A artista Mónica de Miranda apresenta o projecto "Como se no mundo não houvesse Oeste" na 16.ª Bienal de Sharjah, nos Emirados Árabes Unidos. A obra explora a queda do império português e as ruínas coloniais, inspirada no caderno de campo do antropólogo angolano Augusto Visita. Inclui um filme sobre o deserto do Namibe e um sistema cosmológico centrado na natureza e luz, abordando a planta welwitschia, símbolo de resistência. "Como resistir em espaços de opressão, no passado e no presente?", questiona a artista.
RFI: Na sua obra "Como se no mundo não houvesse Oeste", estabelece uma relação entre o passado colonial e o presente cultural?
Mónica de Miranda: Sim, o próprio trabalho reflecte como é que seria se nós pensássemos num espaço diferente. Ou seja, como poderíamos repensar o nosso lugar no mundo se não tivéssemos o Ocidente. Como esse tempo colonial ele repete-se ainda porque o tempo é cíclico. A partir das reflexões do próprio antropólogo Augusto Zita, tenta pensar como o passado ainda nos afecta hoje. O tempo não é linear e como esse passado colonial e a relação com as hegemonias ocidentais marcaram as nossas paisagens, o nosso tempo, o nosso corpo e de como Augusto Zita, enquanto antropólogo, estudava outras formas de conhecimento para entender o seu lugar no mundo.. Formas de cosmologia indígena angolana, e ele consultava para compreender a história, utilizando as plantas como arquivos vivos, como a welwitschia.
Há um caderno de campo que foi partilhado comigo pelo músico angolano Victor Gama, mas nunca foi publicado. Nesse caderno, Augusto Zita faz uma análise da ocupação colonial no território da costa sudoeste de Angola, executando um projecto de investigação que utiliza métodos científicos não ocidentais. Então, como é que nos podemos orientamos no mundo se não tivessemos o Ocidente e este projecto questiona toda a construção do espaço, do tempo histórico e das hegemonias culturais.
Como é que esta descoberta e este estudo deste material influenciam e inspiram a sua criação artística?
Eu tento sempre contactar com escritores e outros pensadores de outros tempos, e têm sido grandes referências na minha obra. Desde escritores angolanos como Rui Duarte de Carvalho, que também é uma referência fundamental deste trabalho e toda a relação de reflexão antropológica que teve nas práticas indígenas nesta região também.
Tal como Augusto Zita são sempre sempre o pensamento e a reflexão de outros artistas, escritores, pensadores, sociólogos do passado que sempre serviram de reflexão para a criação da minha obra. O Augusto Zita, o que me fascinou foi a sua ligação a conhecimentos ancestrais, cosmológicos e como é que ele consultava as antigas plantas: as welwitschias, as mirabilis, onde elas localmente são consideradas entidades sagradas que ligam o terrestre ao divino, um submundo ao mundo terreste e ao mundo mais celestial, e guardam em si - o próprio Augusto Sita usava a planta de uma forma divinatória, que são originárias também da relação de sistemas angolanos - partir também da relação com esta planta. Na verdade esta planta é como se fosse um arquivo vivo da história angolana. E no caderno do Augusto Zito ele vai conversando com a planta. No filme a história da viagem do Augusto visita ao longo de vários cais no Namibe, no sudoeste de Angola, onde ele vai vendo várias ruínas de ocupações portuguesas na Baía dos Tigres, que foi uma antiga aldeia piscatória fundada por portugueses do Algarve que está completamente abandonada. Começa a ser comida pela areia. Ou seja, toda essa memória colonial que vai desaparecendo e o próprio Augusto visita teve um olhar oposto ao olhar do antropólogo sobre culturas indígenas. Ele estudava a ocupação colonial e a partir também do conhecimento das espécies que o rodeavam, dos seres não humanos, as plantas. A partir desta planta, que são plantas que em si elas são símbolos da resistência, num lugar onde nada se mantém vivo, porque é um lugar de seca extrema, em raízes de 30 metros de profundidade e conseguem ir buscar água e demoram dois milímetros a crescer anualmente. Ou seja, algumas das plantas que nós encontramos tinham 3000 anos. Por isso são são consideradas sagradas.
