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Um dia por semana, em média, veja aqui os nossos destaques no mundo da cultura e das artes. Excepcionalmente, em função da actualidade, esta rubrica pode ter vários destaques.
"Como resistir em espaços de extrema opressão?"
19 February 2025
"Como resistir em espaços de extrema opressão?"

A artista Mónica de Miranda apresenta o projecto "Como se no mundo não houvesse Oeste" na 16.ª Bienal de Sharjah, nos Emirados Árabes Unidos. A obra explora a queda do império português e as ruínas coloniais, inspirada no caderno de campo do antropólogo angolano Augusto Visita. Inclui um filme sobre o deserto do Namibe e um sistema cosmológico centrado na natureza e luz, abordando a planta welwitschia, símbolo de resistência. "Como resistir em espaços de opressão, no passado e no presente?", questiona a artista.

RFI: Na sua obra "Como se no mundo não houvesse Oeste", estabelece uma relação entre o passado colonial e o presente cultural?

Mónica de Miranda: Sim, o próprio trabalho reflecte como é que seria se nós pensássemos num espaço diferente. Ou seja, como poderíamos repensar o nosso lugar no mundo se não tivéssemos o Ocidente. Como esse tempo colonial ele repete-se ainda porque o tempo é cíclico. A partir das reflexões do próprio antropólogo Augusto Zita, tenta pensar como o passado ainda nos afecta hoje. O tempo não é linear e como esse passado colonial e a relação com as hegemonias ocidentais marcaram as nossas paisagens, o nosso tempo, o nosso corpo e de como Augusto Zita, enquanto antropólogo, estudava outras formas de conhecimento para entender o seu lugar no mundo.. Formas de cosmologia indígena angolana, e ele consultava para compreender a história, utilizando as plantas como arquivos vivos, como a welwitschia.

Há um caderno de campo que foi partilhado comigo pelo músico angolano Victor Gama, mas nunca foi publicado. Nesse caderno, Augusto Zita faz uma análise da ocupação colonial no território da costa sudoeste de Angola, executando um projecto de investigação que utiliza métodos científicos não ocidentais. Então, como é que nos podemos orientamos no mundo se não tivessemos o Ocidente e este projecto questiona toda a construção do espaço, do tempo histórico e das hegemonias culturais.

Como é que esta descoberta e este estudo deste material influenciam e inspiram a sua criação artística?

Eu tento sempre contactar com escritores e outros pensadores de outros tempos, e têm sido grandes referências na minha obra. Desde escritores angolanos como Rui Duarte de Carvalho, que também é uma referência fundamental deste trabalho e toda a relação de reflexão antropológica que teve nas práticas indígenas nesta região também.

Tal como  Augusto Zita são sempre sempre o pensamento e a reflexão de outros artistas, escritores, pensadores, sociólogos do passado que sempre serviram de reflexão para a criação da minha obra. O Augusto Zita, o que me fascinou foi a sua ligação a conhecimentos ancestrais, cosmológicos e como é que ele consultava as antigas plantas: as welwitschias, as mirabilis, onde elas localmente são consideradas entidades sagradas que ligam o terrestre ao divino, um submundo ao mundo terreste e ao mundo mais celestial, e guardam em si - o próprio Augusto Sita usava a planta de uma forma divinatória, que são originárias também da relação de sistemas angolanos - partir também da relação com esta planta. Na verdade esta planta é como se fosse um arquivo vivo da história angolana. E no caderno do Augusto Zito ele vai conversando com a planta. No filme a história da viagem do Augusto visita ao longo de vários cais no Namibe, no sudoeste de Angola, onde ele vai vendo várias ruínas de ocupações portuguesas na Baía dos Tigres, que foi uma antiga aldeia piscatória fundada por portugueses do Algarve que está completamente abandonada. Começa a ser comida pela areia. Ou seja, toda essa memória colonial que vai desaparecendo e o próprio Augusto visita teve um olhar oposto ao olhar do antropólogo sobre culturas indígenas. Ele estudava a ocupação colonial e a partir também do conhecimento das espécies que o rodeavam, dos seres não humanos, as plantas. A partir desta planta, que são plantas que em si elas são símbolos da resistência, num lugar onde nada se mantém vivo, porque é um lugar de seca extrema, em raízes de 30 metros de profundidade e conseguem ir buscar água e demoram dois milímetros a crescer anualmente. Ou seja, algumas das plantas que nós encontramos tinham 3000 anos. Por isso são são consideradas sagradas.

Foi, na verdade a planta a grande protagonista no no livro do Augusto Zita e também no filme que está agora patente na Bienal de Sharjah. De certa forma, olha-se também no filme para esse tempo não linear: Como é que a história se vai repetindo, mas também trazendo uma reflexão do tempo ,da cosmologia angolana Bakongo, ou seja, a noção cíclica, onde o tempo não tem começo nem fim, segue os movimentos do Sol, da Terra e da Luz -Onde a visão do mundo é baseada em ciclos de luz e escuridão entre o amanhecer, a morte e a vida. O próprio Augusto tinha uma teoria que era a teoria do tempo escuro, onde ele considerava a luz como uma nova dimensão. Isto leva-nos a uma reflexão e a viagem no meu filme, é feita a partir de uma personagem que ela faz a reconfiguração do diário do Augusto Zita. Mas ela é uma jovem mulher antropóloga, que vai fazendo a viagem que Augusto Zita fez ao longo do deserto. E vai encontrando minas coloniais e vai tendo várias conversas com o mundo que a rodeia. Ela em si também nos chama a um outro tempo; que é o tempo feminino e estes tempos que são cíclicos do passado com as memórias de vários arquivos que se vão ver nos filmes que ela vai tendo várias conversas para além da planta com o fogo, onde vai atirando ao fogo vários documentos da PIDE, que se transformam em assombrações e que nos revelam esse tempo colonial e as suas feridas. Mas também vai tendo conversas com a terra, onde nos vai revelando um tempo mais profundo.

Depois, o próprio filme vai viajando a partir de um tempo presente, no sentido em que se vai questionando como é que estas ruínas coloniais fazem parte da paisagem contemporânea do deserto e como a natureza tem um poder de regeneração e de apagar o que já não é necessário e está em desuso. E vai nos também indicando um tempo futuro dos seus sonhos e da sua imaginação. Acaba por ser uma história que se vai contando a partir de uma fabulação crítica, de se conseguir contar a história a partir de um outro lugar que não um lugar do conhecimento dominante hegemónico ocidental.

A relação de Augusto Zita com a welwitschia. O significado que essa planta tem no contexto do colonialismo é o da resistência cultural das populações locais. Como encontra o meio termo para trabalhar a história colonial de forma sensível e ao mesmo tempo crítica?

O Augusto Visita faz uma reflexão histórica a partir da welwitschiacomo um símbolo de resistência às várias ocupações coloniais no território e propõe um espaço de reflexão a partir de uma reflexão poética feminina de também dos actuais sistemas extrativistas de poder, tanto actuais como passados, como se insere o regime colonial e estabelece como é que a natureza, o corpo e a terra e os corpos humanos foram recursos a ser explorados e propõem uma nova epistemologia baseada em conhecimentos indígenas da região. A própria pesquisa do Augusto Zita também tem um paralelo com a ideias do Amilcar Cabral à volta do solo propõe este solo na sua materialidade, que é uma entidade que está sempre em constante transformação e ajuda-nos a partir do seu diário e da sua teoria, à volta do tempo e da luz e do espaço que compõe o seu universo social e cultural. A ligação entre o corpo humano e o corpo natureza e traz para uma reflexão. O Amilcar Cabral já tinha escrito no seu livro de Defesa da Natureza, a integração da terra, que é um elemento fundamental para os processos de libertação. E aqui também na história do Augusto, visito a terra como um espaço de autodescoberta.

Depois, no filme onde a jovem antropóloga vai numa viagem para se encontrar a si própria, há uma construção também das suas próprias ecologias de cuidado. E como é que o solo, a terra e as fronteiras se conectam com a política do corpo. E o corpo, aqui entende se como um ser que está em constante movimento e transição e que se relaciona com todos os elementos da natureza; como a terra, a água e o fogo. Arquivos vivos que nos vão contando a nossa história.

A escolha do deserto do Namibe como cenário central para o seu trabalho parece estar ligada ao tema da resistência. O que o deserto representa para si, tanto em termos de estética quanto de simbolismo cultural?

