Armas para Banta, rodado em 1970 na Guiné-Bissau, ou SAMBIZANGA, rodado em Angola em 1973.

"A escolha de Sarah Maldoror era óbvia para nós desde o início para figurar nesta exposição. Por um lado, porque Maldoror é uma artista fascinante, mas também por causa de um aspecto realmente importante que é o facto de a história de muitos dos artistas nesta exposição nunca ter sido registada ou cuidada pelas instituições francesas. Foi sim, cuidada pelos próprios artistas ou por pensadores contemporâneos. Sarah Maldoror é uma figura extremamente importante nesse aspecto. Trabalhámos com a sua filha, Anouchka de Andrade e foi a Anouchka quem nos emprestou algumas das obras da exposição. Teremos uma mostra de cinema com os filmes de Sarah Maldoror em Abril e ao longo da exposição vamos mostrando aqui trechos dos seus filmes . Ela tem não só esta faceta de coleccionadora, mas de documentarista e queremos homenageá-la. Conseguimos restaurar os seus filmes e estamos muito interessados em continuar a estudar os seus interesses e como eles entraram no seu cinema. E, claro, o seu compromisso militante , que acho que também será celebrado durante a retrospectiva, com muitos testemunhos, muitos convidados, entre eles artistas. Será um grande evento dentro desta exposição", disse Eva Barois de Caevel.

Entre algumas das obras dos fundos de Sarah Maldoror apresentadas nesta exposição, estão dois quadros do pintor angolano Vítor Manuel Teixeira, conhecido como Viteix, que se instalou em Paris em 1973. Viteix vai voltar a Angola em 1976 tentando através da sua arte criar uma união nacional e concluindo alguns anos mais tarde uma tese de doutoramento na Sorbonne sobre este tema.

A exposição estende-se até aos anos 2000, com muitos artistas e combates a passarem por Paris como testemunham as obras de Victor Anicet, Basquiat ou o dominicano José Castillo. Mas esta é, sobretudo, uma exposição virada para o futuro, sendo a última a ser apresentada neste museu parisiense antes de grandes obras de reabilitação que deverão durar até 2030. Nesse momento, o desejo de Eva Barois de Caevel é que o Centro Pompidou reabra as suas portas com uma nova visão da cultura e intervenção social.

"Esta é realmente uma exposição que para nós é um ponto de partida, como uma grande cartografia que serve de primeiro marco e que a partir de 2030 se vai desdobrar em propostas temáticas para o museu. Há muitos assuntos que podemos retirar daqui desde o militantismo, à questão da Argélia ou à questão da tricontinentalidade, todos esses são assuntos que precisam ser abordados em sua totalidade", concluiu a comissária associada.