Foi, na verdade a planta a grande protagonista no no livro do Augusto Zita e também no filme que está agora patente na Bienal de Sharjah. De certa forma, olha-se também no filme para esse tempo não linear: Como é que a história se vai repetindo, mas também trazendo uma reflexão do tempo ,da cosmologia angolana Bakongo, ou seja, a noção cíclica, onde o tempo não tem começo nem fim, segue os movimentos do Sol, da Terra e da Luz -Onde a visão do mundo é baseada em ciclos de luz e escuridão entre o amanhecer, a morte e a vida. O próprio Augusto tinha uma teoria que era a teoria do tempo escuro, onde ele considerava a luz como uma nova dimensão. Isto leva-nos a uma reflexão e a viagem no meu filme, é feita a partir de uma personagem que ela faz a reconfiguração do diário do Augusto Zita. Mas ela é uma jovem mulher antropóloga, que vai fazendo a viagem que Augusto Zita fez ao longo do deserto. E vai encontrando minas coloniais e vai tendo várias conversas com o mundo que a rodeia. Ela em si também nos chama a um outro tempo; que é o tempo feminino e estes tempos que são cíclicos do passado com as memórias de vários arquivos que se vão ver nos filmes que ela vai tendo várias conversas para além da planta com o fogo, onde vai atirando ao fogo vários documentos da PIDE, que se transformam em assombrações e que nos revelam esse tempo colonial e as suas feridas. Mas também vai tendo conversas com a terra, onde nos vai revelando um tempo mais profundo.
Depois, o próprio filme vai viajando a partir de um tempo presente, no sentido em que se vai questionando como é que estas ruínas coloniais fazem parte da paisagem contemporânea do deserto e como a natureza tem um poder de regeneração e de apagar o que já não é necessário e está em desuso. E vai nos também indicando um tempo futuro dos seus sonhos e da sua imaginação. Acaba por ser uma história que se vai contando a partir de uma fabulação crítica, de se conseguir contar a história a partir de um outro lugar que não um lugar do conhecimento dominante hegemónico ocidental.
A relação de Augusto Zita com a welwitschia. O significado que essa planta tem no contexto do colonialismo é o da resistência cultural das populações locais. Como encontra o meio termo para trabalhar a história colonial de forma sensível e ao mesmo tempo crítica?
O Augusto Visita faz uma reflexão histórica a partir da welwitschia, como um símbolo de resistência às várias ocupações coloniais no território e propõe um espaço de reflexão a partir de uma reflexão poética feminina de também dos actuais sistemas extrativistas de poder, tanto actuais como passados, como se insere o regime colonial e estabelece como é que a natureza, o corpo e a terra e os corpos humanos foram recursos a ser explorados e propõem uma nova epistemologia baseada em conhecimentos indígenas da região. A própria pesquisa do Augusto Zita também tem um paralelo com a ideias do Amilcar Cabral à volta do solo propõe este solo na sua materialidade, que é uma entidade que está sempre em constante transformação e ajuda-nos a partir do seu diário e da sua teoria, à volta do tempo e da luz e do espaço que compõe o seu universo social e cultural. A ligação entre o corpo humano e o corpo natureza e traz para uma reflexão. O Amilcar Cabral já tinha escrito no seu livro de Defesa da Natureza, a integração da terra, que é um elemento fundamental para os processos de libertação. E aqui também na história do Augusto, visito a terra como um espaço de autodescoberta.
Depois, no filme onde a jovem antropóloga vai numa viagem para se encontrar a si própria, há uma construção também das suas próprias ecologias de cuidado. E como é que o solo, a terra e as fronteiras se conectam com a política do corpo. E o corpo, aqui entende se como um ser que está em constante movimento e transição e que se relaciona com todos os elementos da natureza; como a terra, a água e o fogo. Arquivos vivos que nos vão contando a nossa história.
A escolha do deserto do Namibe como cenário central para o seu trabalho parece estar ligada ao tema da resistência. O que o deserto representa para si, tanto em termos de estética quanto de simbolismo cultural?