Principalmente nesta abordagem, a partir da reflexão de Auguso Zita e da sua relação com a planta, acho que o elemento fundamental de reflexão aqui é como a welwitschia consegue sobreviver num espaço de extrema escassez. E isso, em si é uma metáfora para como é que podemos resistir em espaços de extrema opressão, tanto no passado, a partir da opressão colonial, mas também no presente, a partir da opressão extractivista e capitalista e todas as desigualdades ainda presentes. É um reflexo de todo um legado colonial. E a welwitschia em si é esse símbolo de resistência e é a protagonista da história. E aí o interesse de reflectir esse meio ambiente e de como é possível haver um espaço de auto-determinação e de conexão a vários corpos. Esse corpo que penetra a terra e que entra num tempo mais profundo, num submundo e que nos faz pensar também nessas várias camadas do tempo. Depois esse tempo que é necessário para nos fazermos um corpo resistente como a welwitschia, que demora tanto tempo a crescer, mas que vai permanecendo uma vigilante e uma testemunha da própria história, com muitos tempos e muitas transformações. Ou seja, ela acaba por ser mais antiga do que a própria história porque ela ou questiona quem é que escreve a história ou a história que nós conhecemos nos livros. Ela tem uma outra história que não foi escrita.

No seu projecto, "Como se no mundo não houvesse Oeste", há uma profunda conexão entre história, cultura e geografia. Parece um processo complexo e muito reflectido. Quanto tempo demora para se construir um projecto como este? Imagino que seja um processo ideológico de muitos anos...

Eu costumo dizer que eu gosto de ouvir histórias e gosto de as contar. Mas antes de as contar, eu costumo tentar ouvir as histórias que os espaços têm para me contar. E então esse tempo não se contabiliza porque tem a ver com referências biográficas e e lugares que ocupo social e culturalmente. Os espaços vão me dando as histórias que vou contando. Depois, o processo de produção e de realização de filmes e de exposições, geralmente são processos de investigação que demoram algum tempo. Todos os meus projectos demoram por volta de um a dois anos porque tenho muitas referências literárias, históricas e trabalho geralmente com uma equipa alargada de pessoas, principalmente na construção do filme. Em específico, este filme na sua execução, o filme em si, com uma equipa de produção de cinema -filmámos em 15 dias, mas todo o processo de elaboração de guião ou várias etapas na escrita. Contei também com a colaboração do Ondjaki.

Nos textos vamos encontrando à volta de imagens que eu vou fazendo, dos lugares que vou encontrando e que têm estas histórias e vou indicando essas histórias. Ou seja, houve um processo de estar nos locais, fotografar esse espaço e depois, a partir das imagens desses lugares, vou construindo o próprio argumento. Ou seja, o argumento não começa num espaço imaginário, mas começa num espaço real e o próprio espaço real me vai dando uma história que depois vou imaginando em colaboração com outros artistas, com escritores. Tem bastantes camadas e não é uma coisa instantânea. É uma coisa que é um processo que vou encontrando a própria linguagem do trabalho, a própria história. Ela vai- se construindo em colectivo e de uma forma que eu vou encontrando a história. Mais do que ir escrevendo a história, vou encontrando a história e há vários pontos que me vão situando nessa história. E na verdade, acabo por ser um canal para contar a história.

Vivemo num tempo acelerado como o de hoje, é preciso tempo para a reflexão, tanto para quem cria quanto para quem vê?

Sim, cada vez mais o tempo encurtou o espaço em que nós vivemos, mas também acabamos por não estar por inteiro num espaço. Temos a percepção que podemos estar em muitos lugares ao mesmo tempo e isso acaba por nos criar uma nova dimensão que nos tira, de certa forma, o silêncio de conseguir escutar. Estes espaços que têm estas múltiplas histórias. E é preciso às vezes parar o tempo, esse tempo acelerado contemporâneo em que vivemos na era digital e começar a entender um tempo mais profundo a partir de um espaço de silêncio. Desta forma, o meu trabalho tenta encontrar esse tempo de silêncio e esse tempo mais de um lugar mais feminino que se contrapõe. Esse tempo mais extractivista, acelerado, dominante, fálico. Temos que encontrar esse tempo mais cíclico do nosso próprio corpo como mulher; que tem um tempo para parar, tem um tempo de dor, tem um tempo de regeneração e tem um ciclo. Um ciclo ligado tambem a ciclos da própria noite e do dia, ciclos anuais, ciclos mensais que o nosso corpo tem e a terra está ligado esse próprio ciclo.

Maio vai ser o mês da Bienal de Arte e Cultura da Guiné-Bissau
11 February 2025
Maio vai ser o mês da Bienal de Arte e Cultura da Guiné-Bissau

A 1ª edição da Bienal de Arte e Cultura da Guiné-Bissau - Bienal MoAC Biss - vai decorrer de 1 a 31 de Maio, em vários espaços da capital guineense, e pretende colocar o país e os seus artistas no panorama mundial da arte contemporânea. Neste programa, falámos com o secretário da Bienal, Mamadu Alimo Djaló, e dois dos curadores do evento, Welket Bungué e António Spencer Embaló.

Maio vai ser o mês da cultura em Bissau. A 1ª edição da Bienal de Arte e Cultura da Guiné-Bissau - Bienal MoAC Biss - decorre de 1 a 31 de Maio, em vários espaços da capital guineense. Mamadu Alimo Djaló, secretário da Bienal, promete que “será um evento nunca visto na Guiné-Bissau” para que “a partir da cultura se dê vida à arte que se faz” no país.

Esta bienal é um evento que vai acontecer em Bissau, em vários cantos da cidade – centros culturais, jardins públicos e também espaços abertos. Nesses espaços vão acontecer actividades ligadas à arte e à cultura na Guiné-Bissau e  também demonstradas a partir dos guineenses na diáspoora, mas também vai acontecer com artistas internacionais que virão à Guiné-Bissau fazer intercâmbio com artistas nacionais. É um evento que durará um mês inteiro, de 1 a 31 de Maio, será um evento nunca antes visto na Guiné e que vai catapultar aquilo que se vive em termos artísticos e culturais na Guiné-Bissau.

O tema deste ano é “Mandjuandadi: Identidades em Liberdade”, a partir do conceito de “mandjuandadi”, uma tradição guineense, liderada por mulheres, de rodas comunitárias com cantos e partilha de histórias. No fundo, uma das formas mais populares de afirmação identitária guineense.

Na agenda da Bienal MoAC Biss, há concertos, espectáculos de teatro, mostra de cinema, exposições de artes plásticas e visuais, workshops e palestras.

A programação está dividida em cinco curadorias: artes plásticas e visuais, literatura, música, conferências e políticas públicas, assim como artes performativas e imagens em movimento. O actor e realizador Welket Bungué, curador para as artes performativas e imagens em movimento, falou-nos sobre a programação no cinema e no teatro, articulada em torno do tema da bienal.

O nosso tema é a Mandjuandadi. Estamos a trazer espectáculos de teatro e performances que visam revisitar e celebrar, empoderando, a importância das histórias que têm o continente africano e especificamente a Guiné-Bissau e a sua multiculturalidade como ponto focal, como algo que precisa ser revisitado, reestruturado e celebrado nas suas múltiplas dimensões (…) No cinema, temos 10 filmes seleccionados, algumas produções inéditas e outras premiadas. Vamos dar foco a filmes que tragam visões mais arrojadas, optimistas e reinventivas quanto às visões e possibilidades de convivência e de projeção do futuro do continente africano, sejam elas produzidas por artistas residentes no continente africano ou que venham da diáspora.

Além de ser uma mostra do que fazem os artistas guineenses, a Bienal quer promover a produção e criação artística, gerar intercâmbios, iniciar o processo para que a língua guineense, o Kriol, aceda ao estatuto de património cultural nacional e lançar as sementes para um museu de arte moderna e contemporânea na Guiné-Bissau. Por isso, o evento vai ter conferências sobre temas definidos como “estruturantes” para o sector, detalhou-nos António Spencer Embaló, curador para as conferências e políticas públicas. Oiça o programa e as entrevistas nesta edição.

Mona Lisa vai ter ainda mais destaque no “Renascimento do Louvre”
04 February 2025
Mona Lisa vai ter ainda mais destaque no “Renascimento do Louvre”

O Presidente francês, Emmanuel Macron, anunciou um plano de renovação do Louvre, o museu mais visitado do mundo. A instituição deverá ter uma nova entrada e a obra mais procurada, a Mona Lisa, com 20.000 visitantes diários, deverá passar a ter “um espaço particular”, provavelmente com um bilhete à parte. Neste programa ARTES, falámos com a historiadora de arte Andréa Rodrigues sobre os planos para o Louvre.

RFI: O que representa o Museu do Louvre para França?

