A dança é um lugar de liberdade e também de luta política no universo do coreógrafo moçambicano Ídio Chichava. Esta quinta-feira, o artista apresentou o espectáculo “Sentido Único” no Museu de Orsay, em Paris, e mostrou que o poético também é político e que a liberdade em palco é o eco dos anseios das ruas de Moçambique.
Numa altura em que Moçambique vive as consequências de mais um ciclone tropical e em que a repressão continua a tentar calar os protestos de rua, os artistas moçambicanos relembram a força da criativa da liberdade. O palco é esse espaço de transmissão de valores para o coreógrafo Ídio Chichava, que cruza rituais tradicionais com inspirações contemporâneas. Os movimentos transcendem o tempo e ascendem num “sentido único” habitado por emoções e memórias das lutas que os moçambicanos também travam ainda hoje.
A peça “Sentido Único” foi apresentada no auditório do Museu de Orsay, em Paris, no âmbito do projecto “Carnets d’Esquisses” e foi nesse espaço que fomos conversar com Ídio Chichava e também com os intérpretes do espectáculo, Osvaldo Passirivo e Mai-Júli Machado. [Uma conversa que pode ouvir neste programa na reportagem áudio.]
Perante os protestos pós-eleitorais no seu país, que duram há dois meses e em que morreram pelo menos 130 pessoas, Ídio Chichava começou por nos contar que está solidário com o povo que manifesta nas ruas e admitiu que os seus bailarinos “não dançam vazios” mas “carregados de todas as emoções e a memória” dos moçambicanos que morreram nas manifestações. O palco é o seu espaço de liberdade e também o lugar que lhe permite mostrar a sua indignação e dizer “basta”.
“É deste lugar, como artista, que nós temos a possibilidade de poder amplificar as nossas vozes e dar voz, através deste microfone, para que outros entendam que Moçambique precisa de ajuda e precisa que outros manifestem para que a situação mude. Existe um regime que quer manter o país em suas mãos e nós não queremos. Então, eu digo basta como artista e vamos continuar, sempre que pudermos, a dar voz a nós próprios e aos moçambicanos porque precisamos realmente que o mundo manifeste ao nosso lado e que diga, junto com as nossas vozes, Basta!”, declarou o coreógrafo.
Dançar talvez seja o “sentido único”, a única direcção possível quando a realidade é demasiado dura. “Se eu olhar muito, a história de Moçambique, com a guerra colonial, a guerra civil, nós como moçambicanos usamos a nossa forma de estar como ondas que vão sempre lavando as nossas almas, as nossas memórias. Tudo se traduz em cantos. E nós vamos cantar, vamos dançar”, diz Ídio Chichava.
“Sentido Único” é precisamente o nome do espectáculo que agora apresentou e que, apesar de já ter sido criado há algum tempo, assume novos tons à leitura do que se passa hoje em Moçambique. “Agora estamos no sentido único e eu, como povo, não vou recuar. Não vou recuar”, acrescenta o coreógrafo. “Sentido Único” é também o caminho de dois corpos que se provocam, se alinham e desalinham, que estão sozinhos lado a lado, ou que se encontram e se prendem, antes de se desprenderem, mas que, no final, crescem sempre. Esta é também uma criação que surgiu quando o governo moçambicano aprovava uma lei que condenava casamentos prematuros, um flagelo para as meninas em Moçambique.
A peça foi apresentada no âmbito do “Carnet d’Esquisses” [“caderno de esboços”] que propõe, uma vez por mês, no Museu de Orsay e na Livraria 7L, em Paris, espectáculos de jovens coreógrafos. Ídio Chichava foi convidado para integrar a programação, depois de também a bailarina Mai-Júli Machado ter apresentado uma peça em nome próprio na Livraria 7L. Esta é uma das várias iniciativas artísticas do "Paris Dance Project", um projecto que tira a dança dos teatros e que a leva para espaços urbanos alternativos, como uma pista de patinagem ou o tecto da Philarmonie de Paris, onde Ídio Chichava apresentou duas outras obras no âmbito de “La Ville Dansée”. Os fundadores do "Paris Dance Project", Solenne du Haÿs Mascré e Benjamin Millepied, estiveram em 2023, em Maputo, na Bienal de Dança de África, e foi aí que conheceram Ídio Chichava.
“Conheci-o na Bienal de Dança em Moçambique no ano passado. Vi a peça ‘Vagabundus’ que é simplesmente uma peça que me deslumbrou porque em uma hora tive a impressão de aprender a conhecer esta sociedade, a história deste povo através da dança, da emoção, do canto. É também uma peça de arte total com vestuário simples, corpos diversos, imagens realmente comoventes. Para mim, foi a iniciação a um grande coreógrafo, por isso era essencial convidá-lo e convidá-lo sempre que possível”, contou à RFI o coreógrafo Benjamin Millepied.
Ídio Chichava volta a Paris, em Fevereiro, para dançar com Benjamin Millepied no espectáculo “Plenum/Anima” e, em Abril, regressa à capital francesa com o espectáculo “Vejo Anjos que atravessam o sol na minha sala”.
Também director artístico da companhia Converge+, que promove o ensino gratuito da dança junto de comunidades locais em Moçambique, Ídio Chichava venceu, no final de Novembro, o prémio Salavisa European Dance Award da Fundação Calouste Gulbenkian, e graças a ele já começou “a projectar o primeiro estúdio de criação coreográfica independente na periferia de Maputo”. A ideia é criar o primeiro estúdio de criação “virado para bailarinos com uma capacidade criativa de outro nível”, concluiu Ídio Chichava.