Principalmente nesta abordagem, a partir da reflexão de Auguso Zita e da sua relação com a planta, acho que o elemento fundamental de reflexão aqui é como a welwitschia consegue sobreviver num espaço de extrema escassez. E isso, em si é uma metáfora para como é que podemos resistir em espaços de extrema opressão, tanto no passado, a partir da opressão colonial, mas também no presente, a partir da opressão extractivista e capitalista e todas as desigualdades ainda presentes. É um reflexo de todo um legado colonial. E a welwitschia em si é esse símbolo de resistência e é a protagonista da história. E aí o interesse de reflectir esse meio ambiente e de como é possível haver um espaço de auto-determinação e de conexão a vários corpos. Esse corpo que penetra a terra e que entra num tempo mais profundo, num submundo e que nos faz pensar também nessas várias camadas do tempo. Depois esse tempo que é necessário para nos fazermos um corpo resistente como a welwitschia, que demora tanto tempo a crescer, mas que vai permanecendo uma vigilante e uma testemunha da própria história, com muitos tempos e muitas transformações. Ou seja, ela acaba por ser mais antiga do que a própria história porque ela ou questiona quem é que escreve a história ou a história que nós conhecemos nos livros. Ela tem uma outra história que não foi escrita.
No seu projecto, "Como se no mundo não houvesse Oeste", há uma profunda conexão entre história, cultura e geografia. Parece um processo complexo e muito reflectido. Quanto tempo demora para se construir um projecto como este? Imagino que seja um processo ideológico de muitos anos...
Eu costumo dizer que eu gosto de ouvir histórias e gosto de as contar. Mas antes de as contar, eu costumo tentar ouvir as histórias que os espaços têm para me contar. E então esse tempo não se contabiliza porque tem a ver com referências biográficas e e lugares que ocupo social e culturalmente. Os espaços vão me dando as histórias que vou contando. Depois, o processo de produção e de realização de filmes e de exposições, geralmente são processos de investigação que demoram algum tempo. Todos os meus projectos demoram por volta de um a dois anos porque tenho muitas referências literárias, históricas e trabalho geralmente com uma equipa alargada de pessoas, principalmente na construção do filme. Em específico, este filme na sua execução, o filme em si, com uma equipa de produção de cinema -filmámos em 15 dias, mas todo o processo de elaboração de guião ou várias etapas na escrita. Contei também com a colaboração do Ondjaki.
Nos textos vamos encontrando à volta de imagens que eu vou fazendo, dos lugares que vou encontrando e que têm estas histórias e vou indicando essas histórias. Ou seja, houve um processo de estar nos locais, fotografar esse espaço e depois, a partir das imagens desses lugares, vou construindo o próprio argumento. Ou seja, o argumento não começa num espaço imaginário, mas começa num espaço real e o próprio espaço real me vai dando uma história que depois vou imaginando em colaboração com outros artistas, com escritores. Tem bastantes camadas e não é uma coisa instantânea. É uma coisa que é um processo que vou encontrando a própria linguagem do trabalho, a própria história. Ela vai- se construindo em colectivo e de uma forma que eu vou encontrando a história. Mais do que ir escrevendo a história, vou encontrando a história e há vários pontos que me vão situando nessa história. E na verdade, acabo por ser um canal para contar a história.
Vivemo num tempo acelerado como o de hoje, é preciso tempo para a reflexão, tanto para quem cria quanto para quem vê?
Sim, cada vez mais o tempo encurtou o espaço em que nós vivemos, mas também acabamos por não estar por inteiro num espaço. Temos a percepção que podemos estar em muitos lugares ao mesmo tempo e isso acaba por nos criar uma nova dimensão que nos tira, de certa forma, o silêncio de conseguir escutar. Estes espaços que têm estas múltiplas histórias. E é preciso às vezes parar o tempo, esse tempo acelerado contemporâneo em que vivemos na era digital e começar a entender um tempo mais profundo a partir de um espaço de silêncio. Desta forma, o meu trabalho tenta encontrar esse tempo de silêncio e esse tempo mais de um lugar mais feminino que se contrapõe. Esse tempo mais extractivista, acelerado, dominante, fálico. Temos que encontrar esse tempo mais cíclico do nosso próprio corpo como mulher; que tem um tempo para parar, tem um tempo de dor, tem um tempo de regeneração e tem um ciclo. Um ciclo ligado tambem a ciclos da própria noite e do dia, ciclos anuais, ciclos mensais que o nosso corpo tem e a terra está ligado esse próprio ciclo.