Andréa Rodrigues, Historiadora de Arte: O Louvre tem uma importância muito grande porque o Louvre é "o museu da França". Antes de ser museu, foi uma fortaleza construída por Philippe Auguste na época medieval, no século XII. Foi transformado em residência de reis, no século XIV, por Carlos V, e, durante muitos séculos, esse lugar foi realmente marcado pela monarquia francesa e por esses grandes reis coleccionadores.

O Louvre quando foi transformado em museu, foi crescendo, a colecção foi aumentando e hoje é um centro internacional mundial de arte. O objectivo do Louvre não é só mostrar as obras que estão ali, é também ensinar porque é um local de ensino, as pessoas vêm com esse objectivo de aprender, de ganhar conhecimento sobre história da arte. Eu considero que é um local de importância realmente mundial ao nível de arte, por toda a história que tem e toda a colecção que ele conserva.

É também o museu mais visitado do mundo. Economicamente tem um peso muito grande para França?

Com certeza. Economicamente tem um peso muito grande. O Louvre é frequentado por pouco mais de oito milhões de visitantes por ano. O público estrangeiro é o número maior, se não me engano, mais ou menos 60 a 70% é público estrangeiro de fora da União Europeia, são os americanos - antes eram os chineses, mas agora são os americanos que estão em número mais importante. Depois, há uma percentagem de público francês. Então, a nível financeiro tem muitos ganhos ligados a este museu.

Nos anúncios de renovação do Louvre, que foram feitos pelo Presidente francês, ele falou na possibilidade de aumentar o número de visitantes para 12 milhões por ano. O que acha deste aumento? É exequível?

Este anúncio do Presidente, essa “Nouvelle Renaissance du Louvre”, com uma nova entrada, vai trazer realmente um fluxo maior. Porém, sim, hoje o Louvre, o percurso clássico com as obras-primas clássicas que todo o mundo quer ver, é um percurso bem difícil, que tem muita gente. Com este novo projecto e esta nova entrada que será feita, o objectivo é aumentar o fluxo, mas facilitar também a circulação desse fluxo no interior do museu. Então, com certeza vai aumentar, mas eu acredito que terá um fluxo muito melhor distribuído dentro do museu.

O que pensa da hipótese de colocar a Mona Lisa, de Leonardo da Vinci, que é a obra mais procurada do museu, numa “sala particular”?

Eu concordo e gosto porque infelizmente tem muita gente que vem só para ver a Mona Lisa. Eu já tive grupos, na alta estação turística que tem muita gente mesmo, que me pediram para os levar à Mona Lisa. Muita gente vem com esse objectivo de ver essa obra-prima, que é a mais famosa do mundo e a mais famosa do museu. Então, uma sala específica para ela, com todo um recurso pedagógico para facilitar a compreensão também dessa obra, eu acredito que é uma ideia boa. Estou já aguardando e ansiosa para poder fazer essa nova visita do Louvre e poder entrar na “Sala dos Estados” e conseguir mostrar um Ticiano que também está ali, ou um Paolo Veronese que está ali diante da Mona Lisa e que a gente, às vezes, nem consegue explicar por causa de tanta gente que tem. Eu acho que é uma boa opção.

Essas obras maiores são esquecidas perante a Mona Lisa?

Sim, sim. A “Sala dos Estados” tem uma riqueza enorme de obras do Renascimento, pintores venezianos que, muitas vezes, as pessoas nem olham. Elas vão ali e é só um mar de telefones, tirando fotos da Mona Lisa. Às vezes nem a Mona Lisa elas olham direito, porque é tanta gente que não tem como passar tempo admirando essa obra. E há obras que, infelizmente, passam…

Outrora, o Louvre foi considerado como um “templo da arte”. Quando se vai, por exemplo, à sala onde está a Mona Lisa, o Veronese e o Ticiano, ainda podemos olhar para essa parte sacralizada da arte ou é mais uma experiência de turismo de massa?

Infelizmente, às vezes, naquela sala, a gente tem um pouco essa impressão de turismo de massa. Mas a nossa responsabilidade enquanto conferencistas, enquanto guias que trabalham com esse público ali, é tentar mostrar para essas pessoas que não há só essa obra, que elas têm que tentar separar um tempo para ver as outras, para tentar tirar esse lado de turismo de massa naquela sala. Nós temos esse papel, eu tenho esse papel.

Para toda esta renovação do Louvre, vai ser preciso financiamento. Uma das formas para esse financiamento é a hipótese de bilhetes mais caros para os visitantes que vêm de fora da União Europeia. O que pensa desta medida?

É um pouco complicado, realmente. O facto de pagar um bilhete à parte para a Mona Lisa, eu até concordo. Agora, aumentar o custo para os estrangeiros eu acho meio complicado, eu não concordo muito. Claro que vai ser preciso dinheiro para as obras, mas tem muitos mecenas também envolvidos, tem o Louvre Abu Dhabi. Eu acho meio delicado aumentar só para os estrangeiros.

A directora do Louvre tinha alertado a ministra da Cultura para problemas no museu. Sente que há problemas de congestionamento, de salas desadequadas, em termos de temperatura, para a conservação das obras, por exemplo?

Na verdade, sente-se um pouco. Dentro do próprio museu, como tem um fluxo que está muito dirigido no percurso das obras mais clássicas, a gente vê que tem muitas partes do Louvre que quase não têm fluxo de pessoas e durante a semana há muitas salas que ficam fechadas. Segundo eles, é porque não tem a quantidade correcta de pessoas para trabalhar e para cuidar dessas salas. Então, é meio complicado, sente-se um pouco alguns problemas, até um pouco de stress entre os funcionários.

Eu queria agora que falássemos de uma exposição que termina esta semana, "Figures de Fou – Du Moyen Âge aux Romantiques". Houve uma grande evolução na história da arte relativamente a esta "figura"...

Sim. Esta exposição, "Figures du Fou" ["As figuras do louco da Idade Média até ao Romantismo"], tem como objectivo mostrar como essa personagem de “o louco” foi representada no decorrer desses diferentes momentos da história da arte. As pessoas não podem imaginar vir visitar essa exposição pensando que vão encontrar uma história da loucura enquanto doença psicológica ou psiquiátrica. Não, não é isso. Na verdade, “o louco” teve vários significados ao longo da história.

Havia, por exemplo, “o louco” que era aquele que não acreditava em Deus. Na época da Idade Média, essa pessoa era colocada de lado, à margem da sociedade, era aquele que não tem o senso do mundo e da verdade de Deus, porque a Idade Média é Deus, no período medieval tudo é Igreja e Deus. Depois, houve “o louco” no sentido daquele que deixa tudo na vida para seguir Deus, abandona a riqueza, tudo, como São Francisco de Assis. Há, ainda, o bobo da corte, aquele que vai divertir a corte, o rei, a família real e assim por diante. Depois, há o carnaval, por exemplo, onde as pessoas se fantasiam e esse também era um tipo de louco, de bobo também... 

A exposição também denuncia "o louco de amor"...

O “louco de amor” porque o amor, em si, já era considerado desde a Idade Média como uma loucura porque a pessoa faz loucuras quando está apaixonada. A exposição termina com a questão da loucura enquanto doença que os artistas vão representar, incluindo artistas com problemas psiquiátricos. Então, é uma exposição que traz várias leituras do louco, do bobo. É uma exposição que vale a pena visitar realmente.

Qual é a obra-chave para a leitura desta exposição? Há mais de 300 obras expostas, mas há alguma que, para si, melhor represente a exposição?

Bom, a exposição abre com uma escultura que vem de uma igreja de Bois-le-Duc e essa escultura é interessante porque desde a Idade Média essa personagem de “o louco” é colocada à margem porque essa escultura está representada na parte externa de uma igreja, no arcobotante da igreja, representando esse louco. 

Gostei bastante da parte de "o louco de amor" que tem, por exemplo, uma caixinha de marfim, decorada de todos os lados com cenas ligadas a essa questão. Temos aquela história de Aristóteles que se apaixona por Phyllis, amante de Alexandre, o Grande, e faz de tudo para ela deixar Alexandre e ficar com ele. Até esse filósofo, esse homem com o pensamento bem no lugar, pode sucumbir ao amor. 

Como é que esta figura de “o louco” acabou por ser instrumentalizada e usada como propaganda quer pela Igreja, quer pela monarquia?

