“Em Silêncio” é uma banda desenhada de Adeline Casier que ilustra o que foi o “salto”, ou seja, a emigração clandestina para França de milhares de portugueses durante a ditadura do Estado Novo. Entre 1957 e 1974, 900 mil portugueses foram para França e milhares atravessaram as fronteiras sem passaporte. Foi o caso do avô da autora, cuja viagem clandestina para França é retratada na obra e mostra que os dramas da imigração ilegal continuam, só mudaram as nacionalidades dos protagonistas.
A história de “Em Silêncio” começa com disparos sobre homens que caminham em fila algures nas montanhas dos Pirinéus. Estamos em Novembro de 1962 e a miséria, a falta de trabalho e a ameaça de mobilização para a guerra colonial obrigam João a deixar as filhas e a esposa na aldeia de Arnozela, no norte de Portugal, para procurar sustento em França. João vai à procura de uma vida melhor e mergulha numa viagem para o desconhecido depois de pagar a um passador. A sua história ecoa com as de tantos milhares de portugueses que a viveram e com as de tantos outros que hoje a repetem a partir de outros países.
“Através da história do meu avô, espero que os leitores se possam identificar com uma história mais universal que é a da imigração ilegal”, conta a autora, que nos começa por explicar o porquê do título “Em Silêncio”.
Esta história é baseada no testemunho do meu avô, mas eu criei uma parte. Há uma personagem que eu inventei e que não fez parte do seu testemunho. Existem também cenas que acrescentei para fins narrativos e para o argumento. De qualquer forma, no seu testemunho, o que aparecia muito era que nesta travessia que ele fez, havia esta coisa de se esconder sempre, de não fazer barulho, como se tivéssemos de ser um pouco transparentes... Esconder-se nas granjas, nas rochas, na natureza. E tudo porque ele atravessou a Espanha a pé.
E depois, ‘Em Silêncio’ porque, na minha história, o meu avô teve uma espécie de vergonha em relação ao que viveu e há toda uma reflexão em torno do facto de ter passado por tudo aquilo para chegar a um país onde não se sentia necessariamente confortável ou não foi bem-vindo como esperava. É como um sonho desfeito. Esperávamos encontrar logo um trabalho, ter dinheiro, ter uma vida confortável e acaba por ser um pouco mais complicado do que isso. Também noutros testemunhos de migrações, ouvi muito sobre o medo de contar à família tudo por que se passou, tudo o que se viveu e que quando lá se chegou, foi difícil e houve uma espécie de desilusão.
Foi aos 23 anos que Adeline pediu ao avô para lhe contar o que viveu e agora, com 27, publica a BD. O objectivo não é fazer do avô um herói, mas mostrar a dimensão universal e intemporal da emigração. Desde pequena, ela sempre ouviu os relatos da mãe, de onde sobressaía a imagem do avô a entrar em França escondido numa carrinha carregada de porcos que iam para o matadouro.
Esta é a história do meu avô. Pedi-lhe para me contar a sua história, como chegou a França. Tudo começou porque a minha mãe me contava uma pequena parte dessa história que é o momento em que o meu avô teve de atravessar a fronteira entre Espanha e França. Como havia o risco de controlos da alfândega, ele escondeu-se num camião de porcos com outras pessoas que emigravam. Tiveram que se esconder porque isso evitava que a alfândega revistasse os camiões e também porque conseguiam estar no quentinho porque era no inverno.
Por isso, sempre tive esta história na cabeça, desde a minha infância, e quis saber mais. Então, pedi ao meu avô que me contasse a sua história e decidi fazer um livro. É preciso ver que as histórias de imigração ilegal são muito contemporâneas. Ainda que esta história conte momentos vividos que podem ser muito diferentes de alguém que hoje migre de um país africano para França, penso que se encontram imensas dificuldades para se chegar a este país e para se ser acolhido como se deve, com respeito.
Há, ainda, um certo "silêncio" em torno da história da emigração portuguesa para França durante a ditadura do Estado Novo. Nos últimos anos, o tema começou a ser mais tratado em filmes, livros, estudos académicos e isso contribuiu para se começar a falar mais no seio das próprias famílias, até graças à curiosidade das gerações mais novas que procuram as raízes. Foi o que aconteceu, também, com Adeline.