Sim, é verdade. A gente vê logo ali, na primeira sala, onde tem vários manuscritos religiosos. Esses manuscritos, essas Bíblias, esses livros da época, esses livros de oração vão ser realizados com a figura dessa pessoa que recusa Deus, alguém que é marginalizado, que é representado nu, como um mendigo, como aquele que é jogado de escanteio nos vilarejos e nas cidades da época. São figuras marginalizadas, xingadas, discriminadas e isso é realmente divulgado e os manuscritos são enriquecidos com essas figuras. Mesmo na questão do bobo da corte, essas figuras estão ali só para divertir…

Isso também incita a população a seguir sempre o caminho ditado pela sociedade e a não ir para as margens. Não é uma forma de controlar as pessoas?

É isso mesmo, é uma forma de controlar, porque tem que se seguir o que é posto como regra, porque senão você está à margem. Então, realmente o controlo existe e vai continuar no decorrer dos séculos, mesmo depois da Idade Média.

Também há uns símbolos muito curiosos, grotescos, que surgem nas obras de Bosch, que são os ovos e a galinha. Qual é a simbologia destes elementos?

Nós temos várias etapas da figura do louco, da Idade Média até ao Renascimento e ao Romantismo, e chega um momento em que a figura do louco, do bobo, está tão difundida, tão espalhada, que se vê em todo o lugar. Os artistas começam a representar como se o louco aparecesse nas árvores, em vez de frutos e de folhas; as galinhas vão botar ovos e vai sair louco daquele ovo. Vai-se espalhar tanto esse personagem no espaço urbano que ele vai brotar de todo o lugar. Ele vai nascer de todo o lugar, inclusive do ovo da galinha e assim por diante. 

Artistas guineenses prestam tributo a Titina Silá, companheira de luta de Amílcar Cabral
19 January 2025
Artistas guineenses prestam tributo a Titina Silá, companheira de luta de Amílcar Cabral

A Casa da Cultura da Guiné-Bissau organizou um tributo à figura de Titina Silá, heroína nacional e companheira de luta de Amílcar Cabral, através de uma exposição patente em Lisboa até 2 de Fevereiro, na Casa do Comum. Intitulada "Titinas em artes", a exposição procura debater o papel social e histórico da produção artística das mulheres guineenses. 

Os tons oscilam entre o amarelo e o prateado. A tela é de pintura abstrata. Ao lado, a artista plástica Edna Évora, com o curador Nú Barreto. Juntos, vão acolhendo os primeiros convidados. O evento, organizado pela Casa da Cultura da Guiné-Bissau, reuniu uma centena de pessoas com a presença metafórica de uma personalidade, a heroína nacional e combatente pela independência Titina Silá, e uma questão subjacente: o que é a identidade guineense?

Uma pergunta à qual a artista Edna Evora responde com a noção de diversidade e do legado dos antepassados.

"A identidade guineense somos todos nós. Temos que saber viver juntos na nossa diversidade. Quando eu me exprimo através da minha pintura, que é abstracta... Escrevo de uma certa forma. Pode ser de uma maneira diferente, mas talvez esteja a dizer a mesma coisa que outro artista, que um outro pintor que faz hiper-realismo, ou outra artista que faz escultura.

A ideia é ousar a liberdade, porque alguém, atrás de nós, lutou por essa liberdade. É o legado de toda uma geração... Graças a quem temos, hoje, a liberdade de poder exprimir a nossa cultura. Então, de uma certa forma, Titina Silá e todas as outras estão de uma certa forma inseridas no nosso trabalho. Elas é que nos ajudam a pegar no pincel e a ir à frente."

Afinal, quem era Titina Silá? Nascida em 1943 em Cadique, na região de Tombali, na Guiné-Bissau, Titina Silá assistiu ao massacre dos estivadores do porto de Pidjiguiti que exigiam melhores condições de trabalho e foram assassinados pela repressão do exército colonial. Titina Silá formou-se na União Soviética, onde realizou um estágio político e uma formação em socorrismo. De regresso à Guiné-Bissau, tornou-se líder na luta contra as forças coloniais, sendo que dirigiu, de acordo com fontes diversas, um comando de mais de mil homens, lutadores pela independência da Guiné-Bissau e de Cabo Verde. 

Titina Silá acabou por ser assassinada em 1973 numa emboscada do exército colonial português, quando atravessava o Rio Farim para se dirigir ao funeral do amigo e companheiro Amílcar Cabral, morto dez dias antes.  

Desde 2003, a data da morte de Titina Silá (30 de Janeiro) é celebrada na Guiné-Bissau como o Dia Nacional das Mulheres guineenses

O tributo prestado a Titina Silá através desta exposição insere-se no âmbito das celebrações do centenário do seu camarada de luta, Amílcar Cabral. 

O curador da exposição e também artista-plástico Nú Barreto debruça-se sobre o trabalho das outras duas artistas da exposição, Cunca na escultura e Thayra Correia no design. Ambas convidadas tanto pelo seu talento, como pela coragem de estarem na vanguarda da arte que realizam. "Enquanto curador da exposição, tive a ousadia de juntar as gerações mais novas com trabalhos completamente opostos. Uma faz pintura, outra é designer, outra faz esculturas", começa Nú Barreto.

"São profissões que, na Guiné-Bissau, não se vêem muito. Pegando no trabalho da Edna, por exemplo, é um trabalho completamente oposto daquilo que se faz, com um pendor muito virado para o simbolismo, no oposto do nosso hiper-realismo.

Gosto muito dessa questão da ambivalência na oposição. Porque abre a liberdade expressiva, abre um outro caminho, mostrando que é possível ser diferente de si mesmo. Estamos a construir algo juntos, mas podemos ter liberdades diferentes. Isso é o que eu gosto no trabalho dessas três artistas."

 

Combatentes nas artes como Titina Sila na luta pela independência, estas três artistas guineenses, cada uma à sua maneira também, cada uma com a sua arte, produzem significados e passam mensagens.

Para Edna Evora, o importante é que a arta consiga "apaziguar", criar pontes, construir casas comuns mesmo que com linguagens diferentes. "Quaisquer que sejam as divergências, temos que ter a inteligência de funcionar juntos. Se têm apetência para a arte: usem, façam, mostrem. Não fiquem escondidos. Podemos dizer muita coisa com a arte, temos que ousar."

E, como diz Nú Barreto, "a arte é política... e a política é arte". Por falar em política, foi possível cruzar-se com o presidente do Parlamento guineense Domingos Simões Pereira, entre um quadro de pintura abstrata e uma escultura hiper-realista. O líder político tece pontes entre política e arte, sendo esta última parte integrante, a seu ver, do processo de independência.

"Como [Amílcar] Cabral dizia, a própria luta de libertação nacional é um acto de cultura. Porque só um povo cioso da sua identidade, cioso do seu desenvolvimento, assume o propósito da sua libertação. Tendo um líder com esta visão da importância da cultura, e tendo Lisboa como uma capital que abriga um número bastante importante da diáspora guineense, eu penso que conjugam muito bem para que a Guiné-Bissau não continue a fazer títulos só pelos piores motivos, mas que seja capaz de exibir obras de gente da cultura, de gente que pensa a nossa identidade e nos projecta de forma positiva. Enche-nos de orgulho."

A exposição Titinas em Artes, patente até dia 2 de fevereiro, enquadra-se nas celebrações do primeiro aniversário da Casa da Cultura da Guiné-Bissau, em Lisboa. 

BD mostra o futebol como “arma de emancipação” e terreno de resistências
14 January 2025
BD mostra o futebol como “arma de emancipação” e terreno de resistências

A banda desenhada “Uma História Popular do Futebol”, de Mickaël Correia, Jean-Christophe Deveney e Lelio Bonaccorso, retrata as lutas operárias, anticoloniais, feministas e revolucionárias que também marcaram o desporto-rei. Afinal, “a história do passe é também uma história política”, o “drible” nasceu para fintar a violência racista e o Campeonato Africano das Nações foi “um laboratório do pan-africanismo”, contou-nos Mickaël Correia. A BD, que mostra o futebol como “uma arma de emancipação”, é lançada a 22 de Janeiro, em França.

Eis uma história diferente do desporto-rei, da Idade Média até aos dias de hoje, uma narrativa mais subversiva, em que a bola se se joga no campo social e político. Aqui, o futebol vive ao ritmo de lutas contestatárias, é terreno de resistências e de emancipação, dá voz a operários de bairros pobres, a movimentos anticoloniais, feministas e revolucionários. Esta é uma outra história do futebol, distante dos brilhos das bolas de ouro, das transferências milionárias e dos contratos chorudos de publicidade. Afinal, o futebol foi e pode ser “uma arma de emancipação”, conta-nos Mickaël Correia a propósito da banda desenhada "Une Histoire Populaire du Football", que é publicada a 22 de Janeiro, em França, a partir do livro com o mesmo título que ele publicou em 2018, em França, e que foi editado em Portugal em 2020.

 

RFI: Como é que esta banda desenhada apresenta o futebol?

Mickaël Correia, autor de “Uma História Popular do Futebol”: O tema desta banda desenhada é que o futebol não é só uma indústria capitalista, não é só o Mundial, não é só o Cristiano Ronaldo. É igualmente uma arma de emancipação para os povos colonizados, para os operários, para as mulheres igualmente. Há também uma história social do futebol que é igualmente uma cultura popular.”

Como é que o futebol foi - e aparentemente é - essa tal ferramenta de contestação e de emancipação?

“Há muitas coisas a dizer sobre isso, mas talvez a primeira coisa que possamos dizer é que o início da história do futebol é uma história operária. O futebol nasceu nas comunidades operárias de Inglaterra. Quando havia muitos operários, era uma maneira para eles de fazerem comunidade porque eram pessoas que fugiram das pequenas aldeias da Inglaterra para trabalhar nas grandes fábricas das grandes cidades operárias e industriais de Inglaterra e necessitavam de fazer comunidade. Haver um clube de futebol de bairro e apoiar os jogadores das suas fábricas era uma maneira de fazer essa comunidade.

Podemos dizer igualmente que a história do passe tem uma história mesmo política. São os operários que começaram a passar a bola entre eles e era sinónimo de cooperação nas fábricas e solidariedade operária. Passar a bola era sinónimo desta solidariedade."

No século XIX?

"No século XIX, sim. Como desporto moderno, o futebol foi criado em 1873, no final do século XIX.”

Confere ao futebol essa capacidade de emancipar determinados grupos, nomeadamente as mulheres. Fala no caso das “munitionettes”, as mulheres chamadas para trabalhar nas fábricas de armamento durante a Primeira Guerra Mundial, quando os homens estavam na frente de batalha. Como é que elas foram pioneiras no futebol feminino e como é que depois acabaram por ser banidas pelos homens?

“É uma história mesmo incrível e foi a história mais difícil de investigar porque não havia muita documentação. Durante a Primeira Guerra Mundial, todos os homens foram para a guerra e nas fábricas havia mulheres que estavam a trabalhar. O patronato foi dizer às mulheres:‘O que é que vocês querem fazer depois do trabalho?’ E elas disseram: ‘Os nossos pais, os nossos primos, os nossos irmãos já estão a jogar futebol e nós queremos igualmente fazer partidas de futebol’. A partir de 1917, houve um campeonato destas ‘munitionettes’ que foi mesmo muito popular na Inglaterra e houve mesmo 50.000 pessoas num estádio em Liverpool para apoiar estas mulheres.

O problema foi quando os homens voltaram para as fábricas depois do fim da guerra. Eles disseram: ‘Bom, isto foi uma brincadeira e agora vocês têm que ir para casa fazer bebés’ porque houve grande problemas de natalidade depois da guerra. Consideraram que o papel da mulher não era trabalhar nas fábricas, era fazer bebés para repovoar o país.

Estas mulheres disseram: ‘Não, não é possível, queremos continuar a praticar o futebol’ e até mais ou menos 1920, 1921, elas continuaram o futebol, mas depois a Federação de Futebol Inglesa fez uma proibição porque estava com medo. Eles estavam mesmo com medo.”

Medo de quê?

“Medo porque ver uma mulher de calções era tabu, ver as pernas de uma rapariga. Para eles, era inadmissível ver estas raparigas a jogarem assim. Foi mesmo um grande pânico moral. Então, eles proibiram o futebol feminino em 1921. As mulheres tiveram que esperar 50 anos para poder outra vez jogar futebol em Inglaterra e até no resto da Europa.”

A BD apresenta as lutas das jogadoras no campo da guerra contra o sexismo e também contra a homofobia. Como é que o futebol feminino sobrevive ainda hoje? Como é que se bate contra o patriarcado desportivo? Quando é que as mulheres mostraram, ou será que ainda não mostraram, um cartão vermelho ao patriarcado no sector?

“Claro que hoje ainda há muitas lutas no futebol feminino porque ainda há grandes diferenças de salário, por exemplo, com uma grande estrela do futebol, como a Megan Rapinoe, que é campeã do mundo de futebol nos Estados Unidos. A equipa dos Estados Unidos até fez uma greve no fim dos anos 2020 para reclamar os mesmos salários que os homens. Para trabalho igual, salário igual.

Vimos igualmente esta história de sexismo e de agressão sexual com a equipa feminina de Espanha, em que o presidente da Federação deu um beijo a uma das jogadoras de Espanha. Isto foi igualmente uma grande luta para elas.

Neste campo do salário, neste campo da luta contra o sexismo e contra as violências sexuais, podemos ver que o futebol feminino é igualmente uma arma contra o sexismo e contra estas violências.”

O livro também confere ao futebol a capacidade de engendrar revoluções. Eu queria saber qual foi o papel dos Ashlawys, os adeptos do clube egípcio Al Ahly, na ocupação da Praça Tahrir e na Primavera Árabe?

“Houve um papel muito importante dos adeptos de futebol na Primavera Árabe. Na banda desenhada, falo do que se passou no Egipto, mas houve igualmente o mesmo na Tunísia e na Turquia. Houve - ainda há agora - muitas organizações de adeptos que têm uma cultura do anonimato e da autogestão, que faz com que a polícia política das ditaduras não se possa infiltrar porque são grupos auto-geridos.

Eles podiam organizar-se e fazer canções ou manifestações contra o governo logo nos anos 2010, 2011. Quando houve a revolução no Egipto, já há alguns anos que os grupos de adeptos estavam a manifestar, no estádio, contra o governo, a cantar canções mesmo poderosas de crítica à ditadura. E já tínhamos igualmente algumas práticas de luta contra a repressão da polícia. Na Praça Tahrir, no Egipto, eles ajudaram o movimento revolucionário a incutir estas práticas de luta contra a polícia e de luta no anonimato.”

Mas foram reprimidos…

“Claro, houve uma repressão mesmo terrível no Egipto e muitas pessoas destes grupos despareciam, foram para a prisão e alguns foram mortos.”

Vocês contam mesmo um episódio, falam do massacre de Port Saïd…

“O massacre de Port Saïd foi em 2012. Foi uma vingança de uma batalha que houve em 2011, um ano antes, em que os adeptos de futebol ganharam uma batalha na Praça Tahrir contra a repressão da polícia. Um ano depois, a polícia organizou este massacre. Na partida entre o Cairo e Port Saïd, a polícia autorizou os adeptos do Port Saïd a entrarem com facas e, no final da partida, a polícia fechou o estádio e houve um massacre. Os adeptos do Port Saïd sacaram as facas e as armas e mataram dezenas de adeptos deste grupo que são os adeptos da equipa do Cairo. Isto foi mesmo uma vingança da vitória dos adeptos sobre a polícia em 2011.”

Falam também da lição "decolonial" e de “drible social” que os brasileiros Pelé e Garrincha deram ao mundo. Quer contar-nos?  

“O futebol é uma religião no Brasil. Tem igualmente uma dimensão decolonial para mim. A própria história do drible é, para mim, uma história decolonial. O drible nasceu no Brasil nos anos 1920, mais ou menos, e foi um jogador negro que era sempre atacado pelos jogadores brasileiros brancos - porque neste período era proibido aos jogadores negros jogarem futebol. Arthur Friedenreich, de pai alemão e mãe brasileira, começou a meter pó de arroz sobre a sua pele para parecer mais branco. Mas no campo de futebol tinha sempre muitos ataques dos jogadores brancos porque era um período mesmo muito racista.

Uma vez, Arthur Friedenreich, quando ia atravessar a rua, um carro ia atropelá-lo, ele desviou-se e fez um movimento de anca. Foi assim que o drible nasceu. Ele mesmo disse: ‘Como não posso lutar contra a violência dos brancos no campo, a melhor maneira de lutar contra a violência é desviar a violência. Então isto é mesmo uma coisa de uma luta decolonial. Quer dizer, não posso fazer nada contra as pessoas que têm este monopólio desta violência do Estado, então a melhor maneira é desviá-la. O Pelé e o Garrincha fizeram-no de uma maneira artística. Foi mesmo arte.”

Na BD, chamam-lhe “o jogo bonito”.

“Sim, jogo bonito ou “Futebol Arte” é outro termo que se usa no Brasil que é fazer desta arte uma identidade afro-brasileira, com este desvio da anca que tem esta história de como lutar contra esta violência do colonizador.”