Antigamente, tinha-se medo de falar. Não era bem medo, eu diria que não nos atrevíamos a falar das dificuldades da vida, de quando chegávamos ao país de destino e vivíamos na pobreza ou não era o que esperávamos. Talvez tivéssemos medo do olhar dos outros, que dissessem “foi para isso que saíram do país”…. E depois há muitos portugueses que tiveram a impressão de que essas pessoas que partiram traíram o país. Bem, foi o que ouvi, não é o que penso, mas foi o que ouvi. Acho que isso também deve ter contribuído para o facto de não se querer contar esta história.
Além disso, em França ouvi muito a frase ‘Ah, os portugueses são mesmo bons trabalhadores, nunca dizem nada, nunca se queixam’. Mas acho super hipócrita dizer-se isto porque mostra que os portugueses não tinham meios para falar e dizer o que sentem ou não podiam porque se o fizessem o patrão poderia dizer-lhes: "Então amanhã não venha trabalhar' e se não houver emprego, não há papéis. Isso colocava as pessoas em situações muito complexas e em que não tinham voz. Fazer este livro foi também uma forma de dar voz ao meu avô, de o homenagear e de lhe dar a voz que ele talvez não tenha tido naquela altura.
Ele saiu de Portugal porque havia a ditadura salazarista e porque houve mobilizações para levar pessoas para Angola, para Moçambique. Depois, a França beneficiou bastante porque houve muitos portugueses que vieram para França sabendo que o país tinha de ser reconstruído depois da guerra e que encontrariam trabalho imediatamente. Este foi também o caso dos italianos durante um período e os patrões beneficiaram porque tinham mão-de-obra barata que podia realizar trabalhos difíceis.
A história do avô e dos seus companhieros de viagem é uma longa travessia que dura noites e dias. São quilómetros e quilómetros e quilómetros a caminhar imenso a pé, a dormir ao relento e em granjas, sempre escondidos, à mercê do frio, dos passadores e da eventual solidariedade de quem cruzassem. Pelo caminho, perde-se a noção de tempo e espaço, há fome, sapatos rotos, encontros e desencontros. Os contrastes dos desenhos, a preto e branco, acentuam as paisagens interiores e exteriores que acompanham as personagens.
Gosto muito de trabalhar a preto e branco. Tentei trabalhar com cor, mas não funcionava. O preto e branco e os contrastes que posso obter com o meu lápis também me permitem usar esses ambientes cinzentos como uma ferramenta para contar histórias. Na verdade, não é só dar a atmosfera de uma cena, a luz, é também a forma como conto uma história, como posso intensificar a emoção de uma personagem, por exemplo, ou destacar um elemento graficamente para reforçar algo. Na verdade, o meu preto e branco, os meus contrastes são uma ferramenta gráfica da narrativa.
Como o meu avô me contou a sua história, eu quis conseguir transcrever pela narração os seus sentimentos. A certa altura, havia realmente uma noção de perda de tempo porque ele tinha constantemente de atravessar caminhos de montanhas, vales, e esconder-se… Por vezes podia ser recuperado por um passador a meio da noite ou a horas completamente aleatórias porque era perigoso e talvez fosse melhor atravessar à noite porque havia menos risco de se encontrarem pessoas ou porque os passadores só podiam chegar nessa altura - muitas vezes eram pessoas que faziam outras coisas em paralelo.
O meu avô contou-me que, quando ele fez a travessia, houve pessoas que não chegaram ao fim.
Há, ainda, os ecos da “fotografia rasgada” a recordar a forma como se pagava aos passadores e em homenagem ao trabalho do cineasta que mais retratou a emigração portuguesa em França, José Vieira. Também se vê a pobreza dos bairros de lata desenhados a partir das imagens de Gérald Bloncourt, o fotógrafo franco-haitiano que também escreveu um capítulo da história dessa emigração.
Através da história do meu avô, espero que os leitores se possam identificar com uma história mais universal que é a da emigração ilegal (…) Espero que isto possa criar uma reflexão sobre as migrações e sobre a visão que temos em relação às pessoas que consideramos estrangeiras no nosso país. Bem, não tenho a certeza que a palavra ‘estrangeiro’ seja uma boa palavra porque podemos não ter exactamente as mesmas culturas, mas somos todos seres humanos que sentem coisas, que experienciam coisas e somos, um pouco, todos iguais.
Há pouco mais de 50 anos, milhares de pessoas fugiam de Portugal, onde estavam privadas de tudo, incluindo das necessidades mais básicas como o pão, a saúde, a educação e a liberdade. A BD “Em Silêncio” recorda-nos que ontem eram os portugueses a atravessarem fronteiras sem documentos e que hoje são tantos outros povos a entregarem-se a passadores e a rotas desconhecidas para tentarem, simplesmente, uma vida melhor.