Outra noção na BD é justamente o futebol como um campo de resistências. Como é que o futebolista austríaco Matthias Sindelar, conhecido como “o Mozart do futebol”, se tornou num símbolo de resistência face ao regime nazi?

“O Matthias Sindelar, em 1938, era mais ou menos o Cristiano Ronaldo deste período. Em 1938, a Alemanha invadiu a Áustria e quis fazer uma grande cena de propaganda nazi com um jogo entre a Áustria e a Alemanha nazi. A propaganda era dizer que o povo da Áustria e o povo alemão eram o mesmo povo e que apoiavam o III Reich e o seu líder Adolf Hitler. Antes da partida, os diferentes chefes nazis foram ver o Matthias Sindelar para lhe dizer ‘vamos fazer um jogo de propaganda e tem que acabar com um zero zero’.

O problema é que quando a partida começou, a equipa da Alemanha jogava mesmo muito mal e a Áustria, que era uma das melhores equipas da Europa, teve que fingir não jogar bem. O problema é que no final da partida, Sindelar já não podia fingir jogar mal e marcou um golo. No final da partida, toda a gente estava a dizer que o Sindelar ia ser morto, enviado para um campo de concentração ou algo assim. Como Sindelar era tão famoso, era uma celebridade desta época, os nazis não o quiseram matar. Durante mais ou menos um ano ou dois, ele entrou na clandestinidade porque era contra o regime nazi e a mulher dele era judia. Foram encontrados mortos no seu apartamento, em 1939, e ninguém sabe o que se passou. Ninguém sabe se foi a Gestapo que assassinou o Matthias Sindelar. O que sabemos é que quando ele morreu, houve nas ruas de Viena mais ou menos 15.000 pessoas e, neste período, todas as manifestações públicas eram interditas pelo regime nazi, o que foi visto, na época, como a primeira resistência civil da Áustria contra o regime de Adolf Hitler.”

Outra história muito comovente, ainda na parte das resistências, é a dos irmãos Starostine. Quer resumir-nos a história destes irmãos e como é que, graças ao futebol, eles sobreviveram ao Gulag?

“Há uma equipa muito famosa que se chama o Spartak Moscovo, que é a grande equipa popular da capital da Rússia. Nos anos 30, 40, quando o regime de Estaline era muito poderoso e muito repressivo sobre a população, a maneira de dizer não do povo de Moscovo era não apoiar a equipa do partido que era o Dínamo de Moscovo, a equipa oficial da polícia política, mas antes apoiar o Spartak Moscovo, que era a equipa do povo e pertencia a dois irmãos que se chamavam os irmãos Starostine.

Estes irmãos eram mesmo muito populares junto da população operária da Rússia. O problema é que a polícia política não gostava que estes irmãos fossem muito populares e que uma grande parte da população russa não apoiasse a equipa da polícia política. Então, em 1940, enviou os dois irmãos para o campo de trabalho, o Gulag. Quando os irmãos chegaram ao Gulag, todos os presos tiveram uma grande solidariedade com os irmãos Starostine, o que fez com que eles sobrevivessem durante quase cinco anos.”

A BD aponta ainda o futebol como um terreno de contestação anticolonialista. Contam que na colonização em África, por exemplo, o futebol começou por ser visto como uma forma de dominar o corpo da pessoa colonizada. Quando é que isso muda?

“Isso muda depois da Segunda Guerra Mundial. Antes foi a Igreja e os diferentes E stados colonizadores que usaram o futebol para dominar o corpo do colonizado, era mesmo para prender, para domesticar o corpo da pessoa colonizada. Durante a guerra, nas tropas de libertação da França, igualmente por toda a Europa, havia muitas pessoas da Guiné, dos Camarões ou do Senegal e a França para lhes agradecer deu-lhes liberdade de associação. A partir de 1946, 47, 48, houve uma explosão dos clubes de futebol organizados por estes povos colonizados. Estes clubes autogeridos pelos colonizados foram lugares para falar de política e se se podia gerir clubes de futebol e campeonatos de futebol, podia-se igualmente gerir o país. Então, os clubes de futebol, autogeridos pela colonizados, foram um laboratório político, um laboratório de auto-gestão e político. Houve muitos líderes da independência na Argélia, no Senegal ou na Nigéria que foram presidentes de clubes de futebol nesses países.”

O próprio nascimento do Campeonato Africano das Nações acaba por ser um instrumento do pan-africanismo, não é?

“Sim, claro. A primeira Taça de África das Nações foi igualmente um laboratório do pan-africanismo. Foi uma maneira de dizer à Federação Internacional de Futebol: ‘Podemos organizar a nossa própria taça de futebol no nosso continente’. E foi uma forma igualmente de propaganda para dizer que o continente africano tem de ficar unido na política e o futebol era mesmo uma boa maneira de mostrar esta unidade no mundo inteiro.”

Nesta “História Popular do Futebol”, não fala directamente de uma das maiores estrelas de futebol contemporâneas, o Cristiano Ronaldo, a não ser em alguns desenhos e algumas falas indirectas. Porquê?

“O Cristiano Ronaldo é desenhado no princípio da banda desenhada, mas é mais para mostrar que esse jogador é um grande símbolo da indústria capitalista que é hoje o futebol. É uma pessoa muito conhecida,é  uma pessoa que representa Portugal, mas é igualmente uma pessoa que representa o melhor da indústria do capitalismo futebolístico hoje.”

Que é o contrário da mensagem que transmite o livro…

“Sim, é o contrário da mensagem. A mensagem do livro é dizer que, claro, o futebol é uma indústria, mas dentro desta indústria podemos ver algumas práticas de resistentes.

Como estamos em França, para muitos lusodescendentes, para muitas pessoas que vêm da emigração portuguesa, o Cristiano Ronaldo é uma maneira de dizer ao povo francês e aos outros povos europeus que somos um povo de emigração, somos um povo trabalhador que não se ouve muito em França, mas podemos ter este orgulho de ter um jogador como o Cristiano Ronaldo. O Cristiano Ronaldo é a oposição do estereótipo do português em França porque é um jogador que se vê muito, é um jogador que tem muito orgulho. Isso vem contra este estereotipo do português que é muito invisível, que não diz nada, que só está aqui [França] para trabalhar.”

Então, também o Cristiano Ronaldo se emancipou?

“Isso é a contradição do futebol: pode ser uma mensagem muito capitalista, é um mercado, mas pode ter igualmente uma mensagem muito política. É isto mesmo que gosto nesta história do futebol: é uma coisa que está sempre em contradição entre um espectáculo muito capitalista, onde há muito dinheiro, mas é igualmente um desporto muito popular e onde há muitas resistências.”

Em contrapartida, vocês dedicam um capítulo a Diego Maradona, que era visto como um deus. Como é que se explica a divinização deste jogador com aspectos tão controversos, nomeadamente as drogas, os excessos?

“Na Argentina, este jogador é um deus porque ele vem de um bairro muito popular e aprendeu a jogar na rua. Isto é uma coisa muito importante para o povo da Argentina que se pode identificar com ele. Houve uma partida muito conhecida em 1986 contra a Inglaterra. Ele pôs a…”

A “mão de Deus”…

“A mão de Deus, ele marcou um golo com a sua mão.  Para o povo argentino, era uma coisa tipicamente do povo argentino. Quer dizer, não podemos lutar contra os ingleses, que eram igualmente um povo colonizador, mas vamos fazer esta coisa que é mais do âmbito da cultura do malandro, da cultura de rua, em que para sobreviver tens de roubar, para ganhar contra o dominante tens de fazer batota.

O que se passou quando Maradona foi para Nápoles foi a mesma coisa. O povo de Nápoles é um povo que vive muito na rua e gostou muito deste jogador. A divinização é igualmente muito importante porque na maneira de falar dos napolitanos, ‘Maronna’ quer dizer a Virgem Maria. Então Marona é muito próximo do Maradona. Há igualmente um aspecto muito crístico porque Diego Maradona tomou muita droga, o corpo dele estava, no fim da sua vida, muito gordo. Houve mesmo uma exposição do corpo dele, um pouco como o Cristo que mostrou as suas feridas e o corpo martirizado. Então, o povo argentino dizia que este jogador era mesmo uma pessoa do povo, que estava a mostrar um corpo martirizado e houve uma aproximação entre o Maradona e a sua parte mais crística.”

Acaba o livro com uma personagem, mulher, no café com os amigos, a dizer que “nos relvados, nas tribunas e nas ruas, uma outra história do futebol continua a ser escrita”. Os campos de futebol ainda são um terreno de luta?

“Podemos vê-lo diariamente. Nos campos de futebol, nas tribunas, vimos apoio à Palestina, por exemplo, na Escócia, e até aqui em Paris. Em Paris, houve uma grande manifestação dos adeptos a favor da Palestina. Há igualmente muitas lutas antirracistas. Estamos a ver muitos jogadores que estão a dizer que eles não são racistas. E estamos a ver igualmente alguns jogadores na luta contra a LGTBfobia. O futebol é um espelho do que se está a passar na sociedade e isso pode ver-se no campo de futebol todos os dias.”

Em 2018, em França, publicou esta “História Popular do Futebol” sob a forma de um ensaio. Em 2020, editou-a em Portugal. Por que é que decidiu adaptar a obra ao formato BD?

“Era para ser mais popular. O livro tem mais de 500 páginas e pode ser um bocadinho difícil para algumas pessoas que não têm o hábito de ler muito. Fazer esta adaptação para banda desenhada é uma maneira de os jovens também conhecerem esta história de resistência.”

BD recorda tempos em que os clandestinos eram os portugueses
08 January 2025
BD recorda tempos em que os clandestinos eram os portugueses

“Em Silêncio” é uma banda desenhada de Adeline Casier que ilustra o que foi o “salto”, ou seja, a emigração clandestina para França de milhares de portugueses durante a ditadura do Estado Novo. Entre 1957 e 1974, 900 mil portugueses foram para França e milhares atravessaram as fronteiras sem passaporte. Foi o caso do avô da autora, cuja viagem clandestina para França é retratada na obra e mostra que os dramas da imigração ilegal continuam, só mudaram as nacionalidades dos protagonistas.

A história de “Em Silêncio” começa com disparos sobre homens que caminham em fila algures nas montanhas dos Pirinéus. Estamos em Novembro de 1962 e a miséria, a falta de trabalho e a ameaça de mobilização para a guerra colonial obrigam João a deixar as filhas e a esposa na aldeia de Arnozela, no norte de Portugal, para procurar sustento em França. João vai à procura de uma vida melhor e mergulha numa viagem para o desconhecido depois de pagar a um passador. A sua história ecoa com as de tantos milhares de portugueses que a viveram e com as de tantos outros que hoje a repetem a partir de outros países.

“Através da história do meu avô, espero que os leitores se possam identificar com uma história mais universal que é a da imigração ilegal”, conta a autora, que nos começa por explicar o porquê do título “Em Silêncio”.

 

Esta história é baseada no testemunho do meu avô, mas eu criei uma parte. Há uma personagem que eu inventei e que não fez parte do seu testemunho. Existem também cenas que acrescentei para fins narrativos e para o argumento. De qualquer forma, no seu testemunho, o que aparecia muito era que nesta travessia que ele fez, havia esta coisa de se esconder sempre, de não fazer barulho, como se tivéssemos de ser um pouco transparentes... Esconder-se nas granjas, nas rochas, na natureza. E tudo porque ele atravessou a Espanha a pé.

E depois, ‘Em Silêncio’ porque, na minha história, o meu avô teve uma espécie de vergonha em relação ao que viveu e há toda uma reflexão em torno do facto de ter passado por tudo aquilo para chegar a um país onde não se sentia necessariamente confortável ​​ou não foi bem-vindo como esperava. É como um sonho desfeito. Esperávamos encontrar logo um trabalho, ter dinheiro, ter uma vida confortável e acaba por ser um pouco mais complicado do que isso. Também noutros testemunhos de migrações, ouvi muito sobre o medo de contar à família tudo por que se passou, tudo o que se viveu e que quando lá se chegou, foi difícil e houve uma espécie de desilusão.

 

Foi aos 23 anos que Adeline pediu ao avô para lhe contar o que viveu e agora, com 27, publica a BD. O objectivo não é fazer do avô um herói, mas mostrar a dimensão universal e intemporal da emigração. Desde pequena, ela sempre ouviu os relatos da mãe, de onde sobressaía a imagem do avô a entrar em França escondido numa carrinha carregada de porcos que iam para o matadouro.

 

Esta é a história do meu avô. Pedi-lhe para me contar a sua história, como chegou a França. Tudo começou porque a minha mãe me contava uma pequena parte dessa história que é o momento em que o meu avô teve de atravessar a fronteira entre Espanha e França. Como havia o risco de controlos da alfândega, ele escondeu-se num camião de porcos com outras pessoas que emigravam. Tiveram que se esconder porque isso evitava que a alfândega revistasse os camiões e também porque conseguiam estar no quentinho porque era no inverno.

Por isso, sempre tive esta história na cabeça, desde a minha infância, e quis saber mais. Então, pedi ao meu avô que me contasse a sua história e decidi fazer um livro. É preciso ver que as histórias de imigração ilegal são muito contemporâneas.  Ainda que esta história conte momentos vividos que podem ser muito diferentes de alguém que hoje migre de um país africano para França, penso que se encontram imensas dificuldades para se chegar a este país e para se ser acolhido como se deve, com respeito.

 

Há, ainda, um certo "silêncio" em torno da história da emigração portuguesa para França durante a ditadura do Estado Novo. Nos últimos anos, o tema começou a ser mais tratado em filmes, livros, estudos académicos e isso contribuiu para se começar a falar mais no seio das próprias famílias, até graças à curiosidade das gerações mais novas que procuram as raízes. Foi o que aconteceu, também, com Adeline.

 

Antigamente, tinha-se medo de falar. Não era bem medo, eu diria que não nos atrevíamos a falar das dificuldades da vida, de quando chegávamos ao país de destino e vivíamos na pobreza ou não era o que esperávamos. Talvez tivéssemos medo do olhar dos outros, que dissessem “foi para isso que saíram do país”…. E depois há muitos portugueses que tiveram a impressão de que essas pessoas que partiram traíram o país. Bem, foi o que ouvi, não é o que penso, mas foi o que ouvi. Acho que isso também deve ter contribuído para o facto de não se querer contar esta história.

Além disso, em França ouvi muito a frase ‘Ah, os portugueses são mesmo bons trabalhadores, nunca dizem nada, nunca se queixam’. Mas acho super hipócrita dizer-se isto porque mostra que os portugueses não tinham meios para falar e dizer o que sentem ou não podiam porque se o fizessem o patrão poderia dizer-lhes: "Então amanhã não venha trabalhar' e se não houver emprego, não há papéis. Isso colocava as pessoas em situações muito complexas e em que não tinham voz. Fazer este livro foi também uma forma de dar voz ao meu avô, de o homenagear e de lhe dar a voz que ele talvez não tenha tido naquela altura.

Ele saiu de Portugal porque havia a ditadura salazarista e porque houve mobilizações para levar pessoas para Angola, para Moçambique. Depois, a França beneficiou bastante porque houve muitos portugueses que vieram para França sabendo que o país tinha de ser reconstruído depois da guerra e que encontrariam trabalho imediatamente. Este foi também o caso dos italianos durante um período e os patrões beneficiaram porque tinham mão-de-obra barata que podia realizar trabalhos difíceis.

 

A história do avô e dos seus companhieros de viagem é uma longa travessia que dura noites e dias. São quilómetros e quilómetros e quilómetros a caminhar imenso a pé, a dormir ao relento e em granjas, sempre escondidos, à mercê do frio, dos passadores e da eventual solidariedade de quem cruzassem. Pelo caminho, perde-se a noção de tempo e espaço, há fome, sapatos rotos, encontros e desencontros. Os contrastes dos desenhos, a preto e branco, acentuam as paisagens interiores e exteriores que acompanham as personagens.

 

Gosto muito de trabalhar a preto e branco. Tentei trabalhar com cor, mas não funcionava. O preto e branco e os contrastes que posso obter com o meu lápis também me permitem usar esses ambientes cinzentos como uma ferramenta para contar histórias. Na verdade, não é só dar a atmosfera de uma cena, a luz, é também a forma como conto uma história, como posso intensificar a emoção de uma personagem, por exemplo, ou destacar um elemento graficamente para reforçar algo. Na verdade, o meu preto e branco, os meus contrastes são uma ferramenta gráfica da narrativa.

Como o meu avô me contou a sua história, eu quis conseguir transcrever pela narração os seus sentimentos. A certa altura, havia realmente uma noção de perda de tempo porque ele tinha constantemente de atravessar caminhos de montanhas, vales, e esconder-se… Por vezes podia ser recuperado por um passador a meio da noite ou a horas completamente aleatórias porque era perigoso e talvez fosse melhor atravessar à noite porque havia menos risco de se encontrarem pessoas ou porque os passadores só podiam chegar nessa altura - muitas vezes eram pessoas que faziam outras coisas em paralelo.

O meu avô contou-me que, quando ele fez a travessia, houve pessoas que não chegaram ao fim.

 

Há, ainda, os ecos da “fotografia rasgada” a recordar a forma como se pagava aos passadores e em homenagem ao trabalho do cineasta que mais retratou a emigração portuguesa em França, José Vieira. Também se vê a pobreza dos bairros de lata desenhados a partir das imagens de Gérald Bloncourt, o fotógrafo franco-haitiano que também escreveu um capítulo da história dessa emigração.

Através da história do meu avô, espero que os leitores se possam identificar com uma história mais universal que é a da emigração ilegal (…) Espero que isto possa criar uma reflexão sobre as migrações e sobre a visão que temos em relação às pessoas que consideramos estrangeiras no nosso país. Bem, não tenho a certeza que a palavra ‘estrangeiro’ seja uma boa palavra porque podemos não ter exactamente as mesmas culturas, mas somos todos seres humanos que sentem coisas, que experienciam coisas e somos, um pouco, todos iguais.

Há pouco mais de 50 anos, milhares de pessoas fugiam de Portugal, onde estavam privadas de tudo, incluindo das necessidades mais básicas como o pão, a saúde, a educação e a liberdade. A BD “Em Silêncio” recorda-nos que ontem eram os portugueses a atravessarem fronteiras sem documentos e que hoje são tantos outros povos a entregarem-se a passadores e a rotas desconhecidas para tentarem, simplesmente, uma vida melhor.

Amílcar Cabral inspira roupas e boneco nos Estados Unidos
13 December 2024
Amílcar Cabral inspira roupas e boneco nos Estados Unidos

Elson e Wilson Fortes, dois irmãos artistas residentes em Boston, nos Estados Unidos, realizaram o protótipo de um boneco de Amílcar Cabral, o primeiro de uma série de “bonecos revolucionários” que estão a criar e que visam inspirar as famílias a partilhar histórias sobre “heróis da vida real”. Os gémeos de 36 anos, filhos de pais cabo-verdianos, têm uma marca de roupa que também imprime nos tecidos desenhos e frases dos “heróis” que eles querem dar a conhecer um pouco mais ao público norte-americano.

“Quisemos fazer um herói verdadeiro, um boneco com um significado, uma boa história”, começa por contar Elson Fortes à RFI a propósito do primeiro boneco articulado que representa Amílcar Cabral. A ideia surgiu depois de os irmãos já terem representado em peças de vestuário o pai da luta pela independência da Guiné-Bissau e Cabo Verde. Por enquanto, o boneco ainda é um protótipo, mas a versão comercial poderá estar no mercado até ao final de 2025.

Tudo começou no ensino secundário, em Boston, quando Elson e Wilson criaram, num trabalho de grupo, a ideia que viria a dar origem à sua marca de roupa e acessórios, a “Crazygoodz”, qye tem como slogan: “A vida é dura, mas torna-a bonita”. O conceito é desenhar histórias em tecido e representar líderes históricos em roupas e acessórios. Amílcar Cabral é uma das figuras que mais representam e, por isso, foi também a personalidade escolhida para criar o boneco articulado.

O objectivo é criar uma colecção de “bonecos revolucionários”, com personalidades como Titina Sila, uma das mais conhecidas combatentes pela independência da Guiné-Bissau, Cármen Pereira, outra guerrilheira pela independência da Guiné-Bissau que foi a primeira mulher na presidência de um país africano e a única na história guineense, mas também os mais conhecidos Malcom X, Martin Luther King e Angela Davis. Mais tarde, também consideram homenagear lendas da música cabo-verdiana como Cesária Évora e Ildo Lobo.

Oiça a história neste programa ARTES.

Banzo fala sobre o tempo das roças e também "da escravatura moderna e contemporânea"
03 December 2024
Banzo fala sobre o tempo das roças e também "da escravatura moderna e contemporânea"

O filme Banzo, passado no início do século XX em São Tomé e Príncipe, de Margarida Cardoso estreia este mês em França. No entanto, temas como migrações forçadas, a impossibilidade do retorno e a impotência de quem não detém o poder nem a autoridade são temas cada vez mais actuais.

O médico português Afonso Paiva chega em 1907 a São Tomé e Príncipe e é confrontado com uma misteriosa doença, que faz com que um grupo de contratados vindos de Moçambique deixem de comer e passem os seus dias prostrados, sem capacidade para trabalhar. Chamam-lhe a esta doença nostalgia, ou banzo. Um sentimento cunhado pelos escravos levados nos séculos precedentes de forma forçada de África para o Brasil.

É assim que começa a história do filme de Margarida Cardoso, Banzo, que foi mostrado em antestreia no Festival Olá Paris!, que decorreu na capital francesa. O filme tem saída oficial em França no dia 25 de Dezembro e a ideia para esta longa-metragem tem como partida relatórios médicos que Margarida Cardoso encontrou enquanto fazia pesquisa sobre a planta de cacau no arquipélago, como descreveu em entrevista à RFI.

"A ideia deste filme surgiu pelos tempos que passei em São Tomé e Príncipe para fazer um documentário que até na realidade era uma encomenda sobre a planta de cacau e eu comecei a investigar sobre a planta de cacau que veio da Amazónia e depois acabei por passar muito tempo pensando como é que era a relação que tínhamos mais próxima com essa planta e nos arquivos encontrei muitos relatórios médicos onde fiquei intrigada com uma lista que faziam das pessoas que eram internadas nos hospitais, das roças onde havia pessoas que morriam, do que se chamava nostalgia. E aquilo começou intrigar-me. E eu sabia que a nostalgia é o que se chama depressão no fundo. E tentei então fazer este filme inspirado nessa relação, porque a relação das roças também com os hospitais e com a questão de manterem a mão de obra sempre muito oleada é uma coisa que nos faz pensar  sobre estes sistemas coloniais. E foi daí que nasceu essa ideia de criar o Doutor como personagem principal", disse Margarida Cardoso.

Mesmo sendo um filme de época, passado no início do século XX, Margarida Cardoso diz que a situação destes contratados forçados a deslocarem-se se assemelha muito aos actuais movimentos de migrações em que quer por razões económicas quer para fugir à guerra, muitas pessoas partem dos seus países em África, Ásia ou América do Sul para tentar uma vida melhor nas potencias ocidentais.

"Tentei no filme mostrar várias imagens ou algumas analogias com o que se passa hoje. Tanto o barco onde as pessoas estão, como o sistema de 'importação' das pessoas, onde os passadores são pessoas que mudam de nome, mudam de lugar, mas são sempre os mesmos e que, no fundo, todo esse lado mais de escravatura que existe hoje e que é uma escravatura moderna e contemporânea, ela existe exactamente nos mesmos sistemas", declarou.

O filme fala também da situação de São Tomé e Príncipe há mais de 100 anos, quando ainda era uma colónia portuguesa e vivia sob o domício das grandes empresas detentoras das roças de cacau,noutra analogia com o que é hoje São Tomé e Príncipe.

"Eu tenho muita consciência do que se passa em São Tomé. É uma espécie de, pelo menos no meu ponto de vista e pode ser às vezes um pouco injusto, mas é como se fosse um limbo. Está tudo parado e tudo à espera de que alguma coisa se movimente, aconteça e não está a acontecer nada. [...] Eu acho que São Tomé foi quase sempre um entreposto e uma terra que serviu para ser explorada. E hoje, já não havendo essa exploração, acabamos por ficar numa espécie de um limbo, no sítio, em lado nenhum. E eu não vejo muitas perspectivas, mas tenho a certeza que haverá solução para muitas das coisas que acontecem no país", declarou a realizadora.

Esta película foi rodada em São Tomé e Príncipe, com a equipa a deslocar-se até lá, levando com ela a logística necessária para filmar. No entanto, a chuva não deu tréguas à rodagem assim como outras peripécias, algo que acabou por unir a equipa e os habitantes locais que participaram no filme.

"Eu acho que não houve nenhum dia no filme que não houvesse uma grande catástrofe, Mas é mesmo verdade e sempre conseguimos ultrapassar essa catástrofe. E isso foi muito bom. Realmente a nível técnico, fazer chuvas em São Tomé é muito difícil. Chegámos a encher piscinas porque a chuva no cinema não pode esperar, tem de ser contínua. Foi tudo muito difícil, mas a própria natureza às vezes estava contra nós. Mas no fundo, num balanço geral, acho que até esteve a favor", concluiu.

O filme tem estreia prevista em São Tomé e Príncipe para o mês de